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Ética Ou Filosofia Moral

Casos: Ética Ou Filosofia Moral. Pesquise 862.000+ trabalhos acadêmicos

Por:   •  26/10/2013  •  4.470 Palavras (18 Páginas)  •  1.614 Visualizações

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O texto a seguir pertence ao livro de Marilena Chaui, Convite a Filosofia, publicado pela

Editora Atica, em 2000.

Etica ou filosofia moral

Toda cultura e cada sociedade institui uma moral, isto e, valores concernentes ao bem e ao

mal, ao permitido e ao proibido, e a conduta correta, validos para todos os seus membros.

Culturas e sociedades fortemente hierarquizadas e com diferencas muito profundas de castas

ou de classes podem ate mesmo possuir varias morais, cada uma delas referida aos valores de

uma casta ou de uma classe social.

No entanto, a simples existencia da moral nao significa a presenca explicita de uma etica,

entendida como filosofia moral, isto e, uma reflexao que discuta, problematize e interprete o

significado dos valores morais. Podemos dizer, a partir dos textos de Platao e de Aristoteles,

que, no Ocidente, a etica ou filosofia moral inicia-se com Socrates.

Percorrendo pracas e ruas de Atenas . contam Platao e Aristoteles -, Socrates perguntava

aos atenienses, fossem jovens ou velhos, o que eram os valores nos quais acreditavam e que

respeitavam ao agir.

Que perguntas Socrates lhes fazia? Indagava: O que e a coragem? O que e a justica? O que e

a piedade? O que e a amizade? A elas, os atenienses respondiam dizendo serem virtudes.

Socrates voltava a indagar: O que e a virtude? Retrucavam os atenienses: E agir em

conformidade com o bem. E Socrates questionava: Que e o bem?

As perguntas socraticas terminavam sempre por revelar que os atenienses respondiam sem

pensar no que diziam. Repetiam o que lhes fora ensinado desde a infancia. Como cada um

havia interpretado a sua maneira o que aprendera, era comum, no dialogo com o filosofo, uma

pergunta receber respostas diferentes e contraditorias. Apos um certo tempo de conversa

com Socrates, um ateniense via-se diante de duas alternativas: ou zangar-se e ir embora

irritado, ou reconhecer que nao sabia o que imaginava saber, dispondo-se a comecar, na

companhia socratica, a busca filosofica da virtude e do bem.

Por que os atenienses sentiam-se embaracados (e mesmo irritados) com as perguntas

socraticas? Por dois motivos principais: em primeiro lugar, por perceberem que confundiam

valores morais com os fatos constataveis em sua vida cotidiana (diziam, por exemplo,

gCoragem e o que fez fulano na guerra contra os persash); em segundo lugar, porque,

inversamente, tomavam os fatos da vida cotidiana como se fossem valores morais evidentes

(diziam, por exemplo, gE certo fazer tal acao, porque meus antepassados a fizeram e meus

parentes a fazemh). Em resumo, confundiam fatos e valores, pois ignoravam as causas ou

razoes por que valorizavam certas coisas, certas pessoas ou certas acoes e desprezavam

outras, embaracando-se ou irritando-se quando Socrates lhes mostrava que estavam

confusos. Tais confusoes, porem, nao eram (e nao sao) inexplicaveis.

Nossos sentimentos, nossas condutas, nossas acoes e nossos comportamentos sao

modelados pelas condicoes em que vivemos (familia, classe e grupo social, escola, religiao,

trabalho, circunstancias politicas, etc.). Somos formados pelos costumes de nossa sociedade,

que nos educa para respeitarmos e reproduzirmos os valores propostos por ela como bons e,

portanto, como obrigacoes e deveres. Dessa maneira, valores e maneiras parecem existir por

si e em si mesmos, parecem ser naturais e intemporais, fatos ou dados com os quais nos

relacionamos desde o nosso nascimento: somos recompensados quando os seguimos, punidos

quando os transgredimos.

Socrates embaracava os atenienses porque os forcava a indagar qual a origem e a essencia

das virtudes (valores e obrigacoes) que julgavam praticar ao seguir os costumes de Atenas.

