Sertão Vai Virar Mar
Exames: Sertão Vai Virar Mar. Pesquise 862.000+ trabalhos acadêmicosPor: dragaodosertao • 12/3/2015 • 11.056 Palavras (45 Páginas) • 326 Visualizações
Livro: O sertão vai virar
mar
Autor: Moacyr Scliar
Editora: Ática
1ª edição
Ano: 2003
Transcrito por: Anair
Meirelles Michele Corrêa
Ilustrado por: Tanara Bandeira
Livro dividido em 3
volumes
Uso exclusivo dos alunos
do Instituto Santa Luzia
Após um século, um retorno
aos sertões.
A semana de Cultura no colégio de Gui está próxima e a turma não sabe que trabalho fazer. Até que o professor de história lhes apresenta Os sertões, que descreve a trágica Guerra de Canudos, ocorrida há pouco mais de um século, bem próxima à cidade onde os garotos moram. O clássico de Euclides da Cunha denunciava, na época, a morte de aproximadamente 25 mil sertanejos, incluindo mulheres, idosos e crianças, todos seguidores de beato Antonio Conselheiro.
Gui e sua turma se empolgam com a literatura do livro e têm uma idéia: promover uma espécie de julgamento dos diferentes pontos de vista que envolveram a tragédia, avaliando os atos de conselheiro, o personagem principal do conflito.
Enquanto se preparam para o evento, Gui, Martinha, Gê e Queco ganham um novo colega: o misterioso Zé, vindo do sertão alagado por uma represa, do "sertão que virou mar" -- profecia do líder espiritual de Canudos que se cumpriu. Pouco depois, surge uma figura ainda mais misteriosa, que deixa apreensiva toda a cidade: um novo beato, Jesuíno Pregador, está atraindo uma multidão de seguidores fanáticos para o Buraco, a vila mais pobre da região. Depois de um século da campanha de Canudos, poderia a tragédia histórica se repetir? A chegada de Zé e Jesuíno, num mesmo momento, vindos de uma mesma região, seria mera coincidência?
Em O sertão vai virar mar, Moacyr Scliar, um dos mais importantes escritores da atualidade, oferece ao leitor a oportunidade de conhecer um grande clássico de nossa literatura e saber um pouco mais sobre uma das maiores tragédias ocorridas no Brasil em todos os tempos. Na história de um grupo de amigos que não se rende aos preconceitos, a percepção de que na solidariedade, aliada à perseverança, pode estar a possibilidade de vitória sobre as injustiças sociais.
(O Editor)
(p. 9)
1. Bem-vindos a Sertãozinho de Baixo, o lugar onde tudo começou
Já faz um tempo que esta história aconteceu, alguns anos, para dizer a verdade, mas só agora resolvi contá-la. Escrever é uma coisa que gosto de fazer; é uma forma de preservar a nossa memória e, até mesmo, de entender as coisas. Quando a gente põe no papel aquilo que nos aconteceu, é como se estivéssemos vivenciando de novo os acontecimentos, descobrindo coisas que antes não nos haviam ocorrido. O que, no caso da presente história, é um prazer e uma fonte de emoções. Aqui vai, pois.
Moro numa cidade chamada Sertãozinho de Baixo. Estranha, a denominação? Pois é. Muita gente achava isso, inclusive, e principalmente, na própria cidade. Gente que não gostava do "Sertãozinho" e não gostava do "de Baixo". Políticos e empresários até promoveram uma campanha para mudar o nome. Por que "de Baixo", indagavam, se não há um Sertãozinho de Cima? Mas houve, sim, uma vila com esse nome -- só que desapareceu quando a área em que ficava foi inundada para a construção da grande represa de Mar-de-Dentro. Quanto a "Sertãozinho", a razão da implicância era dupla: primeiro, o diminutivo, lembrando lugar pequeno; depois, e mais importante: de maneira geral, sertão alude a um lugar agreste, distante, de gente pobre e inculta. E a nossa cidade, diziam, já tinha deixado essa situação para trás.
(p. 10)
Ainda não éramos uma metrópole, mas estávamos crescendo, progredindo. Propunham para ela o nome de Fernando Nogueira, o fundador do shopping, que havia falecido poucos anos antes. Um plebiscito foi feito e a maioria dos votantes optou por manter a denominação tradicional. Continuamos o Sertãozinho de Baixo. Mas com um título adicional: "Novo Sertão", expressão criada por uma agência de publicidade contratada pelo prefeito de então, Felisberto de Assis, um político veterano e de não poucas ambições. Na apresentação da campanha, que incluía prospectos, cartazes coloridos e até filmetes para a tevê, explicou o publicitário encarregado, um carioca chamado Josino Albuquerque ("descendente de baianos, e com muito orgulho"):
-- O objetivo desta campanha é transformar o limão em limonada: o que era a imagem do atraso, hoje pode ser o começo de uma riqueza. Sertão, sim. Geograficamente falando, sertão. Mas é um outro sertão, o sertão que vai em frente, o sertão gerador de riquezas. Enfim: o Novo Sertão!
O que provocou mais uma discussão. Muita gente achou aquela história de "O Novo Sertão" frescura, coisa para impressionar ingênuos. No jornal às vezes aparece a expressão, às vezes não. O nome da cidade é que ficou.
Polêmicas e campanhas à parte, Sertãozinho de Baixo era, e é, um lugar bom de morar. Meu pai, por exemplo, sempre gostou daqui. Agora aposentado por doença (tem uma artrite rebelde e incapacitante), foi, durante muitos anos, o delegado de polícia. Era respeitado, mas não temido; ao contrário, as pessoas o admiravam, consideravam-no um homem sábio. Para ele, manter a ordem não queria dizer meter medo às pessoas. Acreditava muito mais no diálogo -- mesmo com delinqüentes. Uma vez uma assaltante entrou numa agência bancária.
(p. 11)
Cercado, e muito nervoso, disse que só sairia de lá morto. Meu pai, sozinho e desarmado, entrou no lugar. Conversou por mais de uma hora com o assaltante e por fim saiu trazendo-o pelo braço. O homem chorava como uma criança e declarou ao jornal que fora convencido pelo delegado, "homem de coração de ouro".
Meu pai tem razão: a cidade é agradável, pacífica. E antiga: tem mais de trezentos anos, como se constata pela bela igreja e pelo casario colonial. Antiga, mas não atrasada:
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