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Petição - Ministério público

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Por:   •  23/8/2013  •  7.688 Palavras (31 Páginas)  •  427 Visualizações

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EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ DE DIREITO DA ª VARA CÍVEL DA COMARCA DE SÃO PAULO

O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO, por meio do 1º Promotor de Justiça do Consumidor signatário, vem, perante Vossa Excelência, para, com fundamento no art. 129, inc. III, da Constituição Federal, nos arts. 81, parágrafo úni-co, incs. I e III, e 82, inc. I, ambos do Código de Defesa do Consu-midor (CDC), no art. 5º, caput, da Lei Federal nº 7.347/85, e no art. 25, inc. IV, a, da Lei Federal nº 8.625/93, propor AÇÃO CIVIL PÚBLICA, a ser processada pelo rito ordinário, contra

SERASA S.A., pessoa jurídica inscrita no CNPJ sob nº 62.173.620/0001-80, com endereço na Alameda dos Quinimuras, 187, Planalto Paulista, São Paulo-SP, CEP 04068-900

a fim de que sejam acolhidos os pedidos ao final formulados em razão dos fatos e fundamentos jurídicos a seguir aduzidos:

SINOPSE: Ação civil pública. Serasa. Bancos de Dados e Ca-dastros de Consumidores. Divulgação de informações inve-rídicas sobre inadimplência que possibilita lesão moral. Por tornar disponíveis informações capazes de afetar interesses juridicamente protegidos (honra e imagem), a empresa está obrigada a adotar procedimentos que assegurem o efetivo exercício do direito de defesa pelos consumidores.

DOS FATOS

As atividades da ré

A ré Serasa S.A. é empresa que gerencia bancos de dados e cadastros de consumidores. Seu Estatuto Social prevê como objeto social “a coleta, o armazenamento e o gerenciamento de dados”, e ainda, “a organização, a análise, o desenvolvimento, a operação e a comercialização de informações e soluções para apoi-ar decisões e o gerenciamento de risco de crédito e de negócios”.

Em seu sítio na Internet, a empresa assim se a-presenta:

A Serasa Experian, parte do grupo Experian, é o maior bureau de crédito do mundo fora dos Estados Unidos, detendo o mais exten-so banco de dados da América Latina sobre consumidores, em-presas e grupos econômicos.

Há mais de 40 anos presente no mercado brasileiro, a Serasa Ex-perian participa da maioria das decisões de crédito e negócios tomadas no País, respondendo on-line/real-time a 4 milhões de consultas por dia, demandadas por 400 mil clientes diretos e indi-retos.

Seus serviços são assim oferecidos:

Com nossas soluções e serviços, sua empresa consulta cheques, CPF, CNPJ, nome, consumidores, empresas, pendências financei-ras, inadimplência e protestos.

Empresas de todos os portes e ramos de atividade consultam a Serasa para agilizar a concessão de crédito, reduzir riscos e am-pliar suas possibilidades de negócios. As consultas dão acesso a informações e análises imediatas e atualizadas de pessoas, em-presas, grupos econômicos e setores da economia para adminis-trar o risco de crédito em suas transações com empresas e con-sumidores.

Trata-se, portanto, de empresa que tem como ati-vidade principal a coleta de informações sobre situações de ina-dimplência ocorridas nas mais diversas formas de contratação e no mercado em geral, com a finalidade de torná-las disponíveis a seus clientes, a quem franqueia acesso a seus bancos de dados.

Os “serviços de inteligência” a serviço do mercado

A inviolabilidade da honra e da imagem é uma das garantias fundamentais concernentes à liberdade. Não é por acaso que a Constituição Federal consagrou, no título dedicado aos Di-reitos e Garantias Fundamentais, a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas, assegurando o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação (art. 5º, X).

Essa garantia, que consta da Declaração Universal dos Direitos Humanos , é de inspiração liberal, tendo sido conce-bida inicialmente para impedir a intromissão indevida do Estado na esfera particular da vida das pessoas. É fruto também de uma concepção individualista que surgiu como base da democracia moderna, e que “repousa na soberania não do povo, mas dos ci-dadãos”. NORBERTO BOBBIO afirma que “não há nenhuma Consti-tuição democrática que não pressuponha a existência de direitos individuais, ou seja, que não parta da idéia de que primeiro vem a liberdade dos cidadãos singularmente considerados, e só depois o poder do governo, que os cidadãos constituem e controlam através das suas liberdades”.

Com efeito, os Estados totalitários, com seus servi-ços de inteligência e polícias secretas, ocuparam tradicionalmente o papel de grandes inimigos da privacidade dos indivíduos. No fi-nal do Século passado, no entanto, as ameaças passaram a vir de grandes conglomerados econômicos que surgiram disputando mercado numa escala massificada. Estratégias de marketing, es-senciais para o bom desempenho das empresas num mercado competitivo, alimentam-se de informações sobre os hábitos dos consumidores. Listas com determinados perfis de consumidores possibilitam aos fornecedores um acesso direto a seus comprado-res ou clientes potenciais, com racionalização e economia de cus-tos.

Além disso, as informações servem para aumentar o grau de rapidez e segurança nas decisões, dinamizando assim a economia, pois “se o armazenamento ou uso dessa informação é restringido, financeiras reagirão como reagiram em outros países, através da redução do número e do universo de pessoas para as quais concederão financiamentos. Um estudo do Banco Mundial de 2000, por exemplo, mostrou que leis de privacidade restritivas eliminariam 11 de cada 100 pessoas normalmente qualificadas para obter hipotecas, cartões de crédito e outros empréstimos. Tais leis, portanto, correm o risco de negar oportunidade para de-zenas de milhões de consumidores americanos.”

Os defensores da eficiência do mercado argumen-tam: “Quando há menos informação disponível, as empresas pre-cisam gastar mais para negociar seus produtos e serviços. A con-cessão de crédito e outras decisões financeiras são menos preci-sas, e portanto resultam em mais inadimplência. O uso indevido de identidade alheia e outras perdas fraudulentas aumentam”.

