Ministério do Distrito Federal e Territórios
Tese: Ministério do Distrito Federal e Territórios. Pesquise 862.000+ trabalhos acadêmicosPor: • 24/11/2013 • Tese • 3.671 Palavras (15 Páginas) • 457 Visualizações
CASO DA MORTE DO INDÍGENA PATAXÓ - HÃ-HÃ-HÃE GALDINO JESUS DOS SANTOS
Damásio de Jesus
Outubro/1997
ENSAIO SOBRE O DOLO EVENTUAL, O PRETERDOLO E A CULPA CONSCIENTE
PARECER SOLICITADO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO
DAMÁSIO E. DE JESUS
PROCESSO-CRIME N. 17.901 - TRIBUNAL DO JÚRI DE BRASÍLIA
AUTORA: JUSTIÇA PÚBLICA
ACUSADOS:
CONSULENTE:
MINISTÉRIO PÚBLICO DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS
ÍNDICE: 1. A tutela legal do direito à vida. 2. O fato. 3. O fato típico. 4. A teoria finalista da ação. 5. A decisão desclassificatória. 6. O dolo eventual. 7. Crime culposo e preterdoloso. 8. Culpa consciente. 9. Culpa consciente e dolo eventual: diferenciação. 10. A hipótese dos autos: responsabilidade penal a título de dolo eventual. 11. Respostas aos quesitos. 12. Conclusão.
A solidariedade que mata ("um índio é tão bom quanto outro").
Ruth Morris, atualmente Diretora Executiva da Sociedade John Howard de Toronto e ligada a estudos e programas penitenciários do Canadá, conta-nos que numa de suas visitas a presídios perguntou ao diretor local sobre Bill, um indígena seu conhecido. Rindo, o diretor lhe explicou que Bill, naquela semana, estava cumprindo pena no lugar de seu irmão, condenado por embriaguez. Recriminando o fato, Ruth recebeu a seguinte explicação: quando os índios têm alguma coisa de bom, repartem entre si; quando não têm, pedem a alguém que tenha; recebendo, distribuem entre si (no Brasil, no mesmo sentido: FERNANDO PORTELA e BETTY MINDLIN, A questão do índio, São Paulo, Editora Ática, 1997, p. 23). Da mesma forma, o mal é coletiva e solidariamente repartido entre eles. A pena criminal do homem branco é imposta, segundo a Filosofia de vida indígena, como um mal sobre toda a tribo, não somente sobre o autor do delito. A infração penal, ensina-nos HANS JOACHIM SCHNEIDER, "não é tanto um problema individual, é também um problema que afeta o grupo" ("La victimación de los aborígenes en la Australia Central", Revista de Derecho Penal y Criminología, Madri, Universidad Nacional de Educación, 1991, n. 1, p. 363, n. 3.3). A pena não é individual, é coletiva. Logo, repartem entre eles o seu cumprimento. São solidários no bem e no mal. E a Justiça aceita a substituição, pois "um índio é tão bom quanto outro" (one indian's as good as another) (RUTH MORRIS, Crumbling walls, Why prison fail, Nova York, Mosaic Press, 1989, Native people and the Canadian Justice System, p. 98).
Pataxó - Hã-Hã-Hãe Galdino Jesus dos Santos morreu porque era indígena, porque era solidário. Estava em Brasília à procura do bem para sua tribo, tratando do andamento das ações judiciais relativas à posse e propriedade das terras onde morava. A solidariedade o matou. E as chamas que o consumiram não mataram só o homem. Atingiram a comunidade Pataxó, porque "um índio é tão bom quanto outro".
C O N S U L T A
O Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, por intermédio de seu Procurador-Geral de Justiça em exercício, Dr. Romeu Gonzaga Neiva, nos autos do processo-crime n. 17.901, que trata da ação penal promovida pela Justiça Pública contra ..., por delito de homicídio doloso qualificado e crime especial de corrupção de menores, remetendo-nos peças do procedimento, solicita nosso parecer a respeito da respeitável decisão de fls., que houve por desclassificar a infração penal mais grave (homicídio qualificado por três circunstâncias) para lesão corporal seguida de morte, apresentando os seguintes quesitos:
"1. Quanto à contribuição para o crime:
1.1 Ante as provas apresentadas, pode-se afirmar que algum dos acusados não contribuiu para o evento criminoso? Qual(is) o(s) acusado(s)?
