Cultura jurídica portuguesa
Pesquisas Acadêmicas: Cultura jurídica portuguesa. Pesquise 862.000+ trabalhos acadêmicosPor: • 3/4/2014 • Pesquisas Acadêmicas • 1.649 Palavras (7 Páginas) • 421 Visualizações
Encerra-se hoje a série sobre o Direito Comparado e seu desenvolvimento (clique aqui e aqui para ver as colunas anteriores), apresentando-se o comparatismo português. Primeira nação europeia a ter suas fronteiras definidas e também a conhecer relativa soberania estatal, Portugal, desde cedo, revelou sua vocação ultramarina e conseguiu edificar um império colonial em África e Ásia, no final século XV e início do século XVI, época de “gente de rija têmpera”, nas palavras de Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda.[1] A conquista dos territórios do ultramar deu-se por aqueles indivíduos que, ao sabor dos versos camonianos, saíram da “Ocidental praia lusitana” e partiram “por mares nunca d’antes navegados”, “em perigos e guerras esforçados”, a serviço “daqueles Reis que foram dilatando a fé, o Império, e as terras viciosas”.
As limitadas fronteiras geográficas portuguesas transformaram-se por completo quando a nação se tornou um navio e, com poucos homens e muito esforço, deixou-se em cada costa, em cada porto e em cada continente a língua, o Direito e a tradição lusitana. As Ordenações Reinóis serviram de lei para diferentes povos e em variegadas épocas. As instituições jurídicas portuguesas sobreviveram em muitas de suas ex-colônias, para além de sua própria vigência em seu país de origem. Em relação ao Brasil, Guilherme Braga da Cruz, o grande historiador do Direito em Portugal, afirmou que “Portugal e Brasil continuam a ser, no Direito como em tudo o mais, duas pátrias irmãs, que se orgulham da sua ascendência comum, e que o Brasil mais ainda que Portugal, soube manter-se sempre fiel à velha tradição jurídica lusitana, dignificando-a e rejuvenescendo-a, e dando, assim, u m admirável contributo para a sua perenidade no mundo”.[2]
Essa contradição essencial de um país territorialmente pequeno e que conseguiu dilatar sua cultura por territórios imensos em três continentes fez com que Portugal tivesse, por necessidade ou por virtude, de se abrir para a experiência jurídica internacional, estrangeira e comparada, com o sentido peculiar que cada uma dessas palavras carrega. Não é sem razão que se pode considerar a cultura jurídica portuguesa a mais europeia de entre todas. E, por outro lado, mas por idêntico fundamento, o Direito português é também o mais receptivo a um tipo particular de comparatismo, que não hierarquiza as famílias jurídicas, muito menos coloca em posição de preeminência o Direito dos países europeus em detrimento de seus congêneres americanos, africanos e asiáticos. Pode-se questionar se essa última postura é resultado de uma interpretação estruturalista, que identifica no caráter português essa atitude mental em relação a tais Direitos, ou se é um sestro do colonizador que demorou muito a aceitar o fim da aventura colonial e que se considerava ainda um elemento de aglutinação jurídica de seus antigos territórios. Independentemente da causa, não se admite retirar do Direito português essa característica que tanto o engrandece.
A esse propósito, no século XIX, é possível encontrar no monumental tratado de Francisco Antonio Fernandes da Silva Ferrão (1798-1874) a força do comparatismo em Portugal. Trata-se de uma obra em 8 volumes intitulada Theoria do Direito Penal applicada ao Código Penal portuguez comparado com o Código do Brazil, leis pátrias, códigos e leis criminaes”, que foi “offerecida a S.M.I. o Sr. D. Pedro II, imperador do Brazil”, editada em Lisboa, nos anos de 1856 e 1857, pela tipografia Universal.
No século XX, o comparatismo estará presente nas obras dos principais juristas portugueses, como Guilherme Alves Moreira, o responsável pela germanização do Direito Civil em Portugal, Marcelo Caetano, António Pinto Monteiro e Rui Marcos.
De entre os nomes do Direito Público português contemporâneo, Jorge Miranda (1941-) é sem dúvida o maior de entre seus comparatistas. Catedrático de Direito Constitucional na Universidade de Lisboa, deputado à Assembleia Constituinte (1975-1976) e um dos autores da Constituição portuguesa de 1976, Miranda é um constitucionalista respeitado e conhecido no Brasil, cujas obras são muito citadas nos tribunais superiores e também lidas pelos estudantes de graduação e pós-graduação. Com dezenas de orientandos brasileiros e tendo visitado quase todas as capitais da federação, para além de inúmeros municípios interioranos, Jorge Miranda nutre especial carinho pelo Brasil.
Em um artigo publicado em 2006, Jorge Miranda sintetiza alguns conceitos do Direito Constitucional Comparado, que se encontram difusos em várias de suas obras. Para Miranda, o Direito comparado “é necessário para descrever e explicar as similitudes e as dissimilitudes entre as ordens jurídicas, para as estruturar segundo elementos de localização e de difusão, para proceder a agrupamentos e classificações, para, eventualmente, propor princípios comuns, para, enfim, tudo expor de modo objectivo e científico.” Sob tal aspecto, defende ele a autonomia do Direito Constitucional Comparado, que descansaria em um objetivo central: “captar o sentido específico de cada Constituição em face das demais e captar o que há de essencial na unidade e na diversidade entre elas”.
