Sob a mesa de dissecação: Anatomia e fisiologia na era Moderna
Por: Letícia Leite • 14/6/2021 • Resenha • 3.599 Palavras (15 Páginas) • 186 Visualizações
Tema: Sob a mesa de dissecação: Anatomia e fisiologia na era Moderna
No presente texto, intencionamos realizar uma resenha crítica abordando o tema “Sob a mesa de dissecação: Anatomia e fisiologia na era Moderna”, tendo como base os seguintes textos: O cirurgião, o físico e as quebraduras: tratamento e cura de fraturas ósseas em dois manuais de medicina do século XVIII” escrito por Christian Fausto, Monique Palma, Rafael Dias da Silva Campos e o capítulo escrito por Rafael Mandressi intitulado “Dissecação e anatomia” presente na obra “História do Corpo: Da Renascença às Luzes” de Corbin, Courtine e Vigarello.
De acordo com Mandressi, foi na idade média que se iniciou novamente a prática de abrir cadáveres para o estudo da anatomia. A dissecação humana exercida no século III a.C. deixou de ser feita por 15 séculos, supostamente por uma proibição da igreja católica. Entretanto, mesmo que não houve imposição institucional das autoridades eclesiásticas, as dissecações, continua sempre aberta a possibilidade de que obstáculos de ordem cultural ligados ao cristianismo tenham travado o desenvolvimento da anatomia. Outro fator que também pode ser considerado responsável pelo bloqueio das práticas de dissecação é o descrédito dado às artes mecânicas dos cirurgiões da idade média.
Se a pergunta relacionada ao porque deixou-se de fazer dissecações não pode ser respondida, Mandressi afirma que devemos pensar no porque ela voltou a ser feita nesse momento. Considerando a dissecação como um meio natural para o conhecimento do corpo, podemos pensar que nos tempos que não houve a prática de dissecação significa que não havia a necessidade desse conhecimento, por isso, devemos pensar em como essa necessidade passou a constituir-se.
Segundo Mandressi o ponto de partida das hipóteses que podemos sugerir como motivo é a medicina greco romana, as traduções do arabe tiveram um papel de primeira importância na evolução do saber médico na Europa Latina, elas contribuíram decisivamente de modo particular na impregnação galênica da medicina medieval europeia. Do fim do século XI ao começo do século XIV, sob a influência deste conjunto de obras a posição dos conhecimentos anatômicos ganhou em clareza e em precisão. Mas a importância da anatomia não equivale necessariamente à importância das dissecações: “Entre a consciência da necessidade de conhecer bem as partes do corpo e o interesse de abrir cadáveres para chegar a esse conhecimento há um passo” (Mandressi, 2010, p. 417).
A abertura de cadáveres se dava com fins bem variados como o transporte dos restos mortais para serem enterrados na terra natal do defunto, para evisceração no quadro de um embasamento, para o exame pós morte a fim de estabelecer as causas da morte, as práticas distinguem-se uma das outras por sua intencionalidade que pode ser ritual e judiciária, mas têm em comum a época de introdução, entre os séculos XII e XIII. O autor afirma que procurar uma hipótese sobre a emergência das dissecações seria supor que elas apareceram quando a abertura de cadáveres foi estimulada pela curiosidade anatômica.
Segundo o autor, a vista e o tato são vias do conhecimento desde o fim do século XV, são proclamados pelos anatomistas a maneira de Galeno, como os fundamentos da nova ciência que eles pretendem edificar. Para Charles Estienne, em 1545, a verdade e os olhos são inseparáveis, ele afirma “veneramos Galeno como um deus e atribuímos muito talento a Versalio em anatomia”.
O autor explica o que foram os teatros de anatomia que tratam-se de anfiteatros temporários, situados no interior de um espaço amplo e arejado, com assentos dispostos em toda a volta, em forma de círculo, e os lugares atribuídos de acordo com a categoria dos assistentes, com um gerente que organizava e coordenava tudo, assim como guardas para impedir a entrada de importunos, o cadáver era colocado no centro numa bancada alta, num lugar iluminado e apropriado para o dissecador, ao lado da mesa de dissecar devia haver uma estrutura que permitia levantar o cadáver de tempos em tempos a fim de mostrar a exata situação e posição de cada uma das partes. Segundo o autor, descrições como essa tornaram- se comuns nas escritos da época, e afirma que não basta as dissecações públicas nos anfiteatros, para entender o império dos sentidos da anatomia renascente é preciso que o cadáver aberto possa ser colocado a vista a todo momento e na falta de cadáveres reais, recorriam a imagem.
Os sentidos constituem a estrutura do conhecimento anatômico, empírico e qualitativo, descobrindo formas, cores, texturas, consistências e temperaturas. A visão e o tato são as chaves da ciência dos corpos, onde se vê abolir a distância que separa o sábio da natureza. Entre os sentidos e o conhecimento não há espaço vazio, mas livros, que permitem ver porque eles dizem como ver. O corpo é atravessado por grades de leitura que vão se confluindo a medida que elas se acumulam ao longo do tempo, a anatomia desenha seu objeto primeiro regulando sua descrição sobre a trajetória do escalpelo, depois acrescentando a ordem de composição que marca um distanciamento do texto em relação a ação do dissecador.
Nas palavras do autor: “A ordem de composição, como se lê em muitos tratados corresponde a ordem da natureza. O relato anatômico deve pois começar pelas partes que a natureza fabrica em primeiro lugar, isto é, os ossos” (p. 431).
A anatomia não trata do corpo inteiro e contínuo, mas dividido em partes e membros, além disso, é importante deter-se as partes homogêneas, procedendo a uma sequência de divisão em cascata, a partir do corpo em sua totalidade. As partes homogêneas que são as partes compostas da mesma substância representam o resultado dessas divisões sucessivas, elas são “as partes menores que estão ao alcance dos sentidos. A divisão que é um gesto concreto executado no cadáver, é também a atualização de uma organização do pensamento: “A “parte” resulta da divisão do corpo cortado tanto peça laminado dissecado como pelo pensamento do anatomista” (p. 430).
No século XVII a definição de partes homogêneas como sendo as menores que estariam ao alcance dos sentidos, deixou de ser apropriada por conta da invenção do microscópio, a ampliação ótica permitia ver o que antes, a olho nu era invisível, desvelar a heterogeneidade do que se pensava ser uniforme, revelava partículas aninhadas em partes mínimas.
Isso acaba por tornar mais complexo o maquinário corporal, assim como as analogias das quais se serve a descrição anatômica. A mecanização do corpo progride inexoravelmente na literatura anatômica desde a segunda metade do século XVI, subentendida por alguns traços comuns fundamentais. É a ideia de um lado, de que basta entender bem a organização das partes para compreender as funções vitais e explicá-las. E de outro lado que o princípio de fragmentação traz, pela segmentação do corpo, os elementos constitutivos da máquina: dissecação e composição das partes/ desmontagem e montagem das peças.
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