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Trabalho De Louco

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Por:   •  30/6/2014  •  1.847 Palavras (8 Páginas)  •  348 Visualizações

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O mundo sociolaboral vive um momento de flexibilização, heteroge¬neização e complexificação das estruturas e das relações psicossociais, o que leva à hipótese de que as relações entre trabalho e loucura também foram afetadas. Assim, o presente artigo visou levantar os sentidos1 atribuídos ao trabalho e à carreira de pessoas em situação psicótica2 (grupo tradicional¬mente excluído do mercado de trabalho) e as estratégias de construção de sua trajetória no mundo do trabalho, para verificar se houve ou não algum indício de mudança.

No modelo social da modernidade não havia relações possíveis entre trabalho e loucura, pois, segundo Foucault (1976), “a loucura é ruptura absoluta da obra” (p. 529); obra entendida como uma produção intersubjetiva que se inscreve na história social e singular em dada época e dada existência: “ali onde não há obra, há loucura” (p. 530). O ideário moderno normativo era gerador de verdades absolutas que norteavam os saberes e as práticas cotidianas - sociedade disciplinar que buscava criar sujeitos dóceis e úteis. (FOUCAULT, 1977)

O antagonismo e a impossibilidade de síntese da dualidade trabalho/loucura relegavam a pessoa rotulada como “louca” à exclusão3 de qualquer construção no mundo do trabalho, reduzindo sua existência ao estigma da posição de “louca” e, portanto, destinado a viver apartada da ação de obrar nas relações sociais e ocupar o lugar construído de assistido social, pois seria detentor de uma identidade deteriorada. (GOFFMAN, 1975)

Dejours (2003) versa que o trabalho seria semântica e ontologicamente associado ao sofrimento e à produção, e por isso constituiria um paradoxo psíquico: se por um lado faz emergir os limites humanos, por outro é a chance de conhecer, habitar e participar na construção do mundo. A falta do trabalho ou de seu reconhecimento como obra (reconstrução contínua do mundo e de si) faz surgir, quase sempre, uma vida sem sentido e uma situação de vulnerabilidade social (CASTEL, 1993), pois “o trabalho, é verdade, pode gerar a alienação. Mas também pode ser o mediador, insubstituível, da emancipação” (DEJOURS, 2003, p. 27).

O século XX presenciou a dominação do modelo taylorista-fordista de organização do trabalho, que foi gradativamente substituído pelo modelo toyotista-liberal, que, através da reestruturação produtiva e da flexibilização dos processos e postos de trabalho, gerou a desestruturação da sociedade salarial (BLANCH, 2003). A crise do capital trouxe como consequência uma nova questão social que, segundo Castel (1998), transformou a luta pela indignidade no trabalho na luta contra a exclusão do trabalho, já que um dos efeitos dessa crise é a diminuição dos empregos, com o aumento do desem¬prego e dos subempregos (tempo parcial, temporário, teletrabalho, terceiriza¬ção e informalidade).

O trabalho, antes marcado pela normatividade moderna, se vê entregue ao contingencialismo psicossocial, que se por um lado deixa as pessoas sem referências, por outro rompe com a tradição e com as relações de inclusão e exclusão socio-historicamente configuradas pela modernidade, que geravam a inclusão dos que se adaptavam (chamados de “normais”) e a exclusão dos que não conseguiam ou não podiam se adaptar (chamados de “anormais”), permitindo novas possibilidades num mundo em transição.

Silva (2005) relata que a mudança social em andamento desloca o mundo da sociedade disciplinar, que segregava o diferente e o assistia como excluído, para uma sociedade pós-disciplinar, na qual a gerência da diversidade tem lugar em nome da eficiência e da produtividade, abrindo espaço para grupos tradicionalmente excluídos transitarem no seio da normalidade, moldados em outros padrões, que não os modernos, e numa relação de tensão constan¬te, sem sínteses duradouras, num estado de transição com dupla consequên¬cia.