Os cidadãos – agora tratados como meros consu-midores – são vigiados, pesquisados, interrogados. Bancos de da-dos minuciosos armazenam diversas informações pessoais, muitas delas íntimas: nome, sexo, endereço, profissão, idade, estado civil, número e idade dos filhos, patrimônio, rendimentos, hobbies, há-bitos e preferências de consumo, etc.. Cartões de fidelidade de redes de comércio varejista permitem a reunião de dados sobre os livros, remédios e outros produtos que compramos. No caso dos supermercados, temos a nossa dispensa vigiada. Empresas de cartões de crédito podem saber tudo sobre nosso cotidiano: as via-gens que realizamos, as lojas e os restaurantes que freqüentamos, a quantidade de dinheiro que gastamos. Empresas de telefonia ce-lular podem monitorar nossos deslocamentos pela cidade.

A ré bem exemplifica a realidade que temos hoje: autênticos serviços de inteligência a serviço do mercado, com ca-pacidade quase inesgotável de reunir e divulgar dados, mercê da tecnologia disponível. Admite ela que “responde on-line/real-time a 4 milhões de consultas por dia, demandadas por 400 mil clientes diretos e indiretos”.

Qual o limite que o ordenamento jurídico deve im-por para tais atividades, especialmente quando há indícios de que a imagem e a honra das pessoas estão sendo violadas?

A honra e a imagem das pessoas como direitos invioláveis

O homem, animal social por excelência, por cons-truir sua biografia a partir de relações que estabelece e cultiva com outros indivíduos, esforça-se para forjar para si uma imagem pública de grande aceitação.

No que concerne à honra e à imagem, aspectos so-ciais e psicológicos ajudam a compreender sua importância. Em qualquer sociedade humana a hierarquia estará presente, e as pessoas tenderão sempre a buscar mais prestígio e aceitação soci-al. Para manter um bom nível de auto-estima e uma boa posição no ranking social, cada indivíduo cuida de criar para si uma ima-gem aceitável em todos os ambientes onde circula. Nessa lógica, não lhe interessa que cheguem ao conhecimento alheio aspectos de sua vida pessoal capazes de afetar negativamente o apreço de que goza.

Pela mesma lógica, a competição e as inimizades estimulam a maledicência e a fofoca: o interesse em divulgar in-formações depreciativas sobre os outros mobiliza muita energia em qualquer ambiente social humano. Existe interesse concreto na devassa da vida privada alheia, e até mesmo o lixo doméstico pode se transformar em fonte de informações sobre os hábitos de alguém. A busca e a divulgação de informações é comportamento que muitas vezes visa denegrir e assim rebaixar o ranking social daqueles com quem competimos por prestígio.

É, portanto, para preservação da honra pessoal – bem que alcançou inclusive proteção da lei penal – que o ordena-mento jurídico preocupa-se com a manutenção de determinadas assacadilhas fora do alcance de outras pessoas. Assim, em princí-pio todo homem tem direito de manter informações desabonadoras a seu respeito desconhecidas do público.

O Direito não é indiferente às questões concernen-tes à imagem e à autoestima. NELSON HUNGRIA, ao comentar a tu-tela penal da honra, observa que “assim como o homem tem direi-to à integridade do seu corpo e do seu patrimônio econômico, tem-no igualmente à indenidade do seu amor-próprio (consciência do próprio valor moral e social, ou da própria dignidade ou decôro) e do seu patrimônio moral. Notadamente no seu aspecto objetivo ou externo (isto é, como condição do indivíduo que faz jus à conside-ração do círculo social em que vive), a honra é um bem precioso, pois a ela está necessàriamente condicionada a tranqüila partici-pação do indivíduo nas vantagens da vida em sociedade.”

Não se pode, antecipadamente, aquilatar a impor-tância das diversas informações sobre a vida pessoal de alguém: o repúdio e a admiração de cada aspecto pode variar conforme os valores vigentes em cada época ou grupo específico. Alguns valo-res e comportamentos, contudo, conseguem se perpetuar como indicadores de virtude. A imagem de “bom pagador”, de fiel cum-pridor de obrigações contratuais e jurídicas possui elevado valor social, por ser indício de conduta reta e honesta perante terceiros. Daí o entendimento jurisprudencial e doutrinário no sentido de que a expressão “caloteiro” configura crime de injúria.

Nesse contexto, não há dúvida de que as informa-ções que a ré reúne e torna disponíveis ao público podem afetar interesses juridicamente protegidos. Tanto é assim, que sua divul-gação indevida é considerada danosa in re ipsa:

constatada a conduta ilícita do banco-recorrido e configura-do o dano moral sofrido pelo autor, em razão da indevida in-clusão de seu nome no rol de inadimplentes, deve-se fixar o valor do ressarcimento. (...) Quanto à repercussão do fato danoso, esta se limita aos danos presumidos, vale dizer, in re ipsa, decorrentes do indevido registro. (REsp 819.192/PR, Rel. Ministro Jorge Scartezzini, Quarta Turma, julgado em 28/03/2006, DJ 08/05/2006 p. 238)

A existência de registros de outros débitos do recorrente em órgãos de restrição de crédito não afasta a presunção de e-xistência do dano moral, que decorre in re ipsa, vale dizer, do próprio registro de fato inexistente. Precedente. (REsp 718.618/RS, Rel. Ministro Antônio de Pádua Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 24/05/2005, DJ 20/06/2005 p. 285)

A exigência de prova de dano moral se satisfaz com a de-monstração da existência de inscrição indevida nos cadas-tros de inadimplentes. (AgRg no Ag 979.810/SP, Rel. Ministro Sidnei Beneti, Terceira Turma, julgado em 11/03/2008, DJe 01/04/2008)

O objeto da presente ação: prevenção de danos morais pelo direito de defesa

A Promotoria de Justiça do Consumidor, instigada por peças de informação encaminhadas pelo i. Juízo do Fórum Regional de Pinheiros, nos termos do art. 7º da Lei Federal nº 7.347/85, instaurou o Inquérito Civil no 42.161.147/09-6 (autos inclusos) para apurar se o direito de defesa do consumidor vem sendo respeitado, no que concerne à sua possibilidade de contes-tar, efetiva e oportunamente, as alegações de dívidas que são en-caminhadas aos cadastros de inadimplentes por supostos credo-res.

