Trabalho de Finanças corporativa
Por: Erika Silva • 13/9/2017 • Trabalho acadêmico • 4.318 Palavras (18 Páginas) • 643 Visualizações
- A CVM e a regulação dos mercados derivativos Características Gerais dos Derivativos
O conceito de risco é um dos pilares da gestão financeira. Sob a ótica das empresas, as expectativas de retorno em seus empreendimentos devem ser analisados em conjunção com os riscos envolvidos no negócio (ex: descasamento entre as moedas associadas a suas receitas de exportação e a seus custos de produção). Sob a ótica dos gestores de investimentos nos mercados financeiros, a identificação e mensuração do risco são essenciais para a correta avaliação do perfil dos investidores em relação a potenciais perdas (suitability), bem como para a adequada alocação e seleção de ativos em carteiras a partir do perfil identificado. Dadas as diferentes curvas de utilidade entre os agentes econômicos1 , o desenvolvimento de mercados especializados em mecanismos de transferências de risco ocorreu naturalmente. Para eventos típicos da vida civil (ex: desastres, morte, doenças que necessitem internação etc.), foram desenvolvidos produtos específicos pelo mercado segurador. Para os riscos inerentes aos mercados financeiros (ex: preços de ativos, crédito) foram desenvolvidos contratos derivativos. Os contratos derivativos podem ser celebrados em mercados organizados (ex: bolsas de valores e mercado de balcão) ou ser negociados de forma bilateral diretamente entre as partes envolvidas. Os contratos derivativos podem ser classificados em duas categorias gerais: compromissos a termo (forward commitments) e de exercício contingencial (contingent claims). Nos compromissos a termo, o comprador concorda em adquirir do vendedor um ativo subjacente em uma data futura específica por um preço pré-determinado na origem. Neste sentido, o contrato pode ser customizado, isto é, a transferência de risco nele contida pode refletir exatamente a preferência das partes (ex: contratos a termo, swaps, NonDeliverable Forward - NDFs), mas podem também ser padronizados pelas bolsas, que 1 Em microeconomia, a curva de utilidade estabelece a relação entre o retorno potencial a riscos crescentes e satisfação (utilidade) do investidor. 12 Mercado de Derivativos no Brasil: conceitos, produtos e operações A CVM e a regulação dos mercados derivativos 13 assumem o papel de contraparte central dos negócios (ex: contratos futuros). Nos derivativos de exercícios contingenciais, os contratos celebrados somente geram efeitos de pagamento caso eventos aleatórios específicos se realizem. Exemplo típico desta categoria são as opções, quando seu adquirente, mediante pagamento de um prê- mio, detém o direito de negociar um ativo-objeto nas condições de preço e prazo previstos no contrato. Em contraste com os compromissos a termo, nos derivativos de exercícios contingenciais o adquirente possui o direito – e não a obrigação – de realizar o negócio contratado. Uma grande variedade de instrumentos contém derivativos de exercícios contingenciais, que podem ser negociados em mercados organizados (ex: contratos padronizados de opções sobre ações negociadas em bolsas de valores) e em negócios bilaterias (ex: opções de ações em pacote de remuneração de executivos). Considerando-se a relevância e complexidade do processo de transferência de riscos por meio de derivativos, bem como os potenciais danos aos sistemas financeiros globais a partir de seu uso inadequado, surgiu para o Estado a necessidade de regulação, de forma a garantir que seu objetivo precípuo seja alcançado. A Regulação de Derivativos no Brasil até 2001 No processo de desenvolvimento de regulação estatal, um dos primeiros passos envolve a compreensão de natureza jurídica do objeto a ser regulado, de forma a se definir adequadamente a(s) competência(s) em razão da matéria do(s) ente(s) governamental (is) envolvido(s) e a delimitação do poder-dever regulatório, garantindo desta forma a eficácia de sua atuação. Nos Estados Unidos há grande discussão sobre a matéria, principalmente nos contratos negociados de forma bilateral entre particulares e que não necessitam de qualquer tipo de intermediação. Neste caso, os derivativos não se encaixam em qualquer das áreas objeto de regulação do mercado financeiro norte-americano: sistema bancário, commodities e securities. Em decorrência, existem por vezes incertezas acerca das fronteiras regulatórias entre a Securities and Exchange Commission (SEC), encarregada da fiscalização do mercado de capitais, e da Commodities Futures Trading Com- 14 Mercado de Derivativos no Brasil: conceitos, produtos e operações A CVM e a regulação dos mercados derivativos 15 mission (CFTC), que fiscaliza os mercados futuros. No Brasil, a identificação da natureza jurídica dos derivativos foi crítica para a identificação da competência regulatória entre a