Ciências Sociais
Por: leonardoaugusto • 25/4/2016 • Artigo • 3.726 Palavras (15 Páginas) • 219 Visualizações
Desafi(n)ando o coro global
ÁLVARO KASSAB
O sociólogo Renato Ortiz foi um dos primeiros intelectuais brasileiros a estudar a mundialização. Um pioneirismo que remonta ao final dos anos 80 e início dos 90, quando, juntamente com estudiosos do calibre de Milton Santos e Octavio Ianni, organizou seminários e debruçou-se sobre o tema. Mais do que identificar o fenômeno, Ortiz logo constataria à época que a nova temática –negada, no início – exigia uma espécie de ruptura com o pensamento mais convencional das ciências sociais.
Sua análise procedia: novas categorias de conceitos iriam irromper ao longo dos anos seguintes. A reboque da profusão de visões e estudos inéditos, entretanto, emergiria o senso comum. “Não houve mediação de qualquer espécie entre esses diferentes momentos”, avalia Ortiz. O primeiro e mais visível efeito da ausência dessa ponte foi a banalização do termo em escala planetária.
Causas e conseqüências dessa distorção são analisadas por Renato Ortiz no livro “Mundialização: Saberes e Crenças” (Brasiliense). A obra, recém-lançada, reúne cinco ensaios e textos esparsos. Os escritos não só aprofundam e dão seqüência aos inúmeros estudos que o intelectual empreendeu no terreno da cultura ao longo de sua trajetória, como debatem temas pouco explorados, entre os quais a supremacia do inglês nas ciências sociais, a noção do público entre o nacional e transnacional, religião e globalização, imperialismo cultural, e o senso comum planetário. Uma amostra da obra de Renato Ortiz, professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, está na entrevista que segue.
“Hoje é reconhecido que o processo tem raízes históricas e dificilmente se fala da globalização enquanto ideologia”
Jornal da Unicamp – A academia vem dando conta de estudar a globalização a contento?
Renato Ortiz – Sim e não. O debate da globalização é muito recente. Somente no final dos anos 80 e início dos 90, as ciências sociais começaram a se ocupar da problemática. Foi um período difícil no qual o tema não tinha um direito pleno de cidadania. Havia um conjunto de preconceitos e entraves.
JU – De que natureza?
Ortiz – Talvez a dificuldade maior dizia respeito ao reconhecimento da existência do próprio processo. Muitas vezes ele era confundido com uma mera ideologia. Tratando-se pois de uma ideologia, “uma falsa consciência” e não de um processo social com raízes históricas, não haveria a necessidade de dar a ele a devida atenção. Tornava-se assim difícil compreender as mudanças atuais e sua relação com temas como modernidade e Estado-nação.
JU – Por que essa dificuldade?
Ortiz – Por colocar em causa não só as realidades específicas existentes na sociedade mas também os conceitos para a análise e compreensão desta nova realidade. As disciplinas acadêmicas tendem a ser um tanto conservadoras. Estamos hoje num outro patamar. O processo é reconhecido, poucos o negam, e dificilmente falaríamos da globalização enquanto ideologia. Evidentemente existem ideologias (inclusive uma dominante) no seu interior mas a relação unívoca globalização=ideologia deixou de ter sentido. Os próprios movimentos “anti-globalização” mudaram sua auto-denominação; eles se consideram “alter-globalistas”. Quer dizer, se antes eles se achavam fora do processo, agora estão dentro e buscam um caminho alternativo.
Pode-se dizer ainda que o debate sobre a pós-modernidade, predominante nos anos 80 e parte dos 90, hegemônico nas ciências sociais, declinou. Creio que este refluxo ocorreu devido a um conjunto de problemas que se tornaram evidentes e não possuem uma solução parcial. O elogio indiscriminado da diferença foi obrigado a se recentrar.
JU – O senhor poderia exemplificar?
Ortiz – A discussão sobre a pós-modernidade trouxe a meu ver um elemento positivo, uma valorização do particular e uma desconfiança em relação a um certo discurso eurocêntrico sobre o universal. Entretanto, ao focalizar-se demasiadamente no elemento identitário, perdeu-se uma visão mais cosmopolita do mundo. Dificilmente, no quadro do pensamento pós-moderno, poderíamos compreender fenômenos de amplitude mundial, menos ainda buscar respostas para questões como o problema ambiental, a financeirização da economia, a flexibilização do trabalho etc. Durante este período, as ciências sociais caminharam lentamente, tateando um pouco, buscando construir bases mais sólidas para uma reflexão. Entretanto, ao longo deste percurso houve, novamente, uma inversão dos sinais da discussão. O que era negado, a globalização, passou a ser afirmado sem nenhuma perspectiva crítica. Surge assim o que eu chamo no livro de senso comum planetário.
JU – O fenômeno banalizou-se?
Ortiz – Exatamente. Nós passamos de um momento no qual a globalização era ocultada para outro no qual “tudo se globalizou”. O tema está na televisão, nas revistas de moda, nos jornais, nos movimentos ecológicos...Digamos que as ciências sociais não tiveram tempo ainda para trabalhar de maneira crítica, com uma relativa distância, esse fenômeno que, apesar de novo, já se impõe como senso comum. As explicações são dadas como se fossem verdades e sobre elas não pairam dúvidas.
JU – O senhor disse recentemente em entrevista ao Jornal da Unicamp que, quando surgiu, a globalização era um fenômeno que exigia uma ruptura com o pensamento mais convencional das ciências sociais? Isto aconteceu? Se sim, em que medida?
Ortiz – A exigência permanece. Só que, agora, com um problema a mais: além de uma ruptura com o pensamento tradicional das ciências sociais, é necessário também romper com o senso comum. Por exemplo, quando são usadas explicações do tipo “vivemos numa sociedade em rede”. Não existe sociedade em rede. Uma sociedade em rede é uma sociedade que work as a net. Ora, nenhuma sociedade “funciona” desta maneira.
As sociedades são compostas de diversas dimensões e instituições – família, religião, política, cultura, artes – que certamente não podem ser subsumidas à noção de rede. O conceito pode ter utilidade quando analisamos alguns aspectos como o capitalismo financeiro, a gestão das empresas, mas seria insensato qualificar toda uma sociedade através de uma noção que apenas a apreende parcialmente.
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