O Artigo de Opinião - Festa de Santa Rosália
Por: NATHALIA MACHADO MOUTINHO • 10/1/2024 • Artigo • 2.231 Palavras (9 Páginas) • 75 Visualizações
Querem que eu me contente com nada
Sem meu povo tudo não existiria
Eu disse óh como 'cê chega na minha terra
Ele responde "quem disse que a terra é sua?"
(Djonga - Corra)
“Angola, Congo, Benguela, Monjolo, Cabinda, Mina, Quiloa, Rebolo”, é assim que Jorge Ben Jor inicia a música Zumbi, citando algumas das nações que foram trazidas à força para o (que nem se chamava) Brasil desde o século XVI; pessoas destinadas a ser mão-de-obra escravizada - a força motriz para o desenvolvimento econômico da nação brasileira.
Na região onde hoje são as Minas Gerais, o fluxo de tráfico de pessoas afro-diaspóricas foi imenso a partir do século XVII com a descoberta de ouro e diamante nas áreas centrais; os interesses coloniais focaram completamente nessa região, deficitando, inclusive, as outras atividades como as lavouras de cana de açúcar na região nordeste.
Historiadoras e historiadores conseguem constatar, a partir de documentações, que durante os setenta anos de exploração mineral, a população nestas regiões era majoritariamente negra, ainda que com o passar dos anos o número de escravizados (“legalmente”) fosse diminuindo. Dados de 1776 expõe uma população de 77,90% de população negra e mestiça, num universo populacional de 319.769[1].
Há evidências de que os africanos da Costa da Mina já exploravam o ouro em suas regiões de nascimento. Os sociólogos Silva e Dias, em seu artigo As tecnologias derivadas da matriz africana no Brasil: um estudo exploratório (2020)[2] escrevem que “alguns estudos apontam que os portugueses buscavam etnias específicas para trazer ao Brasil para trabalhar especificamente na mineração, devido ao seu amplo conhecimento”. Alguns instrumentos de mineração como canoa, bateia, cadinhos, enxadas e recipientes de couro de boi; processo de fundição de metais e conhecimentos em geologia, biologia e hidrologia foram introduzidos por estas pessoas, principalmente pelas mulheres - as mulheres-minas.
Da mesma forma que estes conhecimentos mineiros e metalúrgicos foram utilizados pelos colonizadores a partir da escravização de africanos, a população negra os utilizou como forma de resistência. Silva e Dias discorrem que a arqueologia demonstrou que no Quilombo de Palmares havia forjas e oficinas de ferro para a elaboração de artefatos para produção e guerra; já nos quilombos das Minas Gerais estas forjas se encontravam no centro do território de resistência, assim como nos reinos da África Central.
“A carne mais barata do mercado é a carne negra. Que fez e faz história segurando esse país no braço, meu irmão” (Seu Jorge, Marcelo Yuka e Ulisses Cappelette)
Desta forma, é inegável a influência africana no conhecimento, linguagem, cultura e hábitos no Brasil e nas Minas Gerais, e esta contribuição ocorreu e ocorre a partir de muita resistência pois, sem ela o esquecimento fundamentado nos processos de embranquecimento da raça, da democracia racial e da queima de documentos estaria fadado ao sucesso.
O embranquecimento da raça foi uma teoria eugenista muito defendida nos anos que sucederam a assinatura da Lei Áurea e a entrada dos imigrantes europeus no Brasil, mas ela já acontecia desde o início da invasão europeia no território de Abya Yala[3] através do estupro de mulheres africanas e originárias. Um projeto[4] que investiga o genoma de pessoas brasileiras, comprova que a população tem 75% de herança paterna de homens europeus, enquanto tem 36% e 34% de herança materna de mulheres negras e indígenas, respectivamente. O que também comprova como homens negros e indígenas não tiveram a oportunidade de deixar descententes, apontando um rastro de genocídio.
Esta teoria e seus apoiadores defendiam que a miscigenação traria uma nova raça com aspectos positivos da raça negra, da raça indígena e da raça branca: os mulatos, pardos, morenos, pardas-vasco, pessoas de cor, fuscos, caboclos…. Sempre colocando a raça branca enquanto salvadora das ‘selvagerias’ cometidas pelas raças negra e indígenas, corroborado no mito da democracia racial.
Lélia Gonzalez discorre que “o efeito maior do mito é a crença de que o racismo inexiste em nosso país graças ao processo de miscigenação”[5], a partir dos casamentos inter-raciais. Toda sociedade brasileira sente os efeitos da miscigenação: as mulheres negras de pele clara que são tratadas enquanto mulatas[6], as mulheres negras retintas que sofrem com a solidão da mulher negra[7] e subempregos[8]; os homens negros que tem as maiores taxas de evasão escolar[9], de população carcerária[10], de morte pelo Estado[11] e de suicídio[12]; e a população trans negra[13] que tenta sobreviver no país que mais mata pessoas trans no mundo.
Já sobre a queima de arquivos do processo de escravização de corpos africanos no Brasil, Ruy Barbosa, em 1890 (dois anos após a assinatura da Lei Áurea), ‘horrorizado’ pelas marcas da escravização no Brasil, manda queimar os documentos relacionados ao processo. Impossibilitando as gerações futuras de acessar a história do país para a construção de uma memória coletiva que preserve a influência e contribuição afro-diaspórica na fundamentação da nação brasileira. Pode-se pontuar que o racismo estrutural tem muita base nesse apagamento e esquecimento da história.
“Lute pelo seu direito de festejar, festeje o seu direito de lutar”. (Bnegão)
“Tristeza foi assim se aproveitando pra tentar se aproximar: ai de mim! Se não fosse o pandeiro e o ganzá e o tamborim, pra ajudar a marcar meu tamborim” (Jovelina Pérola Negra)
Apesar das inúmeras tentativas da sociedade em tentar calar o povo preto, de diáspora, seja matando seus corpos, sua fé, sua conexão com a natureza, sua filosofia e sua cultura, a partir de leis que criminalizaram e criminalizam suas vidas[14], o povo preto é povo de festa. Basta observar suas festas, que são coletivas, com músicas e batidas animadas, coloridas, mas nunca desfocando do objetivo principal que é a vida plena.
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