1.2 Ante as provas apresentadas, há elementos que permitem afirmar que algum dos acusados concorreu para o crime mediante participação de menor importância ou quis participar de crime menos grave? Qual(is) o(s) acusado(s) e qual (is) o(s) crime(s)?
2. Quanto ao elemento anímico:
2.1 Ante as provas apresentadas, os acusados agiram com dolo de homicídio (animus necandi)?
2.2 Ante as provas apresentadas, se afirmativa a resposta ao quesito anterior, o dolo se configura em sua modalidade direta ou eventual (os acusados quiseram ou assumiram o risco de matar a vítima)?
2.3 Ante as provas apresentadas, se afirmativa a resposta ao primeiro quesito, e estabelecida a modalidade do dolo na resposta ao segundo quesito, sabido que no Direito Penal brasileiro não há diferenciação de natureza da responsabilidade de quem quer diretamente (dolo direto) ou assume o risco de produzir (dolo eventual) um resultado, há justificativa legal para resposta penal (condenatória, desclassificatória ou absolutória) diversa em uma ou outra hipótese?
2.4 Ante as provas apresentadas, os acusados poderiam ter agido com culpa (consciente ou inconsciente)?
2.5 Na eventualidade de se haver afirmado que os acusados agiram com dolo eventual, quais os elementos que permitem afastar a culpa (consciente ou inconsciente) e afirmar a existência do dolo eventual?
3. Quanto às questões processuais:
3.1 Ante as provas apresentadas, pode-se afirmar a presença dos elementos necessários à pronúncia dos réus para julgamento pelo Tribunal do Júri?"
Passamos a dar nosso parecer.
P A R E C E R
1. A tutela legal do direito à vida
O direito à vida, juntamente com diversos direitos humanos fundamentais, há muito foi consagrado nos textos legais históricos. A Magna Charta Libertatum, outorgada por João Sem-Terra em 15 de Junho de 1215, previa-o entre seus 61 itens. Da mesma forma, a Petition of Rights de 7 de junho de 1628.
Posteriormente, as históricas declarações norte-americanas enalteceram definitivamente o direito à vida. A Declaração de Direitos de Virgínia, de 16 de junho de 1776, expressamente previa em sua Seção I: "Todos os homens são por natureza igualmente livres e independentes e têm certos direitos inatos de que, quando entram no estado de sociedade não podem, por nenhuma forma, privar ou despojar a sua posterioridade, nomeadamente o gozo da vida e da liberdade, com os meios de adquirir e possuir a propriedade e procurar e obter felicidade e segurança". E a Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, de 4 de julho de 1776, proclamou: "consideramos de per si evidentes as verdades seguintes: que todos os homens são criaturas iguais; que são dotados pelo seu Criador com certos direitos inalienáveis; e que, entre estes, se encontram a vida, a liberdade e a busca da felicidade...".
A Declaração francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789, proclamava a defesa solene dos direitos naturais do homem, especialmente à vida, inalienáveis e sagrados.
Importante destacar um dos considerandos da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, proclamada em 10 de dezembro de 1948: "Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos da pessoa resultam em atos bárbaros que ultrajam a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que as pessoas gozem de liberdade de palavra, de crença e de liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do homem comum". Em seu art. III, previa expressamente: "Toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal".
O Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, de 16 de dezembro de 1966, ratificado pelo Brasil em 24 de janeiro de 1992, determina em seu art. 6.° que "o direito à vida é inerente à pessoa humana. Este direito deverá ser protegido pela lei. Ninguém poderá ser arbitrariamente privado de sua vida".
A Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969, também ratificada pelo Brasil em 25 de setembro de 1992, estipula em seu art. 4.°: "Direito à vida. 1. Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente".
A Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento, de 4 de dezembro de 1986, em seu art. 5.°, prevê: "Os Estados tomarão medidas firmes para eliminar as violações maciças e flagrantes dos direitos humanos". Por sua vez, a Declaração e Programa de Ação de Viena, de 25 de junho de 1993, estipula em seu item 31 a necessidade de garantir-se aos povos indígenas a plena e livre participação em todos os aspectos da sociedade.