De um lado, há o reforço de padrões antigos e a produção de novos padrões de exclusão com formas mais heterogêneas de vida precária, de espaços de exclusão e de abandono social, gerando um grupo maior de desfiliados4, no qual se encontram antigos excluídos (p. ex., pessoas em situação psicótica) e novos excluídos (p. ex., pessoas em situação de desem¬prego). Entretanto, uma segunda consequência, antagônica à primeira, seria a produção de oportunidades de emancipação e de constituição de formas diferenciadas de relação social, o que se constituiria numa nova chance de retorno de grupos tradicionalmente excluídos à possibilidade de inclusão psicossocial.

Assim, a pretensa objetividade moderna com seus padrões de exclusão, que instaurava um dualismo binário entre dois grupos claramente definidos de incluídos e excluídos, perde sua potência absoluta e, gradativamente, relativiza a relação de inclusão-exclusão psicossocial ao reencontrar sua essên¬cia relacional (aplacada pelos padrões absolutos modernos) e tem, de novo, a chance de romper com o seu dualismo ao promover um trânsito constante de pessoas da exclusão à inclusão e vice-versa, num processo dialético perma¬nente (SAWAIA, 2001), gerador de novos lugares a antigos excluídos.

Vale salientar que o panorama que está sendo traçado parece configurar uma situação de mundo mais emancipadora que a anterior, entretanto o movimento de exclusão é maior que o de inclusão e a transformação de padrão parece ser mais potencial do que concreta. Apesar disso pode-se argumentar que, se antes não havia possibilidade para os grupos tradicional¬mente excluídos, agora ela existe, restando saber se ela é real e está sendo aproveitada ou é apenas uma hipótese teórica, sem respaldo empírico na realidade, o que a tornaria ideológica, por essência.

TRABALHO E LOUCURA NA CONTEMPORANEIDADE: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL?

Segundo Goodwin e Kennedy (2005), trabalho e loucura sempre estiveram associados de diversas maneiras, como ergoterapia, inatividade, trabalho assistido, atividade doméstica ou trabalho formal remunerado, intercalando momentos do trabalho concebido como tratamento ou como papel social valorizado. Historicamente, as atividades das pessoas em situação psicótica não foram consideradas trabalho ao longo do século XX.

Foucault (1976) disse que a loucura seria a ruptura absoluta da obra, pois ela colocaria o sujeito retido em sua própria verdade e, dessa maneira, afastado dela, mas já apontava que essa forma de pensar e agir mudaria pela reintegração social entre loucura e razão. “Tudo que hoje percebemos sobre a forma de limite ou de estranheza ou de ser insuportável, se reunirá com a serenidade do real. E aquilo que hoje designa para nós o Exterior, chegará acaso um dia a designar nós mesmos” (FOUCAULT, 1976, p. 328).

Em seus últimos escritos sobre “o cuidado de si”, Foucault (1985) apontava que a busca do sujeito é a busca pela possibilidade de constituição de si, baseada numa ética que necessita da liberdade, ausente num indivíduo consti¬tuído por uma norma, como o indivíduo moderno. O dever do sujeito contem¬porâneo seria realizar uma experiência nova de si mesmo, viabilizada por um mundo potencialmente sem referências normativas absolutas, mas ainda sobredeterminado por relações de poder, e construir uma ética de si em relação ao outro, como também concordam Touraine (1998) e Dubar (2000) ao dizer que a saída atual para a sociabilidade humana parte de estratégias construídas e colocadas em ação pelos indivíduos em relação e com sentido ao outro na articulação da dualidade da dimensão psicossocial.

A loucura não seria um fato da natureza, mas um fato da civilização, portanto sua identidade seria multifacetada e suas verdades historicamente produzidas, pois se constrói na relação com a civilização na qual existe como fenômeno. A hipótese do presente artigo é que em um mundo em transição, com suas referências, teorias e significações em crise, brechas possam se abrir na sua estruturação, possibilitando novas articulações intersubjetivas entre trabalho e loucura, e, portanto, novas formas existenciais com o trabalho como mediador privilegiado dessas novas articulações ao restabelecer uma possível dialetização das relações psicossociais para a pessoa em situação psicótica, que se concretizariam pela construção de projetos de vida no trabalho (carreiras5).

Seriam possíveis essas novas articulações intersubjetivas entre trabalho e loucura?