Comissão de Valores Mobiliários – CVM e o Banco Central do Brasil – BCB. Neste contexto, a Lei nº 6.385/76 instituiu a CVM como autarquia competente para regular os mercados de capitais e valores mobiliários. Até a edição da Medida Provisória nº 1.637/1998 (convertida na Lei nº 10.198/2001), a legislação pátria seguia a orientação do direito societário francês, que procurava conferir à noção de valor mobiliário um caráter restrito, isto é, somente os itens expressamente elencados no artigo 2º da mencionada lei poderiam ser considerados como valores mobiliários. Em consonância com esse entendimento, a competência para regulação de derivativos no Brasil era dividida: a CVM ficava como responsável pela regulação de derivativos cujos ativos subjacentes eram taxativamente caracterizados como valores mobiliários no art.2º da Lei nº 6.385/76 (ex: ações, debêntures, índices representativos de carteiras de ações), enquanto o BCB possuía competência regulatória residual para todos os demais derivativos (ex: contratos futuros e de opções sobre câmbio e juros). A partir da Lei nº 10.198/2001 o legislador optou pela ampliação do conceito de valor mobiliário no Brasil, adotando uma visão mais abrangente inspirada no direito norte-americano2 . A principal preocupação do legislador na época foi a de regular os contratos com derivativos e commodities, e, em especial, os denominados “contratos de boi gordo”. Tal concepção se reflete em especial na definição de contrato de investimento coletivo previsto no art. 1º da Lei nº 10.198/2001, que dispõe que deve ser considerado valor mobiliário qualquer contrato de investimento coletivo, ofertado publicamente, que gere lucros advindos do esforço do empreendedor ou de terceiros. Em complemento a Lei nº 10.198/2001, foi editada a Lei nº 10.303/2001, que incluiu expressamente em seu artigo 4º os derivativos na lista de valores mobiliários regulados pela CVM, independentemente de seus ativos subjacentes serem valores mobili- ários ou não. 2 A partir do caso SEC v. W.J. Howey & Co., as cortes americanas passaram a caracterizar como securities os títulos, instrumentos ou operações que apresentassem as seguintes características: (i) investimento em dinheiro ou bens passí- veis de aferição de valor; (ii) empreendimento comum cujos investidores pretendem auferir lucros a partir dos esforços do promotor do negócio; (iii) expectativa de lucros sobre os investimentos realizados e (iv) resultados auferidos exclusivamente dos esforços de terceiros, isto é, sem participação dos investidores. Maiores detalhes podem ser obtidos em EIZIRIK,N. et al., Mercado de Capitais- Regime Jurídico; Rio de Janeiro, Ed. Renovar, 2012, 3º Edição. 14 Mercado de Derivativos no Brasil: conceitos, produtos e operações A CVM e a regulação dos mercados derivativos 15 Desde então, a competência para regulação de derivativos no Brasil é da Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Período de Transição Regulatória após a vigência da Lei nº 10.303/2001 Definidos juridicamente como valores mobiliários a partir da Lei nº 10.303/2001, os derivativos apresentam características muito distintas dos demais títulos que, em tese, se constituem como valores mobiliários. A conceituação de valores mobiliários sempre esteve vinculada a títulos que estão associados a investimentos de risco em empreendimentos geridos por terceiros e nos quais o retorno está vinculado exclusivamente ao seu resultado econômico-financeiro. Os derivativos, por sua vez, têm como principal objetivo propiciar mecanismos de transferência de riscos entre os agentes econômicos a partir de suas necessidades (suitability). Tendo em vista o conceito de securities no direito norte-americano instituído desde o leading case SEC vs W.J. Howey & Co., os norte-americanos optaram por estruturar a regulação do mercado de capitais em dois entes distintos, sendo a Securities and Exchange Commission - SEC responsável pela fiscalização dos mercados de valores mobiliários e a Commodity Futures Trading Commission (CFTC) responsável pela regulação das operações nos mercados de derivativos. A partir da caracterização da natureza jurídica dos derivativos como valor mobiliário, conforme estabelecido na Lei nº 10.303/2001, coube a CVM conciliar no âmbito administrativo tais diferenças, de forma a evitar que institutos típicos de valores mobiliários pudessem prejudicar a eficácia dos derivativos como mecanismos de transferência de riscos. A respeito do tema, vale citar decisão proferida pelo Colegiado da CVM no Processo RJ nº 2003/0499, cujo relator foi o diretor Luiz Antônio de Sampaio Campos: “O grande desafio que a CVM vai encontrar, neste particular, futuramente, é notar as diferenças que existem entre a forma de regular derivativos e outros valores mobiliá- rios. E reconhecer ainda que nem todos os derivativos devem ser regulados da mesma forma e