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O Trabalho do Antropólogo: Olhar, Ouvir, Escrever

Por:   •  8/8/2023  •  Trabalho acadêmico  •  7.386 Palavras (30 Páginas)  •  98 Visualizações

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        REVISTA         SÃO PAULO, USP, 1996, V. 39 no l.

O Trabalho do Antropólogo: Olhar, Ouvir, Escrever

Roberto Carcloso de Oliveira Uniccunp

RESUMO: O Olhar, o Ouvir e o Escrever são destacados pelo autor como constituindo três momentos especialmente estratégicos do métier do antropólogo. Através de exemplos concretos fornecidos pela etnografia, procura-se mostrar como cada um desses momentos pode aumentar a sua eficácia no trabalho antropológico, desde que sejam devidamente tematizados pelo exercício da reflexão epistemológica. Se o Olhar etnográfico, tanto quanto o Ouvir, cumpre sua função básica na pesquisa empírica. é o Escrever, particularmente no gabinete, que surge como o momento mais fecundo da interpretação; e é por meio dele — quando se textualiza realidade sociocultural — que o pensamento se revela em sua plena criatividade.

PALAVRAS-CHAVE: etnografia, interpretação, textualização.

Introdução

[pic 1]Pareceu-me, na oportunidade desta conferência, que um antropólogo, dirigindo-se a uma platéia de cientistas sociais, poderia falar um pouco sobre a especificidade de seu métier, particularmente quando, na realização de seu trabalho, articula a pesquisa empírica com a interpretação de seus resultados. I Nesse sentido, o subtítulo escolhido — é necessário esclarecer — nada tem a ver com o recente livro de Claude Lévi-Strauss, Regarder, Ecouter, Lire (Plon, 1993), ainda que nesse título eu possa ter me inspirado, ao substituir apenas o Lire pelo Ecrire, o Ler pelo Escrever. Porém, aqui, ao contrário dos ensaios de antropologia estética de Lévi-Strauss, trato de questionar algumas daquelas que se poderiam chamar de principais "faculdades do entendimento" sociocultural que, acredito, sejam inerentes ao modo de conhecer das ciências sociais. Naturalmente que ao falar nesse contexto de faculdades do entendimento, é preciso dizer que não estou mais do que parafraseando, e com muita liberdade, o significado filosófico da expressão "Faculdades da Alma", como Leibniz assim entendia a percepção e o pensamento. Pois, sem percepção e pensamento, como então podemos conhecer? De meu lado, ou do ponto de vista de minha disciplina, a Antropologia, quero apenas enfatizar o caráter constitutivo do Olhar, do Ouvir e do Escrever na elaboração do conhecimento próprio das disciplinas sociais, i.e., daquelas que convergem para a elaboração daquilo que um sociólogo como Anthony Giddens muito apropriadamente chama de "teoria social" para sintetizar com a associação desses dois termos o amplo espectro cognitivo que envolve as disciplinas que denominamos Ciências Sociais (Giddens, 1984). Rapidamente, porquanto no espaço de uma conferência não pretendo mais do que fazer aflorar alguns problemas que comumente passam despercebidos não apenas para o jovem pesquisador em Ciências Sociais, mas algumas vezes também para o profissional maduro, quando este não se debruça para as questões epistemológicas que condicionam a investigação empírica Vinto quanto a cons-

DE ANTROPOLOGIA,

[pic 2]tuição do texto, resultante da pesquisa. Desejo, assim, chamar a atenção para três maneiras — melhor diria, três etapas — de apreensão dos fenômenos sociais, tematizando-as (o que significa dizer: questionando-as) como algo merecedor de nossa reflexão no exercício da pesquisa e da proclução de conhecimento. Tentarei mostrar como o "Olhar, o Ouvir e o Escrever" podem ser questionados em si mesmos, embora num primeiro momento possam nos parecer tão familiares e, por iséo, tão triviais, a ponto de nos sentirmos dispensados de problematizá-los; todavia, num segundo momento — marcado por nossa inserção nas ciências sociais —, essas "faculdades" ou, melhor dizendo, esses "atos cognitivos" delas decorrentes, assumem um sentido todo paflicular, de natureza epistêmica, uma vez que é com tais atos que logramos construir o nosso saber. Assim sendo, procurarei indicar que, enquanto no Olhar e no Ouvir "disciplinados" — a saber, disciplinados pela disciplina — se realiza nossa "percepção", será no Escrever que o nosso "pensamento" se exercitará da forma mais cabal, como produtor de um discurso que seja tão criativo quanto próprio das ciências voltadas à construção da teoria social.

O Olhar

Talvez a primeira experiência do pesquisador de campo (ou no campo) esteja na domesticação teórica de seu olhar. Isso porque, a partir do momento em que nos sentimos preparados para a investigação empírica, o objeto sobre o qual dirigimos o nosso olhar já foi previamente alterado pelo próprio modo de visualizá-lo. Seja qual for esse objeto, ele não escapa de ser apreendido pelo esquema conceitual da disciplina formadora de nossa maneira de ver a realidade. Esse esquema conceitual, disciplinadamente apreendido durante o nosso itinerário acadêmico (daí o termo disciplina para as matérias que estudamos), funciona como uma espécie de prisma por meio do qual a realidade observada sofre um processo de refração — se me é permitida a imagem. E certo que isso não é

exclusivo do Olhar, uma vez que está presente em todo processo de conhecimento, envolvendo, portanto, todos aqueles atos cognitivos, que mencionei, em seu conjunto. Mas é certamente no Olhar que essa refração pode ser ruais bem compreendida. A própria imagem óptica — refração — chama a atenção para isso.

[pic 3]Imaginemos um antropólogo iniciando uma pesquisajunto a um determinado grupo indígena e entrando numa maloca, uma moradia de uma ou mais dezenas de indivíduos, sem ai nda conhecer uma palavra do idioma nativo. Essa Inoradia de tão tililplas proporções e de estilo tão peculiar, [pic 4]como, por exemplo, as tradicionais casas coletivas dos antigos Tükúna do Alto Solimões, no Amazonas, teria o seu interior imediatamente vasculhado pelo "Olhar etnográfico", por meio do qual toda a tçolia que a disciplina dispõe relativamente às residências indígenas passaria a ser instrumentalizada pelo pesquisador, isto é, por ele referida. Nesse sentido, o interior da maloca não sefia visto com ingenuidade, como uma mera curiosidade diante do exótico, porém com um olhar devidamente sensibilizado pela teoria disponível. Tendo por base essa teoria, o observador bem

[pic 5]

ção previamente já construído por ele, pelo menos numa primeira prefiguração: passaria, então, a contar os fogos (pequenas cozinhas primitivas), cujos resíduos de cinza e carvão indicariam que em torno de cada um deles estiveralll reunidos não apenas indivíduos, porém "pessoas", portanto "seres sociais", membros de um único "gmpo doméstico"; o que lhe daria a infonnação subsidiária que pelo menos nessa nraloca, de conforliliclade com o número de fogos, estaria abrigada uma celta porção de grupos doniésticos, formados por uma ou mais famíl ias elementares e, eventualnnente, de indivíduos "agregados" (originários de um outro grupo tlibal). Saberia, igualmente, a totalidade dos nnoradores (ou quase) contando as redes dependuradas nos mourões da maloca dos membros de cada grupo clonnéstico. Observaria, também, as características arquitetônicas da maloca, classificando-a segundo uma tipologia de alcance planetário sobre estilos de residências, ensinada pela literatura etnológica existente.

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