A Invenção de um Mundo
Por: Thiago Santos • 6/10/2019 • Artigo • 1.859 Palavras (8 Páginas) • 101 Visualizações
Texto publicado originalmente no catálogo da exposição "A Invenção de um Mundo - Coleção da Maison Européenne de la Photographie, Paris", sob curadoria de Eder Chiodetto e Jean Luc Monterosso, no Itaú Cultural, em 2009.
Sonho, memória, alucinação
Elogio da realidade contaminada
por Serge Tisseron
Em 12 de agosto de 1839, Arago profere, perante a Academia de Ciências, o célebre discurso em que afirma ter a França « dotado o mundo com liberalidade» ao dar-lhe a fotografia. Na defesa da nova técnica, o acadêmico comenta extensamente seu poder de gerar uma imagem fiel de tudo o que é apresentado diante da objetiva. Está dado o pontapé inicial da fotografia como « reprodução». O quadro é feito pelo pintor e o desenho, pelo desenhista, ao passo que a fotografia é descrita como feita apenas pela ação da luz, que William Henry Fox Talbot chamou de “the pencil of nature”[1]. E foi com toda naturalidade que, alguns anos depois, Nadar descreveu a fotografia como um “espelho que detém o tempo”.
Nos anos subseqüentes, esta idéia foi se acentuando até chegar às raias da caricatura. Admitiu-se que só contava o que se encontrava diante da objetiva, que o fotógrafo não contava para nada. Tratava-se, contudo, apenas de um mito fundador destinado a posicionar a fotografia em um espaço no qual ela não correria o risco de concorrer com as artes tradicionais, feitas pela mão do artista. Além disso, para que a pintura se libertasse da necessidade da representação figurativa, era preciso que outra atividade se encarregasse da tarefa, e esse foi o papel que coube à fotografia. A realidade, claro está, é diferente.
1. Entre realidade e ficção
A fotografia se constrói em um vaivém permanente entre realidade e ficção ou, se preferirmos, entre a realidade objetiva e essa outra forma de realidade que são as imagens interiores do fotógrafo. É esse vaivém que lhe confere um estatuto original desde o começo. Mas por que esse estatuto duplo - ou misto – foi ocultado por tanto tempo? Por que a cultura na qual a fotografia nasceu – ou seja, a do século XIX – era uma cultura do livro. Pois bem, em uma cultura desse tipo, os contrários se excluem, e nada pode ser ao mesmo tempo algo e o seu oposto. Era impensável que a fotografia pudesse estar simultaneamente do lado da realidade e do lado da ficção.
Assim, cada imagem tinha de escolher seu terreno. Ou estava do lado da realidade – dizia-se que era um documento –, ou do lado da ficção – sendo então um testemunho do mundo interior de seu criador. Nessa época remota, as imagens tinham de ser “de verdade” ou “de mentira”.
Mas o que era verdade em uma cultura do livro não é mais na cultura das telas: aqui, os contrários coexistem. E esta cultura produziu, naturalmente, uma expressão para designar uma imagem nem totalmente real, nem totalmente ficcional: “realidade mista.” Com isso, o obstáculo epistemológico que impedia de pensar o estatuto contaminado da fotografia por fim caiu…
O menor paradoxo do digital não é ter libertado a fotografia analógica de um jugo ideológico que a impedia de pensar sua originalidade.
2. A realidade mista
A expressão “realidade mista” vem da cultura digital. Sua história tem quatro episódios.
Em um primeiro momento, falava-se de imagens virtuais para indicar as produções resultantes de tecnologias digitais. Mas esta definição foi logo abandonada porque as imagens presentes em um monitor são tão reais quanto as do cinema tradicional ou da pintura, mesmo se seu suporte é diferente. Aliás, não se qualificam as gravações sonoras digitais de “música virtual”! Em compensação, a particularidade das imagens fabricadas por meio da ferramenta digital é poder figurar com o mesmo realismo tanto objetos reais – ou seja, que existem na realidade – quanto objetos que não existem. Uma câmera digital de fato pode reproduzir um objeto real, como um copo ou uma garrafa, mas a tecnologia digital também pode dar a um objeto imaginário – como um dragão – uma perfeita aparência de realidade. Esses objetos que não existem, mas aos quais a digitalização dá um aspecto real, foram chamados de objetos virtuais. Era a segunda etapa.
Em um terceiro momento, a reunião de objetos virtuais em um cenário igualmente virtual foi qualificada de realidade virtual. Por fim, falou-se de realidade mista para designar os espaços em que a realidade virtual – que só existe por suas imagens – se cruza com imagens da realidade real – que tem existência independente.
Hoje a expressão “realidade mista” é usada para indicar todas as áreas de aplicação da criação digital, notadamente a fotografia. Mas não nos enganemos. A fotografia propõe uma realidade mista desde sua origem, porque nela realidade e ficção estão de tal modo imbricadas que é impossível separá-las. Esta interpenetração faz com que tenha uma relação privilegiada com três espaços interiores também eles colocados sob o signo da indistinção : sonho, memória e alucinação.
3. As encenações do sonho
O sonho é uma realidade fundamentalmente mista. Justapõe imagens de objetos reais segundo uma lógica que nada tem a ver com a realidade, pois é a lógica do desejo. Neste sentido, Freud utilizava a metáfora do “capitalista” e do “empresário”. Um fornece materiais – as lembranças da vigília – e o outro os reúne: é o papel do desejo do sujeito que sonha. No final, as imagens da realidade e as do desejo são tratadas exatamente da mesma maneira. Motivo pelo qual Freud fala, a este respeito, de “outra cena”. Por exemplo: em um sonho, minha avó, recém-falecida, pode aparecer em seu ambiente cotidiano, mas com asas de borboleta como se fosse alçar vôo. E minha cama pode ter quatro patas porque, ao adormecer, pensei que gostaria de cavalgar.
O mesmo ocorre na fotografia. O papel do capitalista é desempenhado pelas imagens da realidade, e o do empresário, pelo desejo do criador que as dispõe de forma a dar vida a uma realidade que até então não existia em lugar algum. Por exemplo: Joel-Peter Witkin justapõe portadores de deficiência, animais empalhados e figuras pintadas de maneira a atenuar as diferenças que os opõem. Em suas imagens, tudo adquire aspecto de verdadeiro… ou de falso, cabe a cada um decidir. Essas imagens são o reino da realidade contaminada.
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