Como e por que sabiam que uma conduta era boa ou ma, virtuosa ou viciosa? Por que, por

exemplo, a coragem era considerada virtude e a covardia, vicio? Por que valorizavam

positivamente a justica e desvalorizavam a injustica, combatendo-a? Numa palavra: o que

eram e o que valiam realmente os costumes que lhes haviam sido ensinados?

Os costumes, porque sao anteriores ao nosso nascimento e formam o tecido da sociedade em

que vivemos, sao considerados inquestionaveis e quase sagrados (as religioes tendem a

mostra-los como tendo sido ordenados pelos deuses, na origem dos tempos). Ora, a palavra

costume se diz, em grego, ethos . donde, etica . e, em latim, mores . donde, moral. Em

outras palavras, etica e moral referem-se ao conjunto de costumes tradicionais de uma

sociedade e que, como tais, sao considerados valores e obrigacoes para a conduta de seus

membros. Socrates indagava o que eram, de onde vinham, o que valiam tais costumes.

No entanto, a lingua grega possui uma outra palavra que, infelizmente, precisa ser escrita, em

portugues, com as mesmas letras que a palavra que significa costume: ethos. Em grego,

existem duas vogais para pronunciar e grafar nossa vogal e: uma vogal breve, chamada

epsilon, e uma vogal longa, chamada eta. Ethos, escrita com a vogal longa (ethos com eta),

significa costume; porem, escrita com a vogal breve (ethos com epsilon), significa carater,

indole natural, temperamento, conjunto das disposicoes fisicas e psiquicas de uma pessoa.

Nesse segundo sentido, ethos se refere as caracteristicas pessoais de cada um que

determinam quais virtudes e quais vicios cada um e capaz de praticar. Refere-se, portanto, ao

senso moral e a consciencia etica individuais.

Dirigindo-se aos atenienses, Socrates lhes perguntava qual o sentido dos costumes

estabelecidos (ethos com eta: os valores eticos ou morais da coletividade, transmitidos de

geracao a geracao), mas tambem indagava quais as disposicoes de carater (ethos com

epsilon: caracteristicas pessoais, sentimentos, atitudes, condutas individuais) que levavam

alguem a respeitar ou a transgredir os valores da cidade, e por que.

Ao indagar o que sao a virtude e o bem, Socrates realiza na verdade duas interrogacoes. Por

um lado, interroga a sociedade para saber se o que ela costuma (ethos com eta) considerar

virtuoso e bom corresponde efetivamente a virtude e ao bem; e, por outro lado, interroga os

individuos para saber se, ao agir, possuem efetivamente consciencia do significado e da

finalidade de suas acoes, se seu carater ou sua indole (ethos com epsilon) sao realmente

virtuosos e bons. A indagacao etica socratica dirige-se, portanto, a sociedade e ao individuo.

As questoes socraticas inauguram a etica ou filosofia moral, porque definem o campo no qual

valores e obrigacoes morais podem ser estabelecidos, ao encontrar seu ponto de partida: a

consciencia do agente moral. E sujeito etico moral somente aquele que sabe o que faz,

conhece as causas e os fins de sua acao, o significado de suas intencoes e de suas atitudes e a

essencia dos valores morais. Socrates afirma que apenas o ignorante e vicioso ou incapaz de

virtude, pois quem sabe o que e o bem nao podera deixar de agir virtuosamente.

Se devemos a Socrates o inicio da filosofia moral, devemos a Aristoteles a distincao entre

saber teoretico e saber pratico. O saber teoretico e o conhecimento de seres e fatos que

existem e agem independentemente de nos e sem nossa intervencao ou interferencia. Temos

conhecimento teoretico da Natureza. O saber pratico e o conhecimento daquilo que so existe

como consequencia de nossa acao e, portanto, depende de nos. A etica e um saber pratico.

O saber pratico, por seu turno, distingue-se de acordo com a pratica, considerada como

praxis ou como tecnica. A etica refere-se a praxis.

