Iluminismo Ou Barbarie- Rouanet
Dissertações: Iluminismo Ou Barbarie- Rouanet. Pesquise 862.000+ trabalhos acadêmicosPor: 4n4p • 27/12/2014 • 9.614 Palavras (39 Páginas) • 706 Visualizações
ILUMINISMO OU BARBARIE
A CRISE DA CIVILIZAÇÃO MODERNA
(Do livro de Sérgio Paulo Rouanet “Mal-estar na modernidade”. São Paulo, Cia das Letras, 1993, pp. 9-45)
Todos dizem que a modernidade está em crise. É um lugar-comum, mas como outros lugares-comuns este pode ser até verdadeiro, desde que se entenda bem o alcance do diagnóstico. O que existe atrás da crise da modernidade .é uma crise de civilização. O que está em crise é o projeto moderno de civilização, elaborado pela Ilustração européia a partir de motivos da cultura judeu-clássica-cristã aprofundado nos dois séculos subseqüentes por movimentos como o liberal-capitalismo e o socialismo.
O projeto civilizatório da modernidade tem como ingredientes principais os conceitos de universalidade, individualidadee autonomia. A universalidade significa que ele visa todos os seres humanos, independente¬mente de barreiras nacionais, étnicas ou culturais. A individualidade signi¬fica que esses seres humanos são considerados como pessoas concretas e não como integrantes de uma coletividade e que se atribui valor ético posi¬tivo à sua crescente individualização. A autonomia significa que esses seres humanos individualizados são aptos a pensarem por si mesmos, sem a tu¬tela da religião ou da ideologia, a agirem no espaço público e a adquirirem pelo seu trabalho os bens e serviços necessários à sobrevivência material.
Ora, esse projeto civilizatório está fazendo água por todas as juntas.
O universalismo está sendo sabotado por uma proliferação de particularismos — nacionais, culturais, raciais, religiosos Os nacionalismos mais virulentos despedaçam antigos impérios e inspiram atrocidades de dar in¬veja a Gêngis Khan. O racismo e a xenofobia saem do esgoto e ganham eleições.
A individualidade submerge cada vez mais no anonimato do conformismo e da sociedade de consumo: não se trata tanto de pensar os pensamentos que todos pensam; mas de comprar os videocassetes que todos com¬pram, nos avioes charter em que todos voam para Miami.
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A autonomia intelectual,_ baseada na visão secular do mundo, está sendo explodida pelo reencantamento do mundo, que repõe os duendes, em circulação, organiza congressos de bruxas, associa-se ao guia Michelin para facilitar peregrinações esotéricas a Santiago de Compostella e fornece horóscopos eletrônicos a texanos domiciliados no Tibet. A autonomia política é negada por ditaduras ou transformada numa coreografia eleitoral encenada de quatro em quatro anos. A autonomia econômica é uma men¬tira sádica para os três terços do gênero humano que vivem em condições de pobreza absoluta.
Marx disse que a Alemanha tinha vivido todas as contra-revoluções da Europa e nenhuma de suas revoluções. Podemos adaptar essa frase ao Brasil: estamos vivendo a revolta antimoderna que hoje grassa no mundo sem jamais termos vivido a modernidade.
O universalismo, entre nós, é sistematicamente repudiado por um nacionalismo cultural que parece ter sete fôlegos, Mal uma de suas variantes desaparece, outra toma o seu lugar. Foi assim que o nativismo setecentis¬ta foi substituído pelo indigenismo romântico, este pelo naturalismo de Sílvio Romero, este pelo jacobinismo florianista, este pelo movimento mo¬dernista, este pelo nacional-autoritarismo do Estado Novo, este pelo ISEB, este pelo CPC da UNE, este pelo chauvinismo do regime militar e este pela broa de milho. Se existe tema consensual no Brasil é certamente o de que temos que desenvolver nossa própria cultura e rejeitar modelos culturais estrangeiros. A bem da verdade, uma certa esquerda intelectual já esta mu¬dando de discurso, talvez por se dar conta da origem conservadora e do funcionamento fascistizante do topos da autenticidade nacional. Este, no entanto, continua vivíssimo como atitude social, e há muito já invadiu o país, entrando nas assembléias de estudantes, nos sindicatos de dentistas, nas academias de musculação, e como verdadeiro arrastão ideológico, nas praias da Zona Sul carioca.
A individualidade também não desperta entusiasmo. Em vez disso, há por lado um hiperindividualismo exasperado, mistura de lei de Gerson e de consumismo de Zona Franca. E por outro lado, uma busca reverente de raízes, uma confusa tentativa de recriar identidades afro-baianas, uma angústia diante da individualização e uma necessidade de remergulhar em totalidades mais ou menos tribais. Nos dois casos, há uma nostalgia da condição paradisíaca, estado adamítico em que o homem aderia ao todo. Onde fica esse paraíso? Para os hebreus, o Éden ficava em algum lugar entre o Sinai e o Eufrates. A geografia do antipersonalismo brasileiro é menos prestigiosa. Para o brasileiro em busca de agasalho comunitário, o paraíso fica entre Salvador e Porto Seguro. Já para o intrépido compra-doi'dehaidware eletrônico, ele se localiza no estado da Florida, em al¬gum ponto entre Miami e Orlando.
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A razão secular da Ilustração é outro valor em baixa. Mais que em outros países, está em marcha entre nós um grande projeto de sacrali¬zação do mundo. É o que se_nota no culto das pirâmides de cristal, na seriedade com que se consultam astrólogos e videntes, e na mitologização da psicanálise, que oscila entre os arquétipos de Jung e a reencarnação. Essas atitudes são compatíveis com posições políticas de esquerda, o que é uma homenagem à nossa flexibilidade intelectual. Conheci um antigo guerrilheiro que descobriu, numa sessão de análise, ser a reencarnação de Ramsés, o Grande. Um amigo petista consultou o I Ching para saber se Suplicy ia ganhar em São Paulo, e pensou seriamente em fundar dentro do Partido uma nova facção, denominada Travessia Esotérica. Os sincre¬tismos não são raros na história das idéias. No início do século, por exem¬plo, alguns intelectuais vienenses tentaram fundir Marx com Kant. Era o austromarxismo. No Brasil, antevejo uma fusão de Marx com a astrolo¬gia: é o astromarxismo.
A experiência recente de mais de vinte anos de ditadura militar tem impedido até agora uma desilusão com as instituições democráticas. Mas a politização não é o forte das gerações mais jovens. Há um certo risco de carnavalização da política: uma festa em que alguns adolescente saem periodicamente às ruas num simpatissíssimo protesto contra a corrupção e as altas mensalidades escolares, e no intervalo a letargia. É preciso convir que essa atitude apática se justifica pela forma de funcionamento entre nós da rotina democrática. Não há como vibrar com entusiasmo cívico quando se
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