GÍRIAS, HIBRIDIZAÇÕES, NEGOCIAÇÕES, NEGAÇÕES: O DISCURSO COMO OBJETO E LUGAR DE DISPUTAS NA ARENA DA CULTURA
Trabalho Universitário: GÍRIAS, HIBRIDIZAÇÕES, NEGOCIAÇÕES, NEGAÇÕES: O DISCURSO COMO OBJETO E LUGAR DE DISPUTAS NA ARENA DA CULTURA. Pesquise 861.000+ trabalhos acadêmicosPor: andressalacerda • 23/2/2015 • 5.783 Palavras (24 Páginas) • 1.250 Visualizações
GÍRIAS, HIBRIDIZAÇÕES, NEGOCIAÇÕES, NEGAÇÕES: O DISCURSO COMO OBJETO E LUGAR DE DISPUTAS NA ARENA DA CULTURA
Ana Lucia Enne1 Andressa Lacerda2
Resumo: nossa proposta, neste artigo, é abordar usos da linguagem, em especial a gíria e os neologismos, na cultura popular, com destaque para manifestações musicais e sua apropriação via mídia. A partir de alguns mapeamentos, pretendemos demonstrar como o discurso é utilizado como objeto e lugar de disputa na arena da cultura, possibilitando aos sujeitos posicionados utilizarem a linguagem para participarem, cultural e politicamente, do jogo identitário, através das mais diversas táticas e estratégias, por vezes contrastando, noutras negociando, hibridizando, ou ainda desmascarando o próprio papel da linguagem neste processo.
Palavras-chave: discurso, cultura, identidade.
Outubro de 2011. Em meio à entrevista com os dois líderes do movimento Enraizados,3 da Baixada Fluminense, para a pesquisa sobre usos e práticas de comunicação entre jovens da região,4 um trecho nos chamou a atenção. Nele, Dudu de Morro Agudo, rapper e fundador do Enraizados, defendia o uso da gíria, de um vocabulário específico do hip-hop, como uma estratégia de legitimação política e
1 Professora do curso de Estudos de Mídia e da Pós-graduação em Comunicação, ambos da UFF. anaenne@gmail.com.
2 Graduanda em Estudos de Mídia/UFF. Bolsista de Iniciação Científica pelo CNPq/PIBIC/UFF. andressa@estudosdemidia.com.br.
3 Entrevista realizada, em outubro de 2010, na sede do Enraizados, em Morro Agudo/Nova Iguaçu, com Dudu de Morro Agudo e Dumontt, ambos fundadores e principais lideranças do movimento, que conjuga hip-hop e outras manifestações culturais e sociais. O Enraizados, criado há cerca de dez anos, foi, nos últimos anos, contemplado com diversos editais (dentre eles uma série ligados ao Programa Ponto de Cultura, do governo Federal) e prêmios, que permitiram a aquisição de equipamentos e a criação de cursos nas áreas de mídia, cultura e comunicação, bem como a criação e manutenção de um portal digital (http://www.enraizados.com.br/), uma webradio e um jornal impresso, dentre outras atividades.
4 O estudo sobre o Enraizados é parte fundamental da sub-pesquisa “Resistências e Re-existências: práticas de comunicação e construção de identidades entre jovens moradores da Baixada Fluminense”, coordenada pela prof. Dra. Ana Lucia Enne, da qual Andressa Lacerda Aquino Silva é bolsista CNPq/PIBIC/UFF desde agosto de 2010. Estas reflexões fazem parte de uma pesquisa maior, prevista para ser realizada de 2009 a 2012, denominada “Das casas de cultura às ONGs na Baixada Fluminense: uma reflexão sobre cultura, política, mídia, mercado e juventude”, contemplada em 2009 com o edital Jovem Cientista do Nosso Estado, da FAPERJ

cultural. A história contada por ele, em tom jocoso, porém revelador, que apresentaremos com detalhes no decorrer desse artigo, nos abriu uma perspectiva reflexiva acerca do papel da linguagem na construção e desconstrução das identidades que extrapolava, de certa forma, a proposta da pesquisa, e que agora, de forma ainda tateante, procuramos explorar neste artigo. Para isso, buscaremos conjugar, em termos analíticos, as apropriações discursivas não só dos Enraizados, ponto de partida de nossas observações, mas também de alguns outros nomes do campo musical brasileiro, e autores e conceitos que nos permitam discutir essas questões.
1. Usos da linguagem como estratégia política e cultural
Em sua seminal abordagem sobre a cultura popular como lugar de ambivalência e resistência, Mikhael Bakhtin chama a atenção, quando analisa o quadro cultural da França medieval e renascentista, para a existência de uma cosmovisão, típica daquele período e dos sujeitos que pretende mapear, que ele denomina de carnavalização. O carnaval seria, na concepção proposta por Bakhtin, mais do que uma festa, embora também uma festa. Seria uma visão de mundo que abarcaria uma série de manifestações, a festa uma delas, e, dentre outras, a linguagem. Nas palavras do autor, referindo-se à cultura carnavalesca:
No que tange à linguagem, as características acima listadas encontrariam lugar de realização em diversas estratégias: a paródia, desviando os sentidos primeiros das palavras, seria uma delas; da mesma forma, a inversão, o duplo sentido, a ambivalência, a blasfêmia, as grosserias, os insultos, os neologismos seriam ferramentas poderosas de utilização da linguagem como desconstrução de um mundo dado e oficial e sugestão de novas possibilidades discursivas, quase sempre conotando inversão e desestrutura deste mundo ordenado. Diz Bakhtin: “O mundo infinito das formas e das manifestações do riso opunha-se à cultura oficial, ao tom sério, religioso e feudal da época” (BAKHTIN, 1987: 3). Dentre estas formas e manifestações a cultura, a linguagem seria instrumento fundamental de invenção e inversão, poder criador e potencial destruidor, capaz de inovar sem perder o contato com a realidade dada, propor rupturas sem desligar-se por completo da ordem instaurada a qual pretendia subverter, mas da qual também iria beber. Segundo ele, as situações de contato estabelecidas pela cultura carnavalizada embaralham as hierarquias e criam um novo formato de interação e comunicação social. E, “como resultado, a nova forma de comunicação produziu novas formas lingüísticas:
gêneros inéditos, mudanças de sentido, ou eliminação de certas formas desusadas, etc. É muito conhecida a existência de fenômenos similares na época atual” (idem: 14).
Também Hommi Bhabha destacará, em suas discussões sobre o mundo pós- colonial, para o papel decisivo da linguagem na luta pelo direito à significação. A reapropriação da palavra, neste movimento, é tão importante quanto o deslocar do sentido à palavra já dada. A blasfêmia, como enfrentamento do sacralizado, da sagrada fala oficial, vai desnudar o rei e a fala real, puxando para o nível concreto da realidade os baixios apagados, esmagados, esmaecidos. Diz Bhabha: “A blasfêmia vai além do rompimento da tradição e substitui sua pretensão a uma pureza de origens por uma poética de reposicionamento e reinscrição” (BHABHA, 1998: 309). Na cultura carnavalizada, a linguagem reinventada reposiciona o sujeito e seu corpo no jogo social, pois quase sempre trata-se
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