Na praxis, o agente, a acao e a finalidade do agir sao inseparaveis. Assim, por exemplo, dizer

a verdade e uma virtude do agente, inseparavel de sua fala verdadeira e de sua finalidade, que

e proferir uma verdade. Na praxis etica somos aquilo que fazemos e o que fazemos e a

finalidade boa ou virtuosa. Ao contrario, na tecnica, diz Aristoteles, o agente, a acao e a

finalidade da acao estao separados, sendo independentes uns dos outros. Um carpinteiro, por

exemplo, ao fazer uma mesa, realiza uma acao tecnica, mas ele proprio nao e essa acao nem e

a mesa produzida pela acao. A tecnica tem como finalidade a fabricacao de alguma coisa

diferente do agente e da acao fabricadora. Dessa maneira, Aristoteles distingue a etica e a

tecnica como praticas que diferem pelo modo de relacao do agente com a acao e com a

finalidade da acao.

Tambem devemos a Aristoteles a definicao do campo das acoes eticas. Estas nao so sao

definidas pela virtude, pelo bem e pela obrigacao, mas tambem pertencem aquela esfera da

realidade na qual cabem a deliberacao e a decisao ou escolha. Em outras palavras, quando o

curso de uma realidade segue leis necessarias e universais, nao ha como nem por que

deliberar e escolher, pois as coisas acontecerao necessariamente tais como as leis que as

regem determinam que devam acontecer.

Nao deliberamos sobre as estacoes do ano, o movimento dos astros, a forma dos minerais ou

dos vegetais. Nao deliberamos e nem decidimos sobre aquilo que e regido pela Natureza, isto

e, pela necessidade. Mas deliberamos e decidimos sobre tudo aquilo que, para ser e

acontecer, depende de nossa vontade e de nossa acao. Nao deliberamos e nao decidimos

sobre o necessario, pois o necessario e o que e e o que sera sempre, independentemente de

nos. Deliberamos e decidimos sobre o possivel, isto e, sobre aquilo que pode ser ou deixar de

ser, porque para ser e acontecer depende de nos, de nossa vontade e de nossa acao.

Aristoteles acrescenta a consciencia moral, trazida por Socrates, a vontade guiada pela razao

como o outro elemento fundamental da vida etica.

A importancia dada por Aristoteles a vontade racional, a deliberacao e a escolha o levou a

considerar uma virtude como condicao de todas as outras e presente em todas elas: a

prudencia ou sabedoria pratica. O prudente e aquele que, em todas as situacoes, e capaz de

julgar e avaliar qual a atitude e qual a acao que melhor realizarao a finalidade etica, ou seja,

entre as varias escolhas possiveis, qual a mais adequada para que o agente seja virtuoso e

realize o que e bom para si e para os outros.

Se examinarmos o pensamento filosofico dos antigos, veremos que nele a etica afirma tres

grandes principios da vida moral:

1. por natureza, os seres humanos aspiram ao bem e a felicidade, que so podem ser

alcancados pela conduta virtuosa;

2. a virtude e uma forca interior do carater, que consiste na consciencia do bem e na conduta

definida pela vontade guiada pela razao, pois cabe a esta ultima o controle sobre instintos e

impulsos irracionais descontrolados que existem na natureza de todo ser humano;

3. a conduta etica e aquela na qual o agente sabe o que esta e o que nao esta em seu poder

realizar, referindo-se, portanto, ao que e possivel e desejavel para um ser humano. Saber o

que esta em nosso poder significa, principalmente, nao se deixar arrastar pelas circunstancias,

nem pelos instintos, nem por uma vontade alheia, mas afirmar nossa independencia e nossa

capacidade de autodeterminacao.

O sujeito etico ou moral nao se submete aos acasos da sorte, a vontade e aos desejos de um

outro, a tirania das paixoes, mas obedece apenas a sua consciencia . que conhece o bem e as

virtudes . e a sua vontade racional . que conhece os meios adequados para chegar aos fins

morais. A busca do bem e da felicidade sao a essencia da vida etica.

Os filosofos antigos (gregos e romanos) consideravam a vida etica transcorrendo como um

embate continuo entre nossos apetites e desejos . as paixoes . e nossa razao. Por natureza,

somos passionais e a tarefa primeira da etica e a educacao de nosso carater ou de nossa

natureza, para seguirmos a orientacao da razao. A vontade possuia um lugar fundamental

nessa educacao, pois era ela que deveria ser fortalecida para permitir que a razao controlasse

e dominasse as paixoes.

