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Felicidade Clandestina

Artigo: Felicidade Clandestina. Pesquise 862.000+ trabalhos acadêmicos

Por:   •  19/3/2014  •  1.104 Palavras (5 Páginas)  •  416 Visualizações

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Felicidade clandestina

Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um

busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia

os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança

devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.

Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho

barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de

paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás

escrevia com letra bordadíssima palavras como “data natalícia” e “saudade”.

Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com

barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas,

esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo.

Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a

implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.

Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como

casualmente, informou-me que possuía As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato. Era um

livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E,

completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte

e que ela o emprestaria.

Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança de alegria: eu não vivia, nadava

devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.

No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como

eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que

havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo.

Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava

na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa

vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais

tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como

sempre e não caí nenhuma vez.

Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono da livraria era tranquilo

e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração

batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse

no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do “dia seguinte”

com ela ia se repetir com meu coração batendo.

E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o 5

INTERPRETAÇÃO E PRODUÇÃO DE TEXTOS

Revisão: Ana Maria - Diagramação: Fabio - 10/12/10

fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera

para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem

quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.

Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois

o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei

a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus

olhos espantados.

Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua

recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela

menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa,

entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o

fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com

enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca

...

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