Jorge Miranda também expõe os conceitos de microcomparação e macrocomparação, inspirado em Léontin-Jean Constantinesco. A microcomparação “tem por objecto o exame das partículas jurídicas elementares que formam as ordens jurídicas. São os micro-elementos”. A macrocomparação, por sua vez, “tem por objecto o estudo de uma grande estrutura e, designadamente, as estruturas determinantes e as ordens jurídicas enquanto tais”. Na primeira espécie, examinam-se instituições ou regras jurídicas, ao passo em que, na segunda, investigam-se as “grandes estruturas fundamentais, bem como o perfil característico das ordens jurídicas a fim de salientar as famílias e os grandes sistemas jurídicos”.[3]
A contribuição teórica de Jorge Miranda ao comparatismo ultrapassa os elementos conceituais e a sistematização da matéria. Ela também se radica na aproximação do Direito português com o Direito brasileiro e das nações de língua portuguesa. Nesse aspecto, são constantes as obras coordenadas por Miranda e juristas brasileiros e africanos. Um exemplo recente desse esforço em prol do comparatismo nos países lusófonos é o livro “As constituições dos Estados de Língua Portuguesa: Uma visão comparativa”, de Jorge Miranda e Kafft Kosta, editado em Curitiba e Lisboa, pela Juruá, no ano de 2013.
O constitucionalista de Guiné-Bissau Kaft Kosta, que foi juiz conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça de seu país por 15 anos (1996-2011) e hoje é professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, deve ser referido como mais um juscomparatista de língua portuguesa. Com formação em Portugal e na Alemanha, com trabalhos de grande erudição Kosta tem-se ocupado do comparatismo entre os direitos português, africano e brasileiro.
Não se pode mencionar o Direito Comparado em Portugal contemporaneamente sem a menção a Dário Moura Vicente, catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FADUL) e com intensa participação nos meios universitários internacionais. Merece destaque seu empenho na cooperação jurídica e na aproximação entre Portugal e os países lusófonos, o que já o levou a lecionar em Angola, Moçambique, Goa, Cabo Verde, Timor Leste, Macau e em diversas instituições brasileiras. Pesquisador do Instituto Max-Planck de Hamburgo, Moura Vicente é o atual presidente do Instituto de Cooperação Jurídica da FADUL.
De entre sua respeitável produção bibliográfica, que avança pelos campos do Direito Internacional Privado, o Direito Privado e o Direito Comparado, pode-se mencionar a recente publicação do mais completo estudo comparatístico da responsabilidade civil da indústria do tabaco. Ele pesquisou as legislações e a jurisprudência dos Estados Unidos da América (envolvendo também diversos entes da federação norte-americana), da Alemanha, de França, da Itália, da Espanha, da União Europeia e do Brasil. Nesse artigo, publicado em 2013, Dário Moura Vicente oferece alguns dados de enorme interesse para a jurisprudência brasileira, a saber:[4] (a) “a imputação destes danos [decorrentes do fumo] às tabaqueiras com fundamento na violação de obrigações contratuais é recusada na maior parte desses sistemas jurídicos”; (b) “a jurisprudência dos tribunais de um vasto número de países tende a considerar que não se encontram preenchidos os pressupostos da responsabilidade pela violação de deveres de informação ou pela prestação de informações falsas(...)”; (c) “mesmo que esses pressupostos se encontrem preenchidos, essa responsabilidade é, ainda assim, excluída em vários sistemas jurídicos pela conduta da vítima, em virtude da aceitação voluntária dos riscos inerentes aos produtos do tabaco ou da censurabilidade dessa conduta”.[5]
É de autoria de Dário Moura Vicente a melhor obra contemporânea sobre o Direito Comparado em língua portuguesa (e não apenas nesse idioma), cuja terceira edição acaba de se publicar em Coimbra, pela Editora Coimbra, no ano de 2013. O livro Direito Comparado, volume primeiro, apresenta ao leitor uma visão abrangente, moderna e completa do Direito Comparado, analisando sua natureza científica, o problema de sua autonomia epistemológica, o estado da arte da questão das famílias, das tradições e dos grupos jurídicos, além de trazer informações atualizadas sobre os ordenamentos jurídicos internos dos mais variegados países do mundo. Da Ásia à África, da América à Europa e Oceania, o Direito Comparado deve Dário Moura Vicente impressiona pela profusão de informações e pelo vasto conhecimento do autor sobre as peculiaridades de cada sistema ou grupo de direitos, como o europeu, o indiano e o árabe. O autor cita modificações legislativas, novas interpretações jurisprudenciais e obras publicadas, em diversos idiomas, que foram editadas, publicadas ou baixadas até ao final de 2013.
Para quem deseja inteirar-se do estado da arte do Direito Comparado, sem renunciar aos conceitos clássicos de obras como as de René David, mas que se encontram comprometidas pela desatualização, a leitura do livro de Dário Moura Vicente é mandatória. Para os lusófonos, chega a ser um orgulho encontrar um texto de tal rigor metodológico, atualidade e abrangência em língua portuguesa, fazendo-o equiparável a estudos magnos da comparatística internacional.
O Direito Comparado deverá encontrar no século XXI um grau incomparável de florescimento e de difusão. A queda das barreiras físicas, intelectuais e comerciais gerada pela formação de blocos econômico-político-jurídicos, a revolução das novas tecnologias, as facilidades de transporte internacional e o compartilhamento de conhecimentos em novas plataformas encontram-se na raiz desse processo de fortalecimento do Direito Comparado. O sonho dos pioneiros dos séculos XVIII e XIX tem grandes possibilidades de se converter em realidade. O principal risco está na perda dos referências metodológicos e na incompreensão do que realmente seja fazer um estudo de Direito Comparado.
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