Pretende o Ministério Público demonstrar que o risco que a atividade desenvolvida pela ré cria à imagem de mi-lhões de consumidores deve ser reduzido por meio do respeito ao direito de defesa. Para tanto a presente ação civil pública está em-basada no seguinte silogismo:

• A honra e a imagem da pessoa gozam de proteção ju-rídica;

• A divulgação de informações inverídicas relacionadas a inadimplência pode violar direitos individuais, pro-vocando danos morais;

• O ordenamento jurídico consagra o direito de defesa a quem sofre ameaça de agravo ao seu patrimônio ju-rídico;

• O art. 43 do CDC exige que os cadastros sejam ver-dadeiros, e que o consumidor deve ser comunicado a respeito, e tem direito de corrigi-lo

• A inserção de anotação desabonadora em bancos de dados deve ser precedida de meios que asseguram oportunidade de defesa efetiva aos consumidores que não contam com anotações pretéritas.

Nos termos do art. 43, § 1°, do CDC, os cadastros e dados de consumidores devem ser verdadeiros. O § 3° garante ainda ao consumidor o direito de exigir a imediata correção, sem-pre que encontrar inexatidão nos seus dados e cadastros.

Devemos considerar, portanto, que a lei confere ao consumidor o direito de ser comunicado sobre as anotações e de cor-rigi-las quando imprecisas. E ainda impõe aos administradores a o-brigação de manter exclusivamente dados verídicos. E tamanha im-portância foi atribuída a esses direitos que suas violações estão tipi-ficadas no CDC como crimes.

O objetivo aqui é de demonstrar que a divulgação de informação capaz de desabonar o conceito social de um indiví-duo deve cercar-se de toda cautela. Daí a preocupação que a ativi-dade da ré suscita: o risco de macular a honra e a imagem alheia com a divulgação de informação inverídica sobre situação de ina-dimplência.

É certo que quando o dano moral se consuma pela inscrição indevida, o responsável deve ser obrigado a pagar à víti-ma uma indenização. Ou seja, a solução é aquela preconizada pela Constituição, que assegura o direito a indenização pelo dano ma-terial ou moral decorrente de sua violação (art. 5º, X).

O cabimento de indenização nessas hipóteses é hoje amplamente aceito pela jurisprudência. Trata-se, todavia, de remédio que atua como solução a posteri, ou seja, depois de con-sumado o dano, para compensá-lo.

Quais, todavia, as medidas existentes não para remediar o mal, mas para preveni-lo? Não tem o consumidor o di-reito de evitar esse abalo a sua imagem? Não seria justo conferir-lhe meios para demonstrar, oportunamente, que determinada ale-gação de inadimplência é indevida, que a suposta dívida não exis-te, para assim impedir sua divulgação?

O Poder Judiciário muito tem feito, é verdade, para compensar os danos causados pelas inscrições indevidas. Não se pode ignorar, contudo, que o número de ações judiciais cobrando reparações é significativo. Uma pesquisa no sítio do Tribunal de Justiça de São Paulo com o nome da ré “Serasa” (Consulta Com-pleta/Pesquisa Livre), realizada no dia 28 de agosto de 2009 apre-senta nada menos que 52.316 (cinqüenta e dois mil, trezentos e dezesseis) resultados.

Os abusos que vêm sendo perpetrados são visíveis e consideráveis, denunciados por CLÁUDIA LIMA MARQUES:

A prática recente brasileira demonstrou ... que estes bancos (de dados) e a sua utilização, por vezes maliciosa, outras ve-zes negligente, por fornecedores estão a causar grandes e reiterados danos aos consumidores.

O Desembargador paulista PAULO ROBERTO DE SAN-TANA assim descreve a situação:

Disseminou-se a prática de abertura de cadastros em banco de dados com a legalização de tais órgãos, a partir do adven-to do Código de Defesa do Consumidor, sem maiores preo-cupações com a imagem e a dignidade das pessoas.

Ora, se a imagem e a dignidade das pessoas, bem como o nome a e imagem das pessoas jurídicas, não podem ficar ex-postas, a utilização de seus dados deve ser feita da forma cautelosa porque esses bens jurídicos não podem ser trata-dos como qualquer outra coisa colocada no comércio.

A SERASA ou outro órgão de proteção ao crédito não pode formar um banco de dados para negociar a vida alheia, nem as instituições financeiras devem se utilizar desses cadas-tros como meio de pressão ou coação do consumidor. (Agravo de Instrumento n° 7.342.257-2, Vigésima Terceira Câmara de Di-reito Privado, Rel. Des. Paulo Roberto de Santana, 15/04/2009)

Com efeito, o funcionamento imperfeito é capaz de transformar os bancos de dados, na prática, numa espécie de tri-bunal privado que sujeita o indefeso consumidor a ter seu nome sumária e inquisitorialmente lançado num rol dos maus pagado-res, passando a ter sua imagem exposta de modo desabonador pe-rante terceiros, mesmo não sendo inadimplente. Credores mal in-tencionados podem valer-se dessa situação para submeter o con-sumidor a um tipo de constrangimento ou ameaça na cobrança de débitos, com violação do disposto no art. 42 do CDC (“a cobrança de débitos, o consumidor inadimplente não será exposto a ridícu-lo, nem será submetido a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça (...)”. A ameaça “pague o que estou cobrando, ou vou sujar seu nome” é capaz de afetar o homem médio, que sabe das difi-culdades para reverter essa situação. Tanto é que “Quando existe dúvida sobre o crédito, a restrição nos bancos de dados "se carac-teriza como coação contra o consumidor, o que não pode ser tole-rado". (Agravo de Instrumento n° 7327914-6, 18ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Jurandir de Sousa Oliveira, 14/04/2009).

Bom exemplo dessa situação bem de reportagem publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo intitulada “Empresas protestam cheques no Rio para fazer cobranças em todo o País - Cobradoras compram títulos de até 14 anos e chegam a exigir 20 vezes o valor de face para limpar nome”. A matéria mostra de que maneira se dá o chamado “golpe do protesto”:

1- Empresas de cobrança e de recuperação de dívidas compram cheques passados há anos e devolvidos por motivos diversos (falta de fundos, divergência de assinaturas, cancelamento do talão por furto ou roubo, etc). Esses cheques não podem mais ser pro-testados

2- Com base nesses cheques caducos, as empresas emitem letras de câmbio sem a concordância do ti-tular e muitas vezes com dados divergentes dos verdadeiros. Assim, tentam “ressuscitar a suposta dívida expressa do cheque e cobrá-la dos titulares

3- As letras de câmbio são então protestadas em cartó-rios de cidades do Estado do Rio, como Niterói, Du-que de Caxias e São João do Meriti, que os protes-tados, em geral de outros Estados, jamais visitaram. Eles não têm chance de contestar a dívida

4- Com o nome incluído na lista de inadimplentes do Serasa, o cidadão procura ou é procurado por pelas empresas de cobrança, que, para retirar o protesto, exigem quantias bem maiores do que a dívida origi-nal. Os cartórios também cobram taxas para dar baixa no protesto...