O passional e aquele que se deixa arrastar por tudo quanto satisfaca imediatamente seus

apetites e desejos, tornando-se escravo deles. Desconhece a moderacao, busca tudo

imoderadamente, acabando vitima de si mesmo.

Podemos resumir a etica dos antigos em tres aspectos principais:

1. o racionalismo: a vida virtuosa e agir em conformidade com a razao, que conhece o bem, o

deseja e guia nossa vontade ate ele;

2. o naturalismo: a vida virtuosa e agir em conformidade com a Natureza (o cosmos) e com

nossa natureza (nosso ethos), que e uma parte do todo natural;

3. a inseparabilidade entre etica e politica: isto e, entre a conduta do individuo e os valores da

sociedade, pois somente na existencia compartilhada com outros encontramos liberdade,

justica e felicidade.

A etica, portanto, era concebida como educacao do carater do sujeito moral para dominar

racionalmente impulsos, apetites e desejos, para orientar a vontade rumo ao bem e a

felicidade, e para forma-lo como membro da coletividade sociopolitica. Sua finalidade era a

harmonia entre o carater do sujeito virtuoso e os valores coletivos, que tambem deveriam ser

virtuosos.

O cristianismo: interioridade e dever

Diferentemente de outras religioes da Antiguidade, que eram nacionais e politicas, o

cristianismo nasce como religiao de individuos que nao se definem por seu pertencimento a

uma nacao ou a um Estado, mas por sua fe num mesmo e unico Deus. Em outras palavras,

enquanto nas demais religioes antigas a divindade se relacionava com a comunidade social e

politicamente organizada, o Deus cristao relaciona-se diretamente com os individuos que nele

creem. Isso significa, antes de qualquer coisa, que a vida etica do cristao nao sera definida por

sua relacao com a sociedade, mas por sua relacao espiritual e interior com Deus. Dessa

maneira, o cristianismo introduz duas diferencas primordiais na antiga concepcao etica:

œ em primeiro lugar, a ideia de que a virtude se define por nossa relacao com Deus e nao com

a cidade (a polis) nem com os outros. Nossa relacao com os outros depende da qualidade de

nossa relacao com Deus, unico mediador entre cada individuo e os demais. Por esse motivo,

as duas virtudes cristas primeiras e condicoes de todas as outras sao a fe (qualidade da

relacao de nossa alma com Deus) e a caridade (o amor aos outros e a responsabilidade pela

salvacao dos outros, conforme exige a fe). As duas virtudes sao privadas, isto e, sao relacoes

do individuo com Deus e com os outros, a partir da intimidade e da interioridade de cada um;

œ em segundo lugar, a afirmacao de que somos dotados de vontade livre . ou livre-arbitrio .

e que o primeiro impulso de nossa liberdade dirige-se para o mal e para o pecado, isto e, para

a transgressao das leis divinas. Somos seres fracos, pecadores, divididos entre o bem

(obediencia a Deus) e o mal (submissao a tentacao demoniaca). Em outras palavras, enquanto

para os filosofos antigos a vontade era uma faculdade racional capaz de dominar e controlar a

desmesura passional de nossos apetites e desejos, havendo, portanto, uma forca interior (a

vontade consciente) que nos tornava morais, para o cristianismo, a propria vontade esta

pervertida pelo pecado e precisamos do auxilio divino para nos tornarmos morais.

Qual o auxilio divino sem o qual a vida etica seria impossivel? A lei divina revelada, que

devemos obedecer obrigatoriamente e sem excecao.

O cristianismo, portanto, passa a considerar que o ser humano e, em si mesmo e por si

mesmo, incapaz de realizar o bem e as virtudes. Tal concepcao leva a introduzir uma nova

ideia na moral: a ideia do dever.

Por meio da revelacao aos profetas (Antigo Testamento) e de Jesus Cristo (Novo

Testamento), Deus tornou sua vontade e sua lei manifestas aos seres humanos, definindo

eternamente o bem e o mal, a virtude e o vicio, a felicidade e a infelicidade, a salvacao e o

castigo. Aos humanos, cabe reconhecer a vontade e a lei de Deus, cumprindo-as

obrigatoriamente, isto e, por atos de dever. Estes tornam morais um sentimento, uma intencao,

uma conduta ou uma acao.

