Manuscriptus
Por: marconiman1975 • 21/9/2016 • Ensaio • 328 Palavras (2 Páginas) • 177 Visualizações
Manuscriptus
Ao deslizar, imóvel, pelos corredores brancos nessa maca móvel e nervosa, ouço silêncios ensurdecedores e falas mudas, e sinto o mórbido odor do éter no éden dos enfermos. Penso, no lento percurso do ligeiro leito com rodas, em ser assistido por mãos divinas. Tenho medo, mas vou em frente. Não há como recuar. Não me é facultado esse poder. Não há em mim qualquer resistência física, não há sequer expressão que denote força. Não tenho chances. Meu verbo é mudo, meu corpo é nulo, meu ser é surdo. O que sou aqui senão um doente?
Enquanto espero, e espero, pelas mãos que me assistirão, repenso nas distorções e desacertos que me envolvem, perseguindo, quem sabe, os responsáveis pelos equívocos do mundo, tentando dissecar, sem êxito, a complexa trama humana. Nessa viagem introspectiva, distraído, combalido, nem percebo que mãos já me tocam, sem ao menos perguntarem se as quero em meu corpo. Em seguida, um ar gélido invade o meu sangue. É do líquido transparente, fluido, que agora me hidrata. Sofro no soro que me alimenta. O que posso aqui senão sucumbir?
Cioso de que ali sou paciente. Dono de um corpo que só assiste. Sigo parado à espera da evolução. Perco a noção do tempo, mas não da questão do tempo. O instante ali parado é a prova de que o meu tempo é diferente do tempo dos outros. Quando esqueço que vivo estou, mãos me lembram de que ainda estou em mim, enquanto me lavam, antes que me levem dali.
O dia amanhece depois do anoitecer. E com ele mãos que me autorizam a sair. Ao deixar as paredes brancas daquele espaço insone, risco com a unha o revestimento do corredor, tatuando a dor que ali deixei. Na pausa continuada daquele gesto, pensei nas dores que convivi. Tatuei: o plural é a forma mais pedagógica de se aprender o singular. Quando fui paciente, troquei os pés pelas mãos. Quando fui embora, troquei as mãos pelos pés.
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