Nenhuma dúvida, portanto, de que, indefeso pe-rante o banco de dados da ré, o consumidor vira presa fácil de i-númeras formas de achaques.

A vulnerabilidade é mais intensa porque, como é sabido, a contratação de diversos serviços, e mesmo a aquisição de produtos, especialmente quando formalizadas sem a presença física do contratante, pode ser efetivada de forma fraudulenta em nome de terceiros, cujos dados pessoais são indevidamente utili-zados à sua revelia. Nesses casos, pessoas que não contrataram os serviços ficam sujeitos a cobranças ilegítimas e a indevidas ins-crições de seus nomes em bancos de dados de consumidores ina-dimplentes. Em muitos casos ainda, dívidas já quitadas ou con-testadas em Juízo são inscritas de modo irregular, por falhas nos departamentos de cobrança das empresas.

Assim, a possibilidade de comunicações inverídi-cas é considerável, e o número de ações judiciais decorrentes des-sas falhas é revelador, e vem colaborando para aumentar os nu-mero de ações judiciais.

A presente ação civil pública pretende justamente demonstrar que uma leitura sistemática do ordenamento jurídico leva à conclusão de que a ré tem a obrigação de adotar procedi-mentos que confiram ao consumidor os meios necessários para impedir que seu nome seja exposto indevidamente, facultando-lhe a ampla defesa assegurada no art. 5º, LV, da Constituição Federal aos acusados em geral.

Os bancos de dados e a criação de risco à honra e à imagem das pessoas

A finalidade dos bancos de dados é a proteção ao crédito. A lei reconhece, e portanto autoriza, sua existência, e até lhes confere caráter público (CDC, art. 43, § 4º). Há aqui um evi-dente balanceamento, com a ponderação de que o registro de in-formações destinadas à segurança das transações são admissíveis, malgrado a exposição da imagem dos indivíduos que propicia, porque resultam no melhor funcionamento do sistema econômico.

Numa sociedade de consumo de massa os fornece-dores contratam com pessoas desconhecidas, estando sempre presente um fator de imprevisão e, consequentemente, de risco, que pode ser minimizado através da consulta a um banco de da-dos com informações sobre o histórico de adimplência de cada in-divíduo. Estamos diante de uma exceção, possível porque o direito de privacidade não é absoluto: “O direito à inviolabilidade dessa franquia individual – que constitui um dos núcleos básicos em que se desenvolve, em nosso País, o regime das liberdades públi-cas – ostenta, no entanto, caráter meramente relativo. Não assu-me e nem se reveste de natureza absoluta. Cede, por isso mesmo, às exigências impostas pela preponderância axiológica e jurídico-social do interesse público”.

E vale lembrar que justamente por essa razão – proteção ao crédito – a Lei Complementar nº 105/01 não conside-ra violação do dever de sigilo o fornecimento, pelas instituições fi-nanceiras, de informações constantes de cadastro de emitentes de cheques sem provisão de fundos e de devedores inadimplentes, a entidades de proteção ao crédito (art. 1º, § 3º, II).

Não há, pois, nenhuma contestação no que con-cerne à legalidade da existência e do funcionamento dos bancos de dados quando sua finalidade é a proteção ao crédito.

Ocorre que a inserção indevida do nome de alguém em rol de inadimplentes acessível ao público é prática lesiva a di-reitos que a Constituição Federal considera invioláveis. Uma vez que a honra e a imagem integram o patrimônio jurídico do indiví-duo, todo e qualquer ato que implicar em lesão ou ameaça de le-são deverá ser evitado.

Daí porque são impostas diversas restrições para o funcionamento dos bancos de dados – que atuam como freios e contrapesos – como os direitos do consumidor de ser comunicado por escrito de sua abertura, de ter acesso às informações arquiva-das a seu respeito e de corrigir informação inexata. Existe ainda a proibição de manter informações desabonadoras referentes a perí-odo superior a cinco anos (CDC, art. 43). E os Tribunais brasilei-ros vêm reconhecendo o dano moral resultante do uso indevido de bancos de dados de proteção ao crédito.

O que motiva a atuação do Ministério Público é a constatação de que a generalização do uso desses cadastros por fornecedores, sobretudo a partir de sua regulamentação pelo CDC, criou para os consumidores uma situação de risco inadmissível, uma vez que os responsáveis por esses bancos de dados muitas vezes negam-lhe a possibilidade de contestação oportuna da in-formação sobre débitos encaminhada por terceiros.

O que se verifica, na prática, é que, sem sequer ser ouvido, o consumidor pode ter seu nome lançado em rol de deve-dores, passando a sofrer prejuízos à sua imagem. A inversão do ônus da prova (direito básico assegurado no art. 6º, VIII, do CDC) nesse caso acaba por operar-se contra o consumidor, em prol dos fornecedores: atribui-se ao fornecedor a presunção de veracidade de sua alegação de inadimplência.

A posição do consumidor fica ainda mais agravada pela capacidade dos bancos de dados, a partir da tecnologia hoje disponível, de dispersar a informação, levando-a a milhares de terminais de computador. Ou seja, “o cadastramento negativo dá efeito superlativo ao fato, criando-lhe (ao devedor) restrições que vão além do âmbito restrito das partes envolvidas – credor e deve-dor.” (STJ, REsp nº 688.456-RJ, Quarta Turma, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, 07.12.2004). Prova disso é a afirmação da ré de que “responde on-line/real-time a 4 milhões de consultas por dia, demandadas por 400 mil clientes diretos e indiretos”.

Essa exacerbação da vulnerabilidade do consumi-dor, que inclusive o deixa à mercê de cobranças indevidas feitas sob ameaça de inscrição de seu nome, foi constatada na seguinte passagem de recente julgamento do Tribunal de Justiça de São Paulo já mencionado:

Disseminou-se a prática de abertura de cadastros em banco de dados com a legalização de tais órgãos, a partir do adven-to do Código de Defesa do Consumidor, sem maiores preo-cupações com a imagem e a dignidade das pessoas.