No Brasil, a Carta Política do Império, de 24 de março de 1824, e a Constituição da República, de 24 de fevereiro de 1891, respectivamente, em seus arts. 179 e 72, protegiam todos os direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros, dentre eles o mais precioso, o direito à vida. Igualmente, era protegido pelo art. 113 da Constituição da República de 16 de julho de 1934, ao proclamar a inviolabilidade dos direitos concernentes à segurança individual e pelo art. 122 da Constituição de 10 de novembro de 1937. A Carta Magna de 18 de setembro de 1946, em seu art. 141, caput, assegurava "aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida" etc.
O art. 150, caput, da Constituição do Brasil, de 24 de janeiro de 1967, dispunha "aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade", redação mantida de forma idêntica pelo art. 153 da Emenda Constitucional n. 1, de 17 de outubro de 1969.
Por fim, a Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988, proclama em seu art. 5.°, caput, que "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida..."
O exercício do direito à vida é protegido indistintamente, independentemente de cor, raça, religião ou condições pessoais de procedência. Nossa Carta Magna, dando prevalência à "dignidade da pessoa humana" (art. 1.º, III), assegura-nos o exercício do "bem, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação" (art. 3.º, IV). Quanto aos indígenas, dedica-lhes um capítulo inteiro, conferindo-lhes direitos necessários ao seu "bem-estar" e "reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições" (art. 231, § 1.º, do Capítulo VIII do Título VIII).
Asseguramos, pois, aos indígenas, os mesmos direitos que gozamos, respeitados seus usos, costumes e tradições.
2. O fato
Os acusados, jovens, passeando de carro em Brasília, à noite, por volta das 3h00 da madrugada, resolveram fazer, segundo eles, uma "brincadeira", pondo fogo num suposto mendigo que dormia num banco de um ponto de ônibus. Foram a um posto de gasolina e compraram dois litros de álcool, colocando-os em dois vasilhames de plástico. Mas não executaram o fato de imediato. Rondaram pela cidade e, duas horas depois, por volta das 5h00, dirigiram-se ao local onde a vítima se encontrava. Esconderam o automóvel. Atravessaram a rua e derramaram líquido em Galdino Jesus dos Santos, indígena Pataxó - Hã-Hã-Hãe, que dormia. Riscaram fósforos e o incendiaram, produzindo-lhe a morte.
3. O fato típico
Para que haja crime é preciso, em primeiro lugar, uma conduta humana positiva ou negativa. Mas nem todo comportamento do homem constitui delito. Em face do princípio de reserva legal, somente os descritos pela lei penal podem assim ser considerados. Portanto, por exemplo, a subtração de coisa com a simples intenção de usá-la (furto de uso) é fato irrelevante para a nossa legislação penal, pois não se subsume à norma incriminadora do art. 155 do Código Penal. Falta-lhe o fim de assenhoreamento definitivo (o animus rem sibi habendi), contido na expressão "para si ou para outrem" do tipo. Sem ele o fato não se ajusta à norma. É atípico. Desta forma, somente o fato típico, i. e., o fato que se amolda ao conjunto de elementos descritivos do crime contido na lei, é penalmente relevante. Não basta, porém, que o fato seja típico para que exista crime. É preciso que seja contrário ao direito, antijurídico. O legislador, tendo em vista o complexo das atividades do homem em sociedade e o entrechoque de interesses, às vezes permite determinadas condutas que, em regra, são proibidas. Assim, não obstante enquadradas em normas penais incriminadoras, tornando-se fatos típicos, não ensejam a aplicação da sanção. Por exemplo: A, em legítima defesa, atira em B, matando-o. O fato se enquadra na descrição legal do homicídio: é típico. Mas não basta seja típico, necessita também ser contrário à ordem jurídica. E, no caso, concorre uma causa de exclusão da antijuridicidade prevista nos arts. 23, II, e 25 do estatuto penal. Excluída a antijuridicidade, não há crime. Resulta que são características do crime sob o aspecto formal: 1.º) o fato típico e 2.º) a antijuridicidade. Nesse sentido: MANOEL PEDRO PIMENTEL, "A culpabilidade na dogmática penal moderna", RJTJSP, 124:19 e 31, n. 7; CELSO DELMANTO, RENÉ ARIEL DOTTI, JUAREZ TAVARES, JOSÉ FREDERICO MARQUES e LUIZ FLÁVIO GOMES.
