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Memórias De Um Sargento De Melicias

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Por:   •  10/9/2014  •  10.379 Palavras (42 Páginas)  •  272 Visualizações

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MEMÓRIAS DE UM SARGENTO DE MILÍCIAS.

Na fortuna crítica de Manuel Antônio de Almeida, é bastante comum encontrar abordagens que consideram as Memórias de um sargento de milícias uma obra deslocada, à margem do seu tempo, uma vez que não apresenta nenhum ponto de contato com o romantismo praticado à época de sua publicação. Para os seus contemporâneos, esse deslocamento era perceptível em sua fragilidade formal (personagens caricaturais sem qualquer profundidade psicológica, ausência de sublimidade nacional, excessivas repetições, etc.), razão pela qual a história de Leonardo foi relegada ao quase total esquecimento, só minimizado pela morte do autor em 1861. Já para a recepção crítica do século XX, o deslocamento promoveu a sua redescoberta seja como resquício da tradição picaresca, daí o seu humor nada romântico, seja como produto de vanguarda, na medida em que o romance de Almeida se constituiria em precursor, no Brasil, do Realismo e até do Modernismo, do que lhe adviria certo frescor poucas vezes alcançado pelos romances de Macedo, Alencar, entre outros.

O presente ensaio busca entender as Memórias de um sargento de milícias no contexto histórico de sua primeira aparição pública, ou seja, a segunda metade do século XIX. Trata-se de analisar a narrativa de Almeida de acordo com as condições materiais de publicação e recepção decorrentes de sua inscrição nas páginas do Correio Mercantil. A leitura atenta do romance em sua forma seriada nos permite identificar determinados procedimentos textuais de composição, especialmente os que caracterizam o processo que chamamos de performatização, ou seja, a personificação do escritor e a configuração do leitor externo e imediato. Perceptíveis na edição em livro, esses procedimentos acabam sofrendo, sem a devida contextualização, interpretações apressadas e, muitas vezes, anacrônicas — por isso a necessidade de cotejar os dois formatos. Sob esse aspecto, o nosso interesse recai menos na interpretação do texto das Memórias do que na reconstrução de suas condições, materialmente constituídas, de possibilidade de sentido.

Era em 1852

Em 27 de junho de 1852, o Correio Mercantil publicava na ―Pacotilha‖ o primeiro capítulo das Memórias de um sargento de milícias , intitulado ―Origem, nascimento e batizado‖, que se iniciava com a seguinte frase: ―Era no tempo do rei‖ (CM, 27/06/1852, p. 1) . A frase correspondia ao primeiro parágrafo. Nenhuma data era especificada, nenhuma conjuntura histórica era descrita, nada que tentasse circunscrever o momento referido de maneira mais precisa como era comum na tradição iniciada há cinco décadas pelo romance de Walter Scott. É possível que a expressão ―tempo do rei‖ tivesse certa vigência e não seria difícil para o leitor da década de 1850 fazer a associação, sem prejuízo da referência. Mesmo assim, o período compreendido pelo ―tempo do rei‖, 1808 a 1821, ou seja, treze anos, não dá conta do que se prognostica na apresentação do texto do romance na ―Pacotilha‖. Depois de refletir sobre o incômodo da obrigatoriedade do exórdio, o redator prossegue com o que ele chama de ―tarefa semanal‖, ―dando princípio à publicação de uma história que não deixa de ser longa, por ter tido o seu princípio no tempo do rei, e acabar no que nos achamos. O título da obra é este [...]‖ (CM, 27/06/1852, p. 1). No que se segue, a palavra ―Memórias‖ aparece em tipo maior do que as demais e, também, extremamente ornamentada. O texto, então, se inicia e o leitor da ―Pacotliha‖ sabe que a história começa em qualquer data abrangida pelo que corresponde ao ―tempo do rei‖ e deve terminar por volta de 1852, momento em que o leitor imediato se encontra.

O dado temporal da extensão narrativa é de conhecimento exclusivo do leitor do Correio Mercantil. Ele não é recuperado pela edição em livro, até porque não pertence ao texto do romance. Tal dado advém das circunstâncias específicas do periódico, na medida em que está baseado na articulação de determinadas possibilidades temporais proporcionadas pelo meio material sobre o qual o texto se inscreve, principalmente aquela que se relaciona à situação da narrativa que se desenrola a cada semana e não na integridade de um objeto acabado, o livro.

Cecília de Lara, no ensaio em que busca estabelecer o paralelo entre as Memórias de um sargento de milícias e o contexto jornalístico da época, detecta a mudança no emprego dos tempos verbais na passagem do periódico para o livro: trata-se da troca de algumas formas do presente para as do pretérito imperfeito. São vários os exemplos, mas transcrevemos apenas um. Depois de descrever a superioridade dos ―meirinhos do tempo do rei‖ em relação aos ―de hoje‖, o narrador ressalta a importância daqueles dentro do que ele chama de ―cadeia judiciária‖, em cujo outro extremo encontrar-se-iam ―os desembargadores‖. E conclui:

Ora, os extremos se tocam, e estes, tocando-se, fechavam o círculo dentro do qual se passavam os terríveis combates de citações, provarás, razões principais e finais, e toda essa máquina de trejeitos judiciais que se chama processo. (CM, 27/6/1852, p. 1, grifo do autor)

O trecho transcrito pertence ao texto do jornal. Na primeira edição em livro, o tempo do verbo da oração final está no imperfeito: ―se chamava o processo‖ (ALMEIDA, 1854, p. 6). Para Cecília de Lara, a troca verbal implica mudança no ―jogo contínuo do ontem-hoje‖ (LARA, 1979, p. 80) que se elabora na narrativa, mas também através do qual essa se constrói:

O leitor do folhetim, contemporâneo ao autor, se identificava imediatamente com tais situações, apresentadas como se ocorressem de modo idêntico na ocasião. Com a substituição do tempo verbal, no livro dá-se continuidade ao clima desencadeado com a frase de abertura: Era no tempo do rei. (LARA, 1979, p. 80)

Quer dizer, no jogo entre ontem e hoje, passado e presente, a mudança verbal evidencia que o texto de 1852-53 teria trabalhado mais efetivamente a aproximação entre fatos narrados e cotidianos, enquanto o texto de 1854-55, o distanciamento, conferindo à frase de abertura ―era no tempo do rei‖ certa perspectiva intemporal. Segundo a autora, a consequência desse procedimento é a ocorrência, no livro, do ―adensamento do clima de ficção‖ (id., p. 82) — ficção entendida aqui como função compensatória,

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