Ora, se a imagem e a dignidade das pessoas, bem como o nome a e imagem das pessoas jurídicas, não podem ficar ex-postas, a utilização de seus dados deve ser feita da forma cautelosa porque esses bens jurídicos não podem ser trata-dos como qualquer outra coisa colocada no comércio.

A SERASA ou outro órgão de proteção ao crédito não pode formar um banco de dados para negociar a vida alheia, nem as instituições financeiras devem se utilizar desses cadas-tros como meio de pressão ou coação do consumidor.

Daí porque da própria lei se extrai alguns limites para cria-ção desses bancos de dados.

Na busca do equilíbrio entre a tutela do direito à imagem e a dignidade das pessoas e o direito de informação há que se estabelecer um critério razoável para criação desses cadas-tros.

Se assim é o objetivo da SERASA e de outros órgãos seme-lhantes, os registros contidos nos seus bancos de dados de-vem espelhar a realidade, ou seja, devem ser verdadeiros, até porque assim exige a Lei (§ 1o, art. 43, do CODECON).

Logo, em todas as situações que a dívida do consumidor está sendo discutida em juízo ou há dúvida quanto ao seu valor e o cadastro existente espelha a vontade do credor, ou seja, registra o crédito segundo o que ele entende ser devido, é possível e, na verdade, necessário a antecipação da tutela uma vez que a litigiosidade decorrente da pretensão deduzi-da na inicial torna incerto o alegado crédito e, conseqüen-temente, o registro no banco de dados.

Por isso que, reiteradamente esta Colenda Vigésima Terceira Câmara tem deferido o pedido de antecipação de tutela para impedir a negativação do nome do consumidor ou para ex-cluir o seu nome dos registros caso o ato já tenha sido prati-cado.

Basta a discussão judicial em torno da dívida para retirar a certeza da anotação feita no banco de dados. (Agravo de Ins-trumento n° 7.342.257-2, Vigésima Terceira Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Paulo Roberto de Santana, 15/04/2009)

Assim, a possibilidade de comunicações inverídi-cas é considerável, e o número de ações judiciais decorrentes des-sas falhas é indício revelador dos danos que vêm sendo causados.

A interpretação do art. 43 do CDC na perspectiva do direito consti-tucional à ampla defesa

A Constituição Federal, no art. 5º, inc. LV, deter-mina que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.

Tratando-se de regra que disciplina Direitos e Ga-rantias Fundamentais, sua aplicação é extensiva. O Supremo Tri-bunal Federal já reconheceu que mesmo entidades privadas de-vem respeitar o direito de defesa quando toma decisões que, nas circunstâncias, possam de alguma forma atingir o patrimônio ju-rídico do particular:

A ordem jurídico-constitucional brasileira não conferiu a qualquer associação civil a possibilidade de agir à revelia dos princípios inscritos nas leis e, em especial, dos postulados que têm por fundamento direto o próprio texto da Constitui-ção da República, notadamente em tema de proteção às li-berdades e garantias fundamentais. O espaço de autonomia privada garantido pela Constituição às associações não está imune à incidência dos princípios constitucionais que asse-guram o respeito aos direitos fundamentais de seus associa-dos. A autonomia privada, que encontra claras limitações de ordem jurídica, não pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros, especial-mente aqueles positivados em sede constitucional, pois a autonomia da vontade não confere aos particulares, no do-mínio de sua incidência e atuação, o poder de transgredir ou de ignorar as restrições postas e definidas pela própria Cons-tituição, cuja eficácia e força normativa também se impõem, aos particulares, no âmbito de suas relações privadas, em tema de liberdades fundamentais. (RE 201819/RJ, Segunda Turma, Relator p/ Acórdão Min.Gilmar Mendes, 11/10/2005, destaques não originais)

E o novo Código Civil vai na mesma direção quan-do, aos disciplinar as associações em art. 57, determina que “A exclusão do associado só é admissível havendo justa causa, assim reconhecida em procedimento que assegure direito de defesa e de recurso, nos termos previstos no estatuto.”

Deveras, o direito de defesa deve estar presente em todas as situações que, de algum modo, possam propiciar risco aos direitos do indivíduo. Assim, sempre que a esfera jurídica de alguém estiver passível de qualquer sorte de interferência, justifi-ca-se a concessão, em seu favor, de oportunidade de resistência.

Nas relações de consumo, não raramente o con-sumidor se vê na iminência de sofrer restrições em seus direitos, num confronto desequilibrado por sua posição vulnerável diante do fornecedor. Bem por isso, o CDC prevê expressamente a facili-tação da defesa de seus direitos como um dos direitos básicos do consumidor (art. 6º, inc. VIII). O tema já foi objeto de apreciação no Superior Tribunal de Justiça:

Recurso especial contra acórdão que considerou ilegal o cor-te no fornecimento de energia elétrica como meio de coação ao pagamento de contas atrasadas ou para apurar eventual irregularidade. Não há de se prestigiar atuação da Justiça privada no Brasil, especialmente, quando exercida por cre-dor econômica e financeiramente mais forte, em largas pro-porções, do que o devedor. Afrontaria, se fosse admitido, os princípios constitucionais da inocência presumida e da am-pla defesa. (REsp 841.786/RS, Rel. Ministro José Delgado, Pri-meira Turma, julgado em 29/06/2006, DJ 17/08/2006 p. 331)

E aqui cabe uma rápida digressão para lembrar que o CDC é lei peculiar, que só pode ser corretamente interpreta-da e aplicada a partir da compreensão de sua ratio essendi, que vem proclamada já no art. 1°: “O presente Código estabelece nor-mas de proteção e defesa do consumidor”. Seu objetivo, portanto, não é simplesmente o de disciplinar as obrigações decorrentes das relações de consumo. Não se trata de uma lei neutra, indiferente em relação aos agentes a que se dirige: estamos, pelo contrário, diante de lei confessadamente parcial, e que não esconde esse propósito. A interpretação de todos os seus preceitos deve, por conseguinte, considerar sempre essa proclamação teleológica ex-pressa: sua finalidade de proteger e defender o consumidor.

