A Morte Na Prática médica___Por José Carlos Salgado
Dissertações: A Morte Na Prática médica___Por José Carlos Salgado. Pesquise 861.000+ trabalhos acadêmicosPor: Haradrin • 24/3/2014 • 1.836 Palavras (8 Páginas) • 508 Visualizações
A morte na prática médica
A morte é uma das mais autênticas problemáticas da condição humana, tendo demandado diligências para o seu enquadramento ao longo da história do pensamento ocidental. A sociedade contemporânea labora com a morte por meio da tentativa de suprimi-la de seu cotidiano. Vivemos na cultura do narcisismo, caracterizada pela dificuldade de discernir o que realmente somos, da fantasia dos produtos que consumimos. Vive-se, portanto, em um mundo “onírico, de impressões e aparências”. Escamoteia-se a morte porque ela é a comprovação de nossa finitude, nosso limite ultimo. Paralelamente, tem-se o início do processo de medicalização do morrer e da própria morte. O tradicional morrer não ocorre mais no leito em domicílio, com o enfermo assistido por familiares e pessoas amigas; passa a acontecer em instituições médicas, tendo como companhia equipamentos e profissionais atarefados. A morte torna-se solitária e, por isso, assustadora.
Essa parece ser uma organização que contempla a dessacralização e a banalidade da morte, cujas consequências são nocivas: os ritos de morte são simplificados, a repressão da dor é prescrita em lugar das manifestações outrora usuais, medicaliza-se o luto. No contexto hospitalar, o doente e, muitas vezes, a família não têm participação na decisão da morte. Trata-se da morte interdita em que o moribundo parte sem dizer e ouvir nada sobre seu momento final. Ademais, o desenvolvimento da medicina de alta tecnologia transformou a trajetória das doenças: prolongou-se a vida e o processo de morrer. Isso criou um novo modelo médico em que os profissionais têm de cuidar e conviver com pacientes gravemente enfermos, situação muitas vezes acompanhada de árduo sofrimento.
O médico tornou-se o responsável por combater e vencer a morte; é o ser tanatolítico
(grego: tanatos = morte, litis = destruição) que decide tecnicamente o momento da morte e as circunstâncias do morrer. Dessa maneira, o profissional assume-se como onipotente e prioriza salvar o paciente a qualquer custo a fim de corresponder às expectativas idealizadas de preservador de vidas. No entanto, a ocorrência da morte e de doenças incuráveis confronta tais preceitos, fazendo o médico se defrontar com sua insignificância diante de situações irreversíveis: depara-se consigo mesmo, com a própria finitude, frustrando-se. Com efeito, temerosos por esses sentimentos, é no isolamento das emoções que os médicos buscam uma de suas principais defesas contra a angústia. Gera-se a ideologia do distanciamento e da frialdade desumanizadora. A neutralidade, a alienação e a indiferença são ditas sine qua non para o bom desempenho do trabalho, uma vez que afastam o sofrimento do profissional frente à morte do outro e de si mesmo.
A formação médica promove a incorporação desse modelo aparentemente racional, não emocional e científico. O estudante de Medicina, no primeiro ano de faculdade, entra em contato com os cadáveres nas aulas de Anatomia. O defrontar-se com o cadáver inicia os alunos no desenvolvimento dos mecanismos de defesa imprescindíveis à futura profissão. Nesse instante, o discente é confrontado com a morte e passa a acionar suas defesas: inicialmente, esse contato é difícil; aos poucos, o cadáver torna-se objeto de satisfações libidinais, permitindo ao aluno experimentar uma sensação de poder absoluto. Para ele, a busca do conhecimento e a objetividade científica têm a função de aliviar a angústia diante da morte. Posteriormente, será iniciado na Propedêutica, quando terá o real contato com os doentes, passando a frequentar o ambulatório e o hospital. Acontece uma mudança significativa nesse momento: tem-se que conviver e aprender a lidar com o fato de que o desenvolvimento do aprendizado da medicina se dará por meio da dor, sofrimento e morte dos pacientes. O aluno se defronta com a sua própria finitude ao lidar com o vivo que está próximo da morte, o futuro morto.
No internato, os alunos são membros integrantes do corpo médico e vão aprender medicina em situações reais do cotidiano hospitalar. A rotina de suas vivências acadêmicas deixa pouco espaço para os momentos de introspecção. As dúvidas e angústias são muitas, e a auto-avaliação é realizada frente ao paciente por meio da capacidade diagnóstico-terapêutica. É a partir daqui que se tem a percepção de que a realidade profissional é muito distorcida e dissuadida da fantasia de cura e controle sobre a vida dos pacientes. Mais do que isso, o futuro médico não tem, na maior parte de sua formação acadêmica, a possibilidade de discutir de modo adequado as suas dúvidas, dores e vivências com profissionais gabaritados, pela insuficiência de conteúdos teóricos na grade curricular e ausência de especialistas para clarear os conceitos e dirimir preconceitos sobre o tema. Assim, na prática, raramente está investido no papel profissional que deverá futuramente desempenhar em situações do morrer e da morte; por conseguinte, a angústia emergirá somente em situações-limite.
Se a medicina contemporânea negligencia os aspectos psicossociais do processo saúde-doença, o que dizer sobre a sua concepção de morte?
A ciência assimilou muito bem o conceito de vida, mas não conseguiu explicar o de morte. A morte é interpretada somente como uma contraposição contraditória da vida, como a ausência da vida, em suma, como o não-ser. Mas a morte é um fato que tem também seu significado positivo, é um aspecto particular do ser e não só do não ser; é um certo algo e não o completo nada. A explicação da ciência sobre a morte (ou sobre o não ser) está situada na perspectiva biologicista do modelo biomédico, ou seja, “a morte consiste, simplesmente, na paralisação total da máquina-corpo”.
Assim, profissionais de saúde são formados para lidar tecnicamente com os fenômenos da doença e da morte. Ou seja, o profissional é formado para curar a doença, combater a morte; e não para lidar com a pessoa doente ou a pessoa que está morrendo. Uma perspectiva que surge como uma alternativa a esse modelo é a abordagem dos cuidados paliativos. Diferentemente do paradigma de cura da ciência médica, os cuidados paliativos valorizam a qualidade de vida do paciente e, por isso, têm como princípio fundamental o cuidado integral e o respeito à autonomia do paciente em relação ao processo de morrer.
O cuidado paliativo é uma abordagem que tem como objetivo melhorar a qualidade de vida de pacientes e familiares no enfrentamento de problemas relacionados a doenças terminais. Isso é feito através da prevenção e do alívio do sofrimento pelo diagnóstico precoce, avaliação
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