saber que não regular também é uma decisão regulatória. Também deverá reconhecer as diferenças regulatórias evidentes entre os derivativos ofertados publica- 16 Mercado de Derivativos no Brasil: conceitos, produtos e operações A CVM e a regulação dos mercados derivativos 17 mente e aqueles que apenas são negociados em mercados, sem oferta pública. Deverá também saber avaliar as diferenças entre os derivativos negociados em bolsa e aqueles negociados em mercado de balcão.” Outro ponto a ser destacado neste período de transição foi a necessidade de compatibilização das normas sobre derivativos editadas até então pelo Conselho Monetá- rio Nacional e pelo Banco Central do Brasil com o novo regime jurídico instituído pela Lei nº 10.303/2001. Na ocasião, foi proferida a Decisão-Conjunta CVM BACEN nº 10/2002, na qual ficou estabelecido que as normas até então editadas pelo CMN e BCB (ex: Resolução CMN nº 1.190/1986) permaneceriam vigentes até que fossem editadas normas específicas pela CVM tratando das concessões de autorizações, de registros e de supervisão dos contratos derivativos, bem como das bolsas de mercadorias e futuros. Neste caso, a CVM realizaria sua fiscalização sobre mercados e contratos derivativos baseada nessas normas do CMN e do BCB, situação que perduraria até a edição de suas próprias normas sobre tais matérias. A Regulação de Derivativos pela CVM após o Período de Transição A CVM regulou a autorização e fiscalização dos contratos derivativos por meio da Instrução nº 467/2008. Ao elaborar a mencionada norma, a CVM teve como principais propostas: ] 1. Assegurar que os modelos de contratos derivativos negociados em mercados organizados sejam submetidos à aprovação da autarquia; ] 2. Disciplinar os procedimentos internos de aprovação de modelos de contratos derivativos na CVM, de forma similar aos procedimentos relativos à concessão de outros registros; ] 3. Exigir a aprovação dos contratos derivativos registrados em mercados organizados pela respectiva entidade administradora (ex: BMFBovespa e CETIP). Ao estabelecer um novo regime jurídico para contratos derivativos na Instrução nº 467/2008, a CVM adotou os seguintes princípios: 16 Mercado de Derivativos no Brasil: conceitos, produtos e operações A CVM e a regulação dos mercados derivativos 17 ] Escopo regulatório: o art.1º da norma regula exclusivamente a prévia aprovação pela CVM dos modelos de contratos derivativos admitidos a negociação em mercados organizados (bolsa ou balcão), ou que, não sendo negociados nestes ambientes, venham a ser objeto de registro nas entidades que os administram (ex: BMFBovespa e CETIP). Deste modo os contratos negociados de forma bilateral ou em mercado de balcão não organizado não precisam de aprovação da CVM. Contudo, caso as partes optem por realizar o registro desses contratos, deverão obter a aprovação da entidade administradora cujo pedido de registro foi submetido. ] Publicidade: a entidade administradora de mercado organizado deve estabelecer e tornar pública as regras sobre os procedimentos e critérios para aprovação dos contratos derivativos registrados em seus mercados (art. 4º, caput); ] Controle de antijuridicidade: as regras e procedimentos de aprovação dos contratos derivativos pelas entidades administradoras de mercados organizados devem considerar mecanismos de identificação e inibição às infrações das normas jurídicas (art. 4º, § único); ] Controle de riscos financeiros: as entidades administradoras podem compartilhar informações sobre as operações com contratos derivativos registrados ou negociados em seus sistemas, a fim de subsidiar a administração de riscos pelas instituições financeiras, tal como previsto na Lei Complementar nº 105/2001, art.1º, § 3º, I; ] Evidenciação: os preços dos ativos subjacentes aos derivativos devem ter seu valor apurado com base em metodologias consistentes passíveis de verificação objetiva, bem como serem divulgados de forma ampla e irrestrita pelas entidades administradoras em periodicidade compatível com a natureza do ativo (arts. 5º e 6º). No caso de pedido à CVM de aprovação de modelos de contratos derivativos, as entidades administradoras devem incluir (art. 7º): ] (a) O contrato e seus anexos; ] (b) Descrição do ativo subjacente ao contrato, dos mercados em que é negociado e de seus participantes; 18 Mercado de Derivativos no Brasil: conceitos, produtos e operações A CVM e a regulação dos mercados derivativos 19 ] (c) Restrição de acesso a determinados investidores, se for o caso; ] (d) Limites de posição por investidor, por intermediário e de contratos em aberto; ] (e) Manifestação quanto à adequação da metodologia de determinação do valor de referência do ativo subjacente ao contrato; ] (f) Especificação de iniciativa da proposta (ex: se da entidade administradora ou de terceiros); O pedido de aprovação deve ser encaminhado à Superintendência