O art. 43 confere ao consumidor o direito de co-nhecer as informações a seu respeito nos bancos de dados e de eventualmente corrigi-las. A finalidade desse dispositivo é protegê-lo, é garantir seu direito de defesa perante os cadastros de ina-dimplentes. Ora, corrigir informação imprecisa é defender-se.

A perspectiva hermenêutica que a presente ação civil pública propõe, portanto, é de interpretar as regras do art. 43 em conformidade com sua finalidade: dotar o consumidor com os meios e recursos inerentes ao exercício da ampla defesa. E, sobre o direito de defesa, a seguinte opinião:

Não é demais lembrar que os bancos de dados, ainda que con-trolados por empresas privadas, ostentam caráter público, co-mo prevê o Código de Defesa do Consumidor, e nessa condição devem garantir administrativamente direito de defesa porque este, por sua vez, é instituído na vigente Constituição Federal como uma das garantias individuais do cidadão ( ... ) todo e qualquer cidadão, inidôneo, ou não, tem direito de saber se en-tidades reputadas públicas estão a ‘negativar’ sua empresa ou sua pessoa física, até para que possa defender-se, e evitar con-sequências para si desastrosas, nos planos moral, econômico e social.

Direito à ampla defesa: conteúdo mínimo

A efetividade do exercício do direito de defesa pres-supõe garantias mínimas ao acusado. Segundo HELY LOPES MEI-RELLES, “Por garantia de defesa deve-se entender não só a obser-vância do rito adequado como a cientificação do processo ao inte-ressado, a oportunidade para contestar a acusação, produzir pro-va de seu direito, acompanhar os atos da instrução e utilizar-se dos recursos cabíveis.

1- Notificação

Para que seja possível o exercício do direito de de-fesa, é imprescindível que o consumidor tenha conhecimento sufi-ciente sobre o teor da alegação de débito e de suas provas. Segun-do VICENTE GRECO FILHO, um dos requisitos para o exercício da ampla defesa é “a apresentação clara e completa da acusação, que deve ser formulada de modo que possa o réu contrapor-se a seus termos”.

No caso de informações inseridas em bancos de dados – exatamente a matéria que a presente ação civil pública – há dispositivo específico e expresso no CDC dispondo sobre o di-reito do consumidor a ser comunicado por escrito na hipótese de inserção de informação a seu respeito:

Art. 43, § 2° - A abertura de cadastro, ficha, registro e dados pessoais e de consumo deverá ser comunicada por escrito ao consumidor, quando não solicitada por ele.

A obrigação do administrador do banco de dados de cumprir a exigência legal está reconhecida na Súmula 359 do STJ, que proclama: “Cabe ao órgão mantenedor do Cadastro de Proteção ao Crédito a notificação do devedor antes de proceder à inscrição.”

O ministro CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO reco-nheceu que a comunicação prévia ao devedor tem por objetivo “propiciar-lhe o direito de acesso às informações e de preveni-lo de futuros danos” (STJ, AgRg no REsp 777750/RS, Terceira Turma, julgado em 23/11/2005, DJ 24/04/2006 p. 398).

Diversos julgados relacionam essa comunicação ao direito de defesa:

a razão da norma legal está em permitir ao devedor atuar pa-ra ou esclarecer um possível equívoco que possa ter ocorri-do, ou para adimplir, logo, a obrigação, evitando males maio-res para si. (STJ, Recurso Especial nº 688.456 - RJ , Quarta Tur-ma, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, 07.12.2004)

o art. 43, § 2°, do Código de Defesa do Consumidor, tem por objetivo impedir que se inclua o consumidor em cadastro de inadimplentes sem que antes seja cientificado e possa mani-festar-se a respeito da restrição que será repassada aos cli-entes da apelada. (TJSP, Apelação 550.348-4/9, 4ª Câmara de Direito Privado, Relator Maia da Cunha, 21/05/2009)

desconhecendo a existência do registro negativo, a pessoa sequer tem condições de defender-se contra os males, inú-meros e graves, que daí lhe decorrem, e de pedir seu cance-lamento ou retificação. (STJ, Recurso Especial nº 285.401 – SP, Quarta Turma, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, 19.04.2001)

Quando a notificação for dirigida ao consumidor que não possua nenhuma anotação prévia em seu nome, é indis-pensável que seja feita por meio de correspondência registrada (AR), nos moldes da citação pelo correio disciplinada no art. 223 do Código de Processo Civil. Nesse sentido a opinião de HERMAN BENJAMIN:

Recomenda a boa prática que a comunicação, se por correio, seja com aviso de recebimento. A cientificação escrita será única (um só endereço) ou múltipla (vários endereços). Co-nhecidos outros endereços, mesmo que não constantes da ficha cadastral ou documento inicial do consumidor, de-manda-se que para eles também seja expedida a comunica-ção. Não tem o arquivista a faculdade de escolher um entre vários endereços que dispõe. É bom lembrar que aqui toda a cautela é pouca por parte das empresas envolvidas, já que a prova de que o procedimento de comunicação foi cumprido adequadamente a elas incumbe (...).

A aplicação analógica aqui nos parece de funda-mental importância para que o direito de defesa não signifique, na prática, um faz-de-conta.

A negligência na notificação gera insegurança em detrimento do consumidor, justamente a parte considerada vulne-rável nas relações de consumo. Daí porque o entendimento que decorre de leitura literal e descomprometida resulta em afasta-mento do objetivo maior do postulado legal, que é permitir ao con-sumidor sua efetiva defesa. Ora, se até mesmo as cláusulas con-tratuais devem ser interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor (CDC, art.47), a lei, a fortiori, também será.

Conforme CARLOS MAXIMILIANO “O hermeneuta sempre terá em vista o fim da lei, o resultado que a mesma precisa atingir em sua prática. A norma enfeixa um conjunto de providên-cias, protetoras, julgadas necessárias para satisfazer a certas exi-gências econômicas e sociais; será interpretada de modo que me-lhor corresponda àquela finalidade e assegure plenamente a tutela de interesses para a qual foi redigida”.

Dar concreção e sentido para os comandos legais, a partir de enfoque teleológico e sistemático, é missão do julgador. Cabível o método de interpretação evolutiva , quando, sem modi-ficar o texto da norma, extrai-se de seu comando um significado dirigido a uma finalidade que se apresenta compatível com um conjunto de valores inerentes ao sistema. Na observação de MAU-RO CAPPELLETTI, “as proclamações (nacionais ou supranacionais) dos direitos fundamentais cessam de ser meras declamações filo-sóficas no momento em que sua atuação é confiada, em concreto, aos tribunais”.

