Dualidade Do Conceito De Cultura
Pesquisas Acadêmicas: Dualidade Do Conceito De Cultura. Pesquise 862.000+ trabalhos acadêmicosPor: 07071995 • 20/2/2014 • 1.971 Palavras (8 Páginas) • 419 Visualizações
A Dualidade do Conceito de Cultura
Roberto DaMatta
(Publicado no jornal “O Estado de São Paulo” em 20/05/1999)
Nossa atenção ao conceito de cultura é inversamente proporcional à paixão com que falamos sobre os seus produtos. Arte, música, literatura, teatro e cinema são, como no futebol, quase sempre discutidos, enquanto a grande categoria que permite alterar estas coisas - a idéia de cultura - é ignorada. E, no entanto, existe uma dualidade no conceito de cultura. Há a idéia da Cultura ( com “C” grande ) e a “cultura” ( com “c” pequeno ). A entrega de um “prêmio multicultural” é uma boa oportunidade para refletir um pouco sobre essas duas acepções que, sem espírito crítico, podem levar a uma visão deformada e confusa da vida social e de seus produtos mais proeminentes e elaborados.
Na visão corrente - a dos suplementos literários e das revistas semanais - a “Cultura” com “c” maiúsculo engloba “cultura” como estilo de vida. Dessa perspectiva, haveria um padrão ideal de manifestação artística, literária e dramática dentro do qual caberiam todos os outros costumes e manifestações humanas. Os grandes artistas do Ocidente seriam o ponto para onde tenderiam todas as outras expressões intelectuais e emocionais. Essa é uma maneira linear e englobante de falar de “cultura “. Um jeito que obviamente limita a problemática da diversidade e da equivalência de outros valores e formas simbólicas. Nesse sentido preciso, a “ Cultura” canibaliza as “culturas”, fechando espaços para manifestações locais e singulares, quase sempre lidas como “atrasadas”, “ingênuas”, “primitivas” e, usualmente, “desinformadas”, “elementares” e “subdesenvolvidas”.
Vistas como apêndices da grande “Cultura” produzida nos países centrais, essas manifestações não têm vida própria e luz interior, pois seriam meros ensaios e bisonhas caricaturas das técnicas e da obra que só o Ocidente produziu, esse “ Ocidente” que, nesse contexto, assume o papel de medida universal de todas as coisas.
Mas como, mais precisamente, “Cultura” e “cultura” se diferenciam?
Como sugeri acima, idéia de “Cultura” confunde-se com a noção progresso e com o prestigioso e bem estabelecido conceito de “civilização”. Neste nível, “Cultura” e civilização são sinônimos e remetem a uma visada evolucionista e universalista da sociedade e da história. Já a “cultura” (com “c” minúsculo) é a palavra central do vocabulário romântico, um vocabulário centrado não nos contratualistas ingleses, mas nos holistas alemães e, em seguida, na tradição antropológica contemporânea. Uma tradição que tem insistido em compreender o distante e respeitar o diferente, estando interessada no desvendamento de instituições exóticas e “primitivas” - coisas como o canibalismo e o politeísmo, os rituais de possessão e o carnaval, a ausência de Estado e a vingança, a dádiva e as formas de família...
Dentre todas as disciplinas humanas e sociais, a tradição antropológica tem sido a única a relacionar criticamente universalismo cientificista com particularismo histórico, um diálogo esquecido das disciplinas “sociais” centrais, como a economia e a ciência política, que abraçaram sem remorso os valores empiricistas do Iluminismo.
Resistindo tanto a redução positivista quantos aos delírios românticos, essa visada tem testemunhado ( e denunciado) os efeitos trágicos do “progresso” tecnológico nas sociedades tribais e pago um preço por isso. Sua crítica relativizadora à idéia de progresso e atraso, de civilização e de selvageria, tem sido lida como um traço francamente conservador a até mesmo reacionário. Aqui não se fala em “Cultura” e natureza humana, mas em “culturas” como expressões mutuamente traduzíveis e irredutíveis entre si e das várias possibilidades do ser humano.
Como adjetivo, atribuímos “Cultura” ( e “civilização”) a alguém ou a algum grupo como uma prova do seu refinamento. Pedro, conhecedor de vinhos, ouvinte de música clássica e capaz de ler em francês, inglês e alemão, teria mais cultura do que João ou Manoel que nada sabem dessas coisas. Nessa acepção, a cultura seria um produto desejável. Seja, como disse, como o ponto culminante de um “processo civilizatório”; seja como um item a ser obtido, comprado ou adquirido. Esse sentido tem um sólido sabor normativo, pois ele implica que todo mundo deveria ser como Pedro e ter uma “vasta”, “bela”, “sólida” ou inegável” cultura e ser “civilizado”. Desse ângulo, a palavra “cultura” filia-se a veneráveis valores políticos, coincidindo com a noção de “civilidade” e de “sociedade civil”. Desse enlace e dessa visão linear e evolucionária de “Cultura” como “civilidade” e “civilização” - algo cumulativo e obtido por estágios e etapas - nasce o conceito de “desenvolvimento” como um modo “progressista”, posto que centrado no eixo econômico, de interpretar as diferenças entre as sociedades e as nações.
Mas ao fim e ao cabo, essa idéia de cultura assume o exclusivo e o dominante quando afirma que, de um lado, há um grupo seleto de nações civilizadas, povos que descobriram as leis da história e, por meio delas, um modo de vida racional e natural, que formam o centro do sistema e o resto.
As coletividades “centrais” e “civilizadas” não teriam costumes, hábitos e superstições - ou seja, aquela “cultura” que nos distancia de uma visão idealizada de nós mesmos. Nelas, todos os hábitos seguiriam fórmulas racionais, naturais ou científicas. Em suma, “Cultura”, civilização, sociedade civil e desenvolvimento fazem parte de um vocabulário positivo, universal e dominante.
Mas a grande descoberta antropológica é que todo mundo têm “cultura”.
Lida como um substantivo, à maneira antropológica, a palavra “cultura” não fala apenas de um processo ou de certos traços de qualidade que podem ser achados, adquiridos, ensinados ou perdidos, esquecidos e aprendidos, mas de um estado. Nesse sentido a idéia de cultura traduz duas dimensões fundamentais.
Primeiramente, ela serve para demarcar o processo simbólico por meio do qual a humanidade se diferencia da animalidade e da natureza. É, pois, com o conceito de cultura que os antropólogos assinalam a diferença capital entre homens e bichos. Nesse nível, humanidade e cultura são dois elementos indissoluvelmente ligados. Nele, a cultura significa a capacidade de simbolizar. Um macaco sabe o que é água, mas nenhum macaco jamais
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