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O Discurso Literário

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Por:   •  15/8/2014  •  1.656 Palavras (7 Páginas)  •  270 Visualizações

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O Discurso Literário - 14/10/2010

Considerações

Peut-être me direz-vous: « Es tu sûr que cette légende soit la vraie ? » Qu’importe ce que peut être la réalité hors de moi, si elle m’aide à vivre, à sentir que je suis et ce que je suis. (Charles Baudelaire)

Esta nossa especulação é o que se pode chamar de tiro às escuras. Em primeiro lugar porque todo texto, por arrebatar cada leitor de forma distinta, não nos permite asseverar se conseguiremos, de fato, descer ao primeiro degrau do porão filosófico — que é o lugar que, ingenuamente, gostaríamos de alcançar.

Assusta-se o leitor, mas é justamente a ideia de porão que devemos aqui explorar; afinal, se os meandros por que transita todo o arsenal teórico-filosófico existente são vários e, se é verdade que as teorias da filosofia — por serem elas mesmas múltiplas — tecem diálogo favorável com outras áreas do conhecimento, de modo a comporem um lato mosaico, não intentamos alcançar outro sítio senão o porão mencionado: ambiente profundo, gruta da casa, ar denso.

Nossa busca, acreditamos, deve ser pelo profundo, por tudo aquilo que subjaz às aparências e que nos permite, de maneira real — ou pelo menos sensível — compreender a realidade que nos circunda. É claro que se nos dispuséssemos a explorar cada fresta que a realidade observável — tal qual dioneia vistosa e matreira — nos convida a fazê-lo, por certo encontrar-nos-íamos perdidos, já que a realidade — dual — não é composta apenas por uma porção apreensível, racional.

Temos de refletir, igualmente, se uma porção significativa de nossa existência não é aquela dita sensível. Sem dúvida, este colóquio, tal como se apresenta, nada mais é senão uma parrésia: afinal, o início de tais especulações ontológicas não remonta ao ano corrente de 2010 — tempos e tempos se passaram desde que o primeiro aventureiro, embrenhando-se na mata filosófica, dispôs-se a meditar sobre o assunto.

Mas, se revestirmos nossa postura justamente com a mesma ousadia de que lançaram mãos os filósofos helênicos, seremos levados a discorrer acerca da força do sensível. Afinal, em que medida é dada, à sensibilidade, a capacidade de compreender (e de fazer compreender) a realidade humana?

“Puxando-se a sardinha” para o campo de nossas inclinações, somos levados a pensar que a dúvida esboçada no parágrafo anterior pode ser elucidada, ao menos em parte — já que o esgotamento de um tópico em todas as suas faces é tarefa de loucos ou ignorantes —, pela literatura.

Ora, se o potencial desbravador da arte literária é incontestável, talvez se justifique, por exemplo, o arrebatamento em nós causado pelo conto Uma galinha, da escritora Clarice Lispector.

Clarice, grosso modo, pertence àquela constelação de pensadores que faz uso da escrita, da palavra-luz, do verbo-faísca, em prol de iluminação. Não nos cabe aqui transcrever, verbum ad verbum, o texto clariceano em questão — embora consideremos que a leitura desse espécime literário seja, na mínima das hipóteses, tarefa a ser cumprida.

O poder da palavra transcende o simples símbolo, sobreleva a superfície imediata das coisas e dos seres; em outras palavras, parece-nos que pensar em literatura é direcionar o pensamento justamente para um emaranhado sintático-semântico (que é o texto literário, bem lapidado) ao qual é dada a prerrogativa de desmistificar o mundo por meio da desmistificação de cada um — releia a epígrafe deste ensaio.

Daí Eagleton (2006) ter afirmado que pensar em literatura não é se perguntar o que o autor fez com o texto literário, mas também o que a obra fez com seu criador.

Longe de qualquer restrição, temos de considerar, inclusive, que também o discurso científico contribui com a compreensão da realidade; entretanto, não sendo este espaço adequado para trazermos à discussão qual das duas manifestações discursivas é mais importante do que outra, reservamo-nos o direito de permanecer em juste-milieu.

O discurso científico propriamente dito, de espírito racional, ao percorrer caminhos distintos para desvelar a realidade, mune-se de lentes próprias que, por sua vez, compõem o que Kuhn (1982) chamou de paradigma.

Abstendo-nos de pormenores, podemos resumir a teoria kuhniana que, sendo ampla e aplicável a diversos campos do conhecimento, julgamos ser de extrema importância.

Para Kuhn, paira um mito sobre a ciência que, em “condições normais”, possui diretrizes especulativas e teóricas universalmente validadas. Quando uma ciência constrói um arsenal de informações e de técnicas que, em princípio, parecem imutáveis, alcança o status da normalidade. Em suma, a ciência dita normal é aquela que possui parâmetros tais “[…] que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de [seus] praticantes” (KUHN, 1982, p. 12).

Não obstante, essa condição científica amena não permanece eternamente imóvel — ora, se afirmássemos o contrário cometeríamos um grande equívoco —, posto que não se deixa guiar pela inércia.

Por mais que, à superfície, determinada manifestação científica pareça estagnada — como se estivesse afundada em terreno alagadiço —, é no cerne de sua existência que reside o fervilhar de ideias e de novas possibilidades. Mas…

Conforme nos explica Kuhn, dificilmente uma sociedade científica — bem estabelecida, casada com aquele “partidão” ou vencedora da loteria — dispõe-se a alterar sua rota, a assumir que a agulha de sua bússola apresenta qualquer irregularidade. Isso significa que, ao sinal da primeira anomalia, há uma reação quase alérgica que visa a destruir a teoria intrusa, a substância irritante. Isso porque os paradigmas revestem-se, inevitavelmente, de certo preconceito, como nos dá a entender o seguinte fragmento da teoria de Kuhn:

De início, o sucesso de um paradigma — seja a análise aristotélica do movimento, os cálculos ptolomaicos das posições planetárias, o emprego da balança por Lavoisier ou a matematização do campo eletromagnético por Maxwell — é, em grande parte, uma promessa de sucesso que pode ser descoberta em exemplos selecionados e ainda incompletos.

A ciência normal consiste na atualização dessa promessa, atualização que se obtém ampliando-se o conhecimento daqueles fatos que o paradigma apresenta como particularmente relevantes, aumentando-se a correlação entre esses fatos e as predições do paradigma

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