Tal tratamento diferenciado (notificação por AR) é pretendido apenas para aquele suposto devedor que possua “ficha limpa”, ou seja, em cujo nome não haja nenhuma anotação de i-nadimplência. E por qual razão? Em primeiro lugar porque a ine-xistência de anotações implica, em seu favor, na presunção de que seja bom pagador. Mas não é só. Tendo seu nome imaculado, está ele passível de sofrer prejuízo mais significativo caso alguma ano-tação – uma única apenas – seja registrada em seu desfavor. Esse enfoque decorre do entendimento do Superior Tribunal de Justiça sobre a matéria, segundo a qual “Quem já é registrado como mau pagador não pode se sentir moralmente ofendido por mais uma inscrição do nome como inadimplente em cadastros de proteção ao crédito.” (Resp nº 1.002.985-RS, Segunda Seção, Rel. Min. Ari Parglender, 14.05.2008). A consolidação dessa interpretação gerou a Súmula 385: “Da anotação irregular em cadastro de proteção ao crédito, não cabe indenização por dano moral, quando preexisten-te legítima inscrição, ressalvado o direito ao cancelamento.”.

Não se pretende aqui sugerir que o consumidor que ostenta anotação prévia não tenha o direito de defender-se no caso nova anotação. O que se quer é conferir um cuidado maior – notificação mediante AR – àquele consumidor que, conforme en-tendimento consagrado do STJ, está sujeito a sofrer um dano mo-ral mais intenso.

O argumento de que a efetivação do direito de de-fesa do consumidor implicaria em custos financeiros consideráveis não pode ser aceito. Se a comunicação com AR for dirigida apenas àqueles supostos devedores que não possuem nenhuma anotação, o número deles não será tão expressivo assim. Além disso, que di-zer das despesas que os administradores de bancos de dados já enfrentam para patrocinar as defesas que apresentam nas milha-res de ações judiciais contra si ajuizadas, e ainda no pagamento de indenizações a que são condenadas? Por acaso esse custo não é também repassado, de algum modo, aos consumidores? Mas o argumento mais importante é o da efetivação dos direitos e garan-tias individuais das pessoas que têm seu direito de defesa desres-peitado e ficam sujeitas a prejuízos à sua imagem e personalidade. A violação recai diretamente sobre dispositivos constitucionais.

2- Prazo e oportunidade para contestação

Não basta a notificação. O direito de defesa só será efetivo se o defensor dispuser de meios razoáveis para poder con-testar os fatos e apresentar sua versão. É preciso conceder-lhe a oportunidade real de contraditar a alegação contra si formulada. Da doutrina vem a observação de que “É elementar que quem quer os fins deve dar os meios a isso necessários. Portanto, quan-do se fala no princípio da ampla defesa, na verdade, está-se falan-do dos meios para isso necessários”.

É claro que a notificação deve preceder a negativa-ção do nome. Não teria mesmo sentido falar-se em defesa depois de consumado o dano se seu objetivo é evitá-lo. Nesse sentido, “A negativação do nome do devedor deve ser-lhe comunicada com an-tecedência, ao teor do art. 43, § 3º, do CPC, gerando lesão moral se a tanto não procede a entidade responsável pela administração do banco de dados.” (STJ, REsp 999.729/RS, Rel. Ministro Aldir Passarinho Junior, Quarta Turma, julgado em 12/06/2008, DJe 04/08/2008).

O prazo para o exercício da defesa é de fundamen-tal importância: deve-se conceder ao consumidor o tempo sufici-ente para que possa compreender e, se for o caso, contraditar as alegações de inadimplência na tentativa de evitar a inscrição nega-tiva. É evidente que o prazo exageradamente curto inviabiliza qualquer possibilidade de contestar eficientemente a suposta ina-dimplência; a obtenção de eventuais documentos ou outras provas pode exigir tempo.

3- Apreciação da defesa

Para que o direito de defesa se complete, é preciso ainda que as razões do consumidor sejam apreciadas para efeito de impedir a anotação indevida, caso suficientes para infirmar a alegação de débito.

Nos termos do art. 43, § 1°, do CDC, os cadastros e dados de consumidores devem ser verdadeiros. O § 3° garante ainda ao consumidor o direito de exigir a imediata correção, sem-pre que encontrar inexatidão nos seus dados e cadastros.

Devemos considerar, portanto, que a lei confere ao consumidor não apenas o direito de ser comunicado sobre as ano-tações, mas de corrigi-las quando imprecisas. E ainda impõe aos administradores a obrigação de manter exclusivamente dados ve-rídicos. E tamanha importância foi atribuída a esses direitos que suas violações estão tipificadas no CDC como crimes.

O direito de corrigir informações inverídicas só po-derá ser efetivamente exercido se as contestações apresentadas foram de fato apreciadas. E assim, havendo dúvidas sobre a ido-neidade da alegação, nenhuma informação negativa poderá ser inserida. Conforme lembrado acima, não é aceitável que a inversão do ônus da prova – direito básico assegurado no art. 6º, VIII, do CDC – acabe por operar-se contra o consumidor, em prol dos for-necedores, beneficiados com a presunção de veracidade de sua alegação de inadimplência. Sobre esse ônus o seguinte preceden-te:

É de notório conhecimento que o ônus de comprovar a relação jurídica entre as partes cabia às empresas rés, que deveriam trazer aos autos documentos comprobatórios da aquisição das linhas pelo autor a fim de comprovar a procedência dos débitos inscritos, em consonância com o estabelecido no artigo 333, inciso II, do Código de Processo Civil.