Fato típico é o comportamento humano (positivo ou negativo) que provoca um resultado (em regra), e é previsto na lei penal como infração. Assim, fato típico do homicídio é a conduta humana que causa a morte de um homem. Por exemplo: A incendeia o corpo de B, que vem a morrer em face dos efeitos das queimaduras. O fato se enquadra na descrição legal simples do art. 121 do Código Penal: "Matar alguém". Assim, o fato típico é composto dos seguintes elementos:
1.º) conduta humana dolosa ou culposa (no exemplo: pôr fogo na vítima para matá-la);
2.º) resultado (morte);
3.º) nexo de causalidade entre a conduta e o resultado (entre a conduta de incendiar e a morte);
4.º) enquadramento do fato material (conduta, resultado e nexo) a uma norma penal incriminadora (art. 121 do Código Penal).
Não há controvérsia nos autos a respeito da presença dos elementos do fato material: conduta, resultado e nexo de causalidade. Os pontos a discutir residem no elemento subjetivo-normativo (dolo ou culpa) e na conseqüente tipicidade (crime doloso ou preterdoloso).
A decisão desclassificatória, entendendo não existir dolo eventual no tocante ao resultado morte, desclassificou o crime para lesão corporal seguida de morte (delito preterdoloso ou preterintencional). Para tanto, seguiu a seqüência da teoria da ação finalista.
4. A teoria finalista da ação
Realmente, nosso Código Penal, na reforma de 1984, filiou-se à orientação finalista da ação, deslocando o dolo e a culpa do terreno da culpabilidade para o campo do tipo penal. Em face disso, considerado o crime como fato típico e antijurídico, o primeiro elemento do primeiro é a conduta dolosa ou culposa. Assim, o comportamento é considerado como toda ação ou omissão humana, dolosa ou culposa, conscientemente dirigida a uma finalidade. Assim, para que um fato seja típico, é preciso que haja dolo ou culpa, sem o que não há crime.
O art. 18 do Código Penal, em seus incisos I e II, demonstra claramente esta tendência quando prevê a existência, sob os aspectos subjetivo e normativo, de apenas duas modalidades de crime: o doloso e o culposo, desconhecendo delito que não contenha dolo ou culpa. Do mesmo teor é o art. 20 do estatuto penal, ao determinar que o erro sobre os elementos do tipo legal exclui sempre o dolo e, quando inevitável, também a culpa. Em conseqüência, na última hipótese exclui-se também o fato típico. Ora, se o dolo e a culpa não estivessem no fato típico sua ausência jamais o excluiria.
A doutrina finalista, que revolucionou o Direito Penal moderno e acabou adotada pela nossa legislação, foi proposta inicialmente por HANS WELZEL em trabalho publicado em 1931 com o título Kausalitat und Handlung ("Causalidade e ação"). Considerou que toda ação humana é o exercício de uma atividade finalista: "La finalidad se basa en que el hombre, sobre la base de su conocimiento causal, puede prever en determinada escala las consecuencias posibles de una actividad, proponerse objetivos de distinta índole y dirigir su actividad según un plan tendiente a la obtención de esos objetivos" (La Teoria de la Acción Finalista, Buenos Aires, Editorial Depalma, 1951, trad. de Eduardo Friker, p. 10). Assim, como os seres humanos são entes dotados de razão e vontade, tudo o que fazem é fruto de um livre impulso racional e volitivo. Dissociar a vontade da conduta humana é equiparar o homem aos animais irracionais ou aos fenômenos da natureza. A vontade passa a ser a força motriz de toda ação ou omissão humana, de maneira que, excluída, não existe conduta. A finalidade, por sua vez, é o leme que dirige e orienta o comportamento até o objetivo determinado. Baseia-se o finalismo, portanto, na premissa maior de que o Direito Penal só empresta relevo aos comportamentos humanos que tenham na vontade a sua força propulsora. As pessoas humanas, seres racionais, conhecedoras da lei natural de causa e efeito, sabem que de cada comportamento pode advir um resultado distinto. Assim, conscientes dos processos causais e sendo dotadas de razão e livre arbítrio, podem escolher entre um ou outro comportamento. Ex.: se pretende incendiar alguém, o autor tem opção de adquirir ou não o combustível inflamável. É precisamente nisso que se funda o ordenamento jurídico. Assentado no princípio da evitabilidade, não se preocupa o direito criminal com os resultados decorrentes do caso fortuito ou da força maior, nem com a conduta realizada mediante coação física ou mesmo com os atos derivados de puro reflexo, porque nenhum deles poderia ter sido evitado.
