Nosso Seiscentismo
Exames: Nosso Seiscentismo. Pesquise 862.000+ trabalhos acadêmicosPor: fco62 • 29/7/2013 • 3.676 Palavras (15 Páginas) • 220 Visualizações
“Nosso Seiscentismo” por Evaldo Cabral de Mello (Historiador)
Na história européia, seria difícil encontrar séculos sucessivos tão díspares como o XVI e o XVII. O primeiro é o século de ouro do Renascimento e do crescimento sem paralelo da economia ocidental, o ouro, o "século de ferro", como já o chamara Cervantes no umbral da depressão centenária que se iniciava quando ele publicou o D. Quixote. O contraste reproduziu-se na história brasileira, para não falar na hispano-americana.
Fernand Braudel observou certa vez que “a partir de meados do século XVII, tudo se passa, exagerando-se um pouco, como se a América tivesse sido abandonada pela Europa e entregue a seu novo destino, autônomo, meio europeu, meio indígena, obrigada a viver de si mesma ou quase, neste século que, segundo a belíssima fórmula de German Arciniegas, seria a Idade Média americana”.
Caberia indagar inversamente se não terá sido a América que começou a se introverter mais do que a Europa que começou a abandoná-la. O fenômeno, aliás, antecipou-se na América espanhola. A partir do derradeiro decênio de quinhentos, com a crise da produção mineradora, uma economia de "plantação", isto é, de unidades especializadas na produção de artigos para o mercado internacional, foi paulatinamente substituída por uma economia de "fazenda", vale dizer, de unidades especializadas no fornecimento de víveres às áreas mineradoras e aos núcleos urbanos coloniais. As exportações da Espanha para a América, que em quinhentos haviam sido principalmente de produtos agrícolas, passaram a ser de bens manufaturados. Destarte, a economia da metrópole e a da colônia deixaram de ser complementares, tornando-se competitivas. No plano cultural, o século XVII, no México como no Peru, assiste às primeiras afirmações de "criollismo", inclusive à descoberta e à valorização da herança indígena promovida pelos próprios descendentes de espanhóis. Na América portuguesa, esse processo ocorreria com algum atraso, devido inclusive ao fato de que, entre nós, e ao longo de quinhentos, a colonização concentrar-se no litoral, ao passo que na América espanhola ela ocupará de entrada os altiplanos ricos de metais preciosos. Braudel também inventou a expressão "o longo século XVI", que criou o precedente para alongamentos e encurtamentos cronológicos que fazem atualmente grande sucesso, como o que já fala no "curto século XX". O grande historiador francês queria dizer que o crescimento econômico e demográfico da Europa de quinhentos prolongara-se pelos dois primeiros decênios da centúria seguinte. Periodização que é, inclusive, válida para nós, quando se leva em conta que, em resposta ao que se passava na Europa, a fase inaugural de desenvolvimento da economia açucareira, setor então hegemônico da economia colonial, perdeu o fôlego herdado de quinhentos, aí pela altura de 1620, às vésperas do ataque neerlandês ao Brasil.
A quem perpassa as páginas dos cronistas, é irresistível a impressão de otimismo que transmite nosso quinhentismo. Se decolarmos da altura em que eles escreveram e aterrisarmos nos últimos anos de seiscentos, é sensível o contraste entre o estado de espírito das primeiras gerações de colonos e o de seus descendentes mazombos. Enquanto uns haviam respirado euforia, os outros acabrunham-se. Dessa tristeza coletiva dá testemunho inclusive a acepção que a palavra "mazombo", de origem africana e que fora inicialmente usada no Brasil para designar o filho do português nascido na terra, viria a tomar em Portugal, a de indivíduo soturno e macambúzio. Et pour cause. O século XVII foi o século mais ingrato, numa trajetória quadrissecular pouco invejável. Eminentemente contraditório, ao passo que, nas "capitanias de cima", víamos a ocupação encetada pela nação, os Países Baixos, que estava na dianteira do processo de desenvolvimento capitalista do Ocidente, nas "capitanias de baixo" e no Estado do Maranhão, os colonos portugueses achavam-se na contingência de ceder às condições do meio físico e social, isto é, de aceitar a experiência de um retrocesso cultural. À raiz da descoberta do Mundo Novo e da aspiração a criar deste lado do Atlântico uma Nova Lusitânia, seus antecessores do primeiro século haviam vivido uma espécie de Idade da Inocência, reputando-se o prolongamento americano de Portugal, ignorantes da sua própria condição de colonos e considerando-se tão castiçamente protugueses quanto quem mais o fosse no Minho ou nas Beiras, regiões de onde provinha, aliás, a maioria deles. Não se sabendo colonos, eles ainda não se podiam imaginar como opostos, pelas idéias ou pelos interesses, a seus contemporâneos do Reino.
Por mais louvada que fosse, em comparação com a da metrópole, a realidade da nova terra, embora encarada como diferente, não era vista como irredutível aos modelos de vida material e mental trazidos pelos colonos, mas como uma página em branco, a que se podia facilmente apor o selo da lusitanidade. Foi assim que a modalidade inicialmente assumida pelo sentimento local não consistiu, como ocorrerá depois, na afirmação da individualidade do Brasil, mas, ao contrário, na reiterada asserção da feição lusa que já caracterizaria a existência colonial nos seus núcleos principais. Isso se verificou inclusive ou, antes, sobretudo, em Pernambuco, onde o sentimento nativista virá, do século XVII em diante, a manifestar-se mais virulentamente que em qualquer outra parte da América portuguesa, o que parece paradoxal em vista do fato de que a capitania orgulhara-se de ser a Nova Lusitânia, vale dizer, a região mais profundamente marcada pelo cunho da metrópole. Uma coisa, aliás talvez tenha a ver com a outra. Inebriados pelos fumos de uma originalidade nacional, que, na verdade, é de invenção recente, os brasileiros deste final de século XX tendemos a esquecer que se a "identidade" do Brasil, como se costuma dizer com uma palavra pessimamente escolhida, de ranço metafísico, veio finalmente a se afirmar, este processo não constituiu algo que estivesse inscrito inapelavelmente na ordem das coisas, como se fosse a atualização de uma Idéia, assim mesmo com maiúscula, no sentido hegeliano. Ele levou muito mais tempo do que supomos, verificando-se, em todo o caso, a contrapelo do que haviam sonhado os colonos quinhentistas.
Ao longo de seiscentos, iniciou-se o ensimesmamento da América portuguesa. Uma visão superficial poderia associar o fenômeno à própria existência do monopólio colonial que, por definição, segregava o Brasil do mundo. Na realidade, o processo parece ter sido bem mais complexo. Em primeiro lugar, o monopólio já vigia no século XVI e, contudo, a colônia exibia
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