Não é razoável se exigir do autor a produção de prova negativa, isto é, de que não contratou com as empresas. Óbvio o dever destas de dispor de todos os dados de contratos e do consenti-mento dos consumidores que adquiriram os aparelhos. A hipos-suficiência está caracterizada pela diminuição da capacidade comprobatória, ocasionada pela ausência ou dificuldade de ob-tenção de dados ou informações que possam balizar a avaliação a respeito da natureza, da utilidade, da abrangência e conse-qüências da relação de consumo que se estabeleceu (cf. Agravo de Instrumento 345.896.4/9, Relator Des. J.G. Jacobina Rabel-lo). (TJSP, Apelação Cível n° 418.304-4/5, Quarta Câmara de Direi-to Privado, Rel. Des. Francisco Loureiro, 16/04/2009)

Para HERMAN BENJAMIN, “Com a atenção voltada para a Constituição, é de rigor ressaltar que, no sistema jurídico brasileiro, vigora a presunção de honestidade, extensão privatísti-ca da presunção de inocência.” Desse modo, prossegue o jurista, “Antes de tudo, cabe ao banco de dados (e ao alimentador) provar o débito original que deu origem ao registro”.

Vale lembrar as decisões do Superior Tribunal de Justiça de que “A discussão judicial da dívida obsta a inscrição do nome do devedor no Cadastro de Inadimplentes”.

4- Informação sobre crime e indenização

Um dos princípios proclamados pelo CDC para a Política Nacional das Relações de Consumo em seu art. 4º, inc. IV, é a “educação e informação de fornecedores e consumidores, quanto aos seus direitos e deveres, com vistas à melhoria do mer-cado de consumo”.

No caso em exame, em que os direitos à honra e à imagem do consumidor ficam sujeito a violação, a boa conscienti-zação do consumidor quanto a seus direitos é de grande impor-tância. De nada adianta a lei reconhecer “a facilitação da defesa de seus direitos” como direito básico do consumidor (CDC, art. 6º, inc. VIII) se ele não estiver suficientemente informado a seu res-peito.

Em suma, sustenta o Ministério Público que a lei-tura dos preceitos do CDC que disciplinam os bancos de dados, no contexto da jurisprudência sobre o tema e da garantia constitu-cional de ampla defesa e de tutela dos direitos da pessoa à honra e imagem, leva à conclusão de que o consumidor não pode ficar su-jeito a prejuízos sem oportunidade de preveni-los.

PEDIDOS

Diante do exposto, o Autor requer a prolação de sentença, com o acolhimento dos seguintes pedidos:

1- condenação da Ré a obrigação de não fazer, consis-tente em abster-se de inscrever qualquer informação sobre inadimplência, em qualquer dos cadastros de proteção ao crédito ou bancos de dados de consumi-dores, sem notificar por escrito, prévia e pessoal-mente, o suposto devedor;

1.1- Da notificação, além do valor da dívida, da data do vencimento e da identificação do suposto cre-dor, deverão constar todas as informações disponí-veis sobre a alegada inadimplência;

1.2- Na hipótese do consumidor notificado não pos-suir nenhuma informação negativa prévia em seu nome, a comunicação deverá ser encaminhado por correspondência registrada, mediante aviso de re-cebimento (AR);

2- condenação da Ré a obrigação de fazer, consistente em conceder ao consumidor prazo, nunca inferior a dez dias, contados da efetiva ciência do fato, para que possa contestar a alegada inadimplência;

2.1- Da notificação deverão constar informações sobre o procedimento para envio e recebimento do respectivo instrumento de contestação e eventuais provas;

3- condenação da Ré a obrigação de fazer, consistente em notificar o consumidor sobre a inserção de anota-ção desabonadora em seu nome, no banco de dados, na hipótese de não terem sido acolhidas as alegações apresentadas em sua defesa;

4- condenação da Ré a obrigação de fazer, consistente em informar o consumidor que, no caso de inexisti-rem anotações pretéritas em seu nome, que eventual dano moral ou material provocado por anotação in-correta sobre inadimplência pode ser indenizável, bem como sobre os crimes tipificados nos arts. 72 e 73 do CDC;

5- sujeição da Ré, em caso de violação das obrigações impostas, a multa cominatória fixada em R$ 10.000,00 (dez mil reais), corrigida monetariamente, a ser recolhida ao Fundo de Reparação de Interesses Difusos Lesados, previsto no art. 13 da Lei nº 7.347/85, para cada caso comprovado de violação, sem prejuízo de outras medidas cabíveis e do paga-mento de indenizações por danos materiais e/ou mo-rais.

O Autor requer ainda:

a) seja determinada a citação e intimação postal da Ré no endereço acima fornecido, a fim de que, advertida da sujeição aos efeitos da re-velia, nos termos do art. 285 do Código de Processo Civil, apresente, querendo, resposta aos pedidos ora deduzidos, no prazo de 15 (quin-ze) dias;

b) a publicação de edital no órgão oficial, a fim de que os interessados possam intervir no processo como litisconsortes, sem prejuízo de am-pla divulgação pelos meios de comunicação social por parte dos ór-gãos de defesa do consumidor, nos termos do art. 94 do CDC;

c) a condenação da Requerida ao pagamento das custas processuais, com as devidas atualizações monetárias;

d) a dispensa do pagamento de custas, emolumentos e outros encar-gos, desde logo, em face do previsto no artigo 18 da Lei nº 7.347/85 e do art. 87 da Lei nº 8.078/90;

e) sejam as intimações do Autor feitas pessoalmente, mediante entre-ga dos autos com vista na Promotoria de Justiça do Consumidor, si-tuada na Rua Riachuelo, 115, 1º andar, Sala 130, Centro, nesta Capi-tal, em razão do disposto no art. 236, § 2º, do Código de Processo Civil e no art. 224, inc. XI, da Lei Complementar Estadual nº 734, de 26.11.93 (Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo).

Protesta provar o alegado por todos os meios de pro-va admitidos em direito, especialmente pela produção de prova tes-temunhal e pericial, e, caso necessário, pela juntada de documentos, e por tudo o mais que se fizer indispensável à cabal demonstração dos fatos articulados na presente inicial, bem ainda pelo benefício previsto no art. 6º, inc. VIII, do Código de Defesa do Consumidor, no que tange à inversão do ônus da prova, em favor da coletividade de consumidores substituída pelo Autor.

Acompanha esta petição inicial os documentos que instruem o procedimento nº 43.161./0- instaurado na Promotoria de Justiça do Consumidor.

Atribui à causa, para fins de alçada, o valor de R$ 250.000,00 (duzentos e cinqüenta mil reais).

Termos em que,

P. deferimento.

São Paulo, 09 de setembro de 2009

João Lopes Guimarães Júnior

1º Promotor de Justiça do Consumidor

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