Mesmo quando, a partir do Renascimento, a filosofia moral distancia-se dos principios

teologicos e da fundamentacao religiosa da etica, a ideia do dever permanecera como uma

das marcas principais da concepcao etica ocidental. Com isso, a filosofia moral passou a

distinguir tres tipos fundamentais de conduta:

1. a conduta moral ou etica, que se realiza de acordo com as normas e as regras impostas

pelo dever;

2. a conduta imoral ou antietica, que se realiza contrariando as normas e as regras fixadas pelo

dever;

3. a conduta indiferente a moral, quando agimos em situacoes que nao sao definidas pelo bem

e pelo mal, e nas quais nao se impoem as normas e as regras do dever.

Juntamente com a ideia do dever, a moral crista introduziu uma outra, tambem decisiva na

constituicao da moralidade ocidental: a ideia de intencao.

Ate o cristianismo, a filosofia moral localizava a conduta etica nas acoes e nas atitudes visiveis

do agente moral, ainda que tivessem como pressuposto algo que se realizava no interior do

agente, em sua vontade racional ou consciente. Eram as condutas visiveis que eram julgadas

virtuosas ou viciosas. O cristianismo, porem, e uma religiao da interioridade, afirmando que a

vontade e a lei divinas nao estao escritas nas pedras nem nos pergaminhos, mas inscritas no

coracao dos seres humanos. A primeira relacao etica, portanto, se estabelece entre o coracao

do individuo e Deus, entre a alma invisivel e a divindade. Como consequencia, passou-se a

considerar como submetido ao julgamento etico tudo quanto, invisivel aos olhos humanos, e

visivel ao espirito de Deus, portanto, tudo quanto acontece em nosso interior. O dever nao se

refere apenas as acoes visiveis, mas tambem as intencoes invisiveis, que passam a ser julgadas

eticamente. Eis por que um cristao, quando se confessa, obriga-se a confessar pecados

cometidos por atos, palavras e intencoes. Sua alma, invisivel, tem o testemunho do olhar de

Deus, que a julga.

Natureza humana e dever

O cristianismo introduz a ideia do dever para resolver um problema etico, qual seja, oferecer

um caminho seguro para nossa vontade, que, sendo livre, mas fraca, sente-se dividida entre o

bem e o mal. No entanto, essa ideia cria um problema novo. Se o sujeito moral e aquele que

encontra em sua consciencia (vontade, razao, coracao) as normas da conduta virtuosa,

submetendo-se apenas ao bem, jamais submetendo-se a poderes externos a consciencia,

como falar em comportamento etico por dever? Este nao seria o poder externo de uma

vontade externa (Deus), que nos domina e nos impoe suas leis, forcando-nos a agir em

conformidade com regras vindas de fora de nossa consciencia?

Em outras palavras, se a etica exige um sujeito autonomo, a ideia de dever nao introduziria a

heteronomia, isto e, o dominio de nossa vontade e de nossa consciencia por um poder

estranho a nos?

Um dos filosofos que procuraram resolver essa dificuldade foi Rousseau, no seculo XVIII.

Para ele, a consciencia moral e o sentimento do dever sao inatos, sao ga voz da Naturezah e o

gdedo de Deush em nossos coracoes. Nascemos puros e bons, dotados de generosidade e de

benevolencia para com os outros. Se o dever parece ser uma imposicao e uma obrigacao

externa, imposta por Deus aos humanos, e porque nossa bondade natural foi pervertida pela

sociedade, quando esta criou a propriedade privada e os interesses privados, tornando-nos

egoistas, mentirosos e destrutivos.

O dever simplesmente nos forca a recordar nossa natureza originaria e, portanto, so em

aparencia e imposicao exterior. Obedecendo ao dever (a lei divina inscrita em nosso

coracao), estamos obedecendo a nos mesmos, aos nossos sentimentos e as nossas emocoes e

nao a nossa razao, pois esta e responsavel pela sociedade egoista e perversa.