RELAÇÃO ENTRE TRABALHO E LOUCURA NAS PESQUISAS MAIS RECENTES

As pesquisas das duas últimas décadas indicam que, tradicionalmente, trabalho para as pessoas em situação psicótica seria o trabalho assistido ou a ergoterapia, que podem contribuir para o desenvolvimento das funções mentais e sociais e para a redução dos sintomas, mas devem ser ações transitórias (BOND, 1992).

Porém, somados ao não trabalho, como opção predominante, contribuem para a cronicidade de uma situação de vulnerabilidade psicossocial, com consequências limitadoras da subjetividade e da vida social como o desemprego, a pobreza, o estigma, a hospitalização e a construção de um projeto de vida marcado pela doença (BELL; LYSAKER, 1997; CARRETEIRO, 2001; GOVE, 2004): o trabalho deve ser preferencialmente real, competitivo e remunerado, como potencial para o resgate da contratualidade psicossocial, vista como habilidade de efetuar trocas em espaços concretos de ação, enten¬didos como espaços públicos de interação (SARACENO, 1996).

Apesar da constatação da importância do trabalho para as pessoas em situação psicótica, muitas questões ainda persistem, pois o trabalho traz sig¬nificado, mas também é uma situação geradora de angústia e sofrimento (DEJOURS, 2003). Muitos optam em não tentar conseguir um trabalho por conta da possibilidade do fracasso e da frustração, que gera mais medo do que motivação para o sucesso e para emancipação, e da identificação do retorno ao trabalho com a emergência de uma nova crise psicótica, pois ele agravaria os sintomas em função do estresse decorrente de sua realização (VAN DONGEN, 1996).

Os efeitos do trabalho para as pessoas em situação psicótica são controver¬sos: confirmação do estigma pelos recorrentes fracassos e gerador de novas crises (BOND, 1992; VAN DONGEN, 1996; GIOIA, 2005); possibilidade de construção de um lugar no mundo, de desconstrução do estigma de incapaci¬dade laboral, de diminuição dos sintomas e de manutenção financeira (ANTHONY, 1994; VAN DONGEN, 1996; TSANG et al., 2000); ou, então, efeitos marginais e modestos (ANTHONY; JANSEN, 1984; GIOIA, 2005), embora reconheça-se que o não trabalho e o desemprego são mais lesivos do que os fracassos no trabalho. A experiência no trabalho não é unitária e, portanto, não é boa, nem ruim, a priori, mas guarda potencialidade para ser estruturante e, por isso, pode servir para tal.

É importante entender a relação entre trabalho e loucura ao longo da vida, e não somente após o desencadear de uma crise psicótica, pois o desenvolvimento da identidade ocupacional é um processo que antecede, em quase todos os casos, a emergência de uma crise, sendo, portanto, necessário analisar a história de vida de cada um de forma longitudinal, para verificar as possibilidades e os limites de construção de um projeto de vida no trabalho.

Para Tsang et al. (2000), que de 1985 à 1997 analisaram 92 artigos focados na relação trabalho e loucura, são características que auxiliariam no retorno ao trabalho após uma crise psicótica: o funcionamento psicossocial antes da crise, principalmente uma história prévia de trabalho competitivo e formal, a passagem por trabalhos assistidos, as competências sociais desenvolvidas e o bom relacionamento familiar, devendo ser enfatizado que a sintomatologia não constituiria índice significativo para essa análise, apenas a severidade e cronicidade dos sintomas, a rapidez na saída da crise e o número de crises sofridas. (HUFFINE; CLAUSEN, 1979)

Apesar das constatações das potencialidades do trabalho para as pessoas em situação psicótica, a literatura, em geral, não focalizava a possibilidade de trabalhar e construir uma carreira nesse grupo, o que começou a acontecer na década de 1980 com as propostas de trabalho assistido ou protegido (BOND, 1992), que no Brasil ganhou força com as cooperativas de ex-usuários de programas de saúde mental. Em função das transformações psicosso¬ciais, políticas e econômicas da contemporaneidade, seria possível pensar no desenvolvimento de uma carreira para as pessoas em situação psicótica?

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