de Relações com o Mercado e Intermediários (SMI/CVM), a quem caberá à apreciação no prazo de 30 dias. Este prazo pode ser interrompido uma única vez por igual período se a CVM solicitar informações adicionais, a serem entregues pelo solicitante em até 30 dias. Da decisão da SMI/CVM cabe recurso administrativo ao Colegiado da CVM, na forma da regulamentação em vigor (art. 8º e 9º). Em continuidade ao processo de regulação própria de derivativos, a CVM também editou as seguintes normas em 2008: ] Deliberação CVM nº 550, que dispôs sobre a apresentação de informações de instrumentos financeiros derivativos em notas explicativas às informações trimestrais (ITRs); ] Instrução CVM nº 475, que tratou da apresentação de informações sobre instrumentos financeiros em nota explicativa específica e da divulgação do quadro demonstrativo de análise de sensibilidade. Nesta análise, a empresa deveria avaliar qual o impacto daqueles instrumentos sobre os resultados da empresa em diferentes cenários, conforme os valores assumidos pelos ativos subjacentes; ] Deliberação CVM nº 566, que aprovou o Pronunciamento Técnico CPC 14, do Comitê de Pronunciamentos Contábeis, que trata do reconhecimento, mensuração e evidenciação de instrumentos financeiros. Em 2011 a CVM inicia as audiências públicas que viriam a se consolidar na forma da Instrução CVM nº 539/2013, que trata sobre o dever de verificação da adequação dos produtos, serviços e operações ao perfil do cliente. Ou seja, aliada à política de conhecimento do cliente havia agora o dever de lhe oferecer apenas produtos que 18 Mercado de Derivativos no Brasil: conceitos, produtos e operações A CVM e a regulação dos mercados derivativos 19 fossem adequados ao seu perfil. No contexto da governança corporativa, esta norma é conhecida como suitability. Neste mesmo ano, devido a preocupações atinentes à transparência das informações referentes às operações realizadas nos mercados derivativos, foi editada a Medida Provisória nº 539/2011 (convertida na Lei nº 12.543/2011), que introduziu duas importantes alterações no regime jurídico dos derivativos previsto na Lei 6.385/76: ] (i) Inserção do § 4º no art.2º, estabelecendo como requisito de validade dos contratos derivativos seu registro em câmaras ou prestadores de serviços de compensação, de liquidação e de registro autorizados pelo Banco Central do Brasil ou pela Comissão de Valores Mobiliários; ] (ii) Inserção do inciso VI no art.3º, dando competência ao Conselho Monetário Nacional para determinar depósitos sobre os valores nocionais dos contratos e fixar limites, prazos e outras condições sobre as negociações de contratos derivativos, desde que tais medidas tenham como finalidade ação vinculada à política monetária ou cambial; Embora a competência para regulação dos mercados e contratos derivativos seja da CVM desde 2001, o Banco Central do Brasil e o Conselho Monetário Nacional também atuam como reguladores indiretos quando existe o envolvimento de instituições financeiras, em especial nas operações realizadas no mercado de balcão. São exemplos desta atuação: ] Resolução CMN nº 2.933/2002, que faculta a contratação de derivativos de crédito por instituições financeiras; ] Resolução CMN nº 3.505/2007, que trata de operações com derivativos realizadas por instituições financeiras; ] a Circular Bacen nº 3.474/2009, que dispõe sobre o registro de instrumentos financeiros derivativos vinculados a empréstimos entre residentes ou domiciliados no País e residentes ou domiciliados no exterior; ] Resolução Bacen nº 3.824/2009, que dispõe sobre o registro de instrumentos financeiros derivativos contratados por instituições financeiras no exterior; ] Resolução Bacen nº 3.833/2010, editada com o objetivo de instituir a obriga- 20 Mercado de Derivativos no Brasil: conceitos, produtos e operações A CVM e a regulação dos mercados derivativos 21 toriedade de registro das operações de proteção (hedge) realizadas com instituições financeiras do exterior ou em bolsas estrangeiras; ] Resolução Bacen nº 3.908/2010, que trata da indicação de diretor responsá- vel pelos processos de consulta a informações relativas a posições em instrumentos financeiros derivativos. Deste modo a regulação de derivativos no Brasil é feita de forma coordenada, onde a CVM, como autarquia com competência para regulamentar os mercados, operações e contratos derivativos, atua de forma integrada com o CMN e com o BCB, que em suas respectivas áreas de atuação também editam normas que envolvam derivativos. Tal forma de gestão regulatória vem permitindo que os mercados derivativos no Brasil se desenvolvam de forma segura, cumprindo desta forma sua função primordial: propiciar a transferência de riscos entre os agentes econômicos sem colocar em risco a solidez do Sistema Financeiro Nacional (SFN).
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