Hoje, não se pode mais considerar a existência de crimes com desprezo total da vontade, como se as pessoas não fossem dotadas de razão e de livre arbítrio e como se todos os resultados, a priori, fossem idênticos. Em nosso ordenamento jurídico, é impossível pretender-se a responsabilidade penal de alguém sem que tenha agido com dolo ou culpa. Sem dolo ou culpa não há conduta. Sem conduta não há fato típico e, sem este, não existe crime. Punir alguém, prescindindo-se do dolo e da culpa, importa sancionar uma pessoa que não cometeu crime, violando o princípio constitucional de reserva legal (art. 5.º, XXXIX, da Constituição Federal). Atualmente, a legislação penal brasileira repele qualquer forma de responsabilidade objetiva, ou seja, qualquer possibilidade de se punir o agente sem que tenha concorrido com dolo ou culpa para o resultado. Atualmente, LUIZ VICENTE CERNICCHIARO reforça a tese democrática: "O Direito Penal moderno realça, cada vez mais, a importância da responsabilidade subjetiva, banindo categoricamente a responsabilidade objetiva" (Direito Penal na Constituição, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2ª ed., p. 75).
5. A decisão desclassificatória
Seguindo os passos da decisão proferida na fase da pronúncia (fls.), verifica-se que, para considerar a ausência de dolo eventual quanto à morte da vítima (homicídio doloso), atribuindo a imputação normativa à culpa dos acusados, levou em conta os seguintes argumentos para concluir pela presença de lesão corporal seguida de morte (Código Penal, art. 129, § 3.º):
1.º - o fogo normalmente não mata;
2.º - os réus adquiriram dois litros de álcool e derramaram um na grama;
3.º - após pôr fogo na vítima, ficaram afobados e desesperados, atitude interna que não se coaduna com o dolo de matar;
4.º - o caráter dos agentes e seus depoimentos prestados imediatamente após o fato "demonstram que não havia indiferença com a ocorrência do resultado";
5.º - o resultado "morte lhes escapou à vontade", só podendo a eles ser atribuído pela "previsibilidade" (referindo-se à culpa);
6.º - "Mesmo sabendo perfeitamente das possíveis e até mesmo prováveis conseqüências do ato impensado, "não estava presente o dolo eventual";
7.º - os acusados "nunca anuíram ao resultado morte" (fls. ).
Em suma, apreciando a prova dos autos, a respeitável decisão entendeu haver, quanto à morte da vítima, culpa e não dolo eventual.
6. O dolo eventual
Dolo é a vontade de concretizar as características objetivas do tipo. Constitui elemento subjetivo implícito do tipo (STF, Inq. 380, rel. Ministro Marco Aurélio, DJU 18.12.92, p. 24373; STJ, RHC 1.914, DJU 26.4.93, p. 7222; STJ, Recurso de Habeas Corpus 1.248, 6.ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, j. 28.9.92, DJU 26.4.93, p. 7222). Não é simples representação do resultado, o que constitui um acontecimento psicológico. Exige representação e vontade, sendo que esta pressupõe aquela, pois o querer não se movimenta sem a representação do que se deseja. Assim, não basta a representação do resultado, exigindo-se vontade de realizar a conduta e de produzir o resultado (ou assumir o risco de produzi-lo). Possui, pois, dois elementos:
1.º - cognitivo: conhecimento dos elementos objetivos do tipo;
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