Uma outra resposta, tambem no final do seculo XVIII, foi trazida por Kant. Opondo-se a

gmoral do coracaoh de Rousseau, Kant volta a afirmar o papel da razao na etica. Nao existe

bondade natural. Por natureza, diz Kant, somos egoistas, ambiciosos, destrutivos, agressivos,

crueis, avidos de prazeres que nunca nos saciam e pelos quais matamos, mentimos, roubamos.

E justamente por isso que precisamos do dever para nos tornarmos seres morais.

A exposicao kantiana parte de duas distincoes:

1. a distincao entre razao pura teorica ou especulativa e razao pura pratica;

2. a distincao entre acao por causalidade ou necessidade e acao por finalidade ou liberdade.

Razao pura teorica e pratica sao universais, isto e, as mesmas para todos os homens em todos

os tempos e lugares . podem variar no tempo e no espaco os conteudos dos conhecimentos e

das acoes, mas as formas da atividade racional de conhecimento e da acao sao universais. Em

outras palavras, o sujeito, em ambas, e sujeito transcendental, como vimos na teoria do

conhecimento. A diferenca entre razao teorica e pratica encontra-se em seus objetos. A razao

teorica ou especulativa tem como materia ou conteudo a realidade exterior a nos, um sistema

de objetos que opera segundo leis necessarias de causa e efeito, independentes de nossa

intervencao; a razao pratica nao contempla uma causalidade externa necessaria, mas cria sua

propria realidade, na qual se exerce. Essa diferenca decorre da distincao entre necessidade e

finalidade/liberdade.

A Natureza e o reino da necessidade, isto e, de acontecimentos regidos por sequencias

necessarias de causa e efeito . e o reino da fisica, da astronomia, da quimica, da psicologia.

Diferentemente do reino da Natureza, ha o reino humano da praxis, no qual as acoes sao

realizadas racionalmente nao por necessidade causal, mas por finalidade e liberdade.

A razao pratica e a liberdade como instauracao de normas e fins eticos. Se a razao pratica

tem o poder para criar normas e fins morais, tem tambem o poder para impo-los a si mesma.

Essa imposicao que a razao pratica faz a si mesma daquilo que ela propria criou e o dever.

Este, portanto, longe de ser uma imposicao externa feita a nossa vontade e a nossa

consciencia, e a expressao da lei moral em nos, manifestacao mais alta da humanidade em

nos. Obedece-lo e obedecer a si mesmo. Por dever, damos a nos mesmos os valores, os fins

e as leis de nossa acao moral e por isso somos autonomos.

Resta, porem, uma questao: se somos racionais e livres, por que valores, fins e leis morais nao

sao espontaneos em nos, mas precisam assumir a forma do dever?

Responde Kant: porque nao somos seres morais apenas. Tambem somos seres naturais,

submetidos a causalidade necessaria da Natureza. Nosso corpo e nossa psique sao feitos de

apetites, impulsos, desejos e paixoes. Nossos sentimentos, nossas emocoes e nossos

comportamentos sao a parte da Natureza em nos, exercendo dominio sobre nos,

submetendo-se a causalidade natural inexoravel. Quem se submete a eles nao pode possuir a

autonomia etica.

A Natureza nos impele a agir por interesse. Este e a forma natural do egoismo que nos leva a

usar coisas e pessoas como meios e instrumentos para o que desejamos. Alem disso, o

interesse nos faz viver na ilusao de que somos livres e racionais por realizarmos acoes que

julgamos terem sido decididas livremente por nos, quando, na verdade, sao um impulso cego

determinado pela causalidade natural. Agir por interesse e agir determinado por motivacoes

fisicas, psiquicas, vitais, a maneira dos animais.

Visto que apetites, impulsos, desejos, tendencias, comportamentos naturais costumam ser

muito mais fortes do que a razao, a razao pratica e a verdadeira liberdade precisam dobrar

nossa parte natural e impor-nos nosso ser moral. Elas o fazem obrigando-nos a passar das

motivacoes do interesse para o dever. Para sermos livres, precisamos ser obrigados pelo

dever de sermos livres.

Assim, a pergunta que fizemos no capitulo anterior sobre o perigo da educacao etica ser

violencia contra nossa natureza espontaneamente passional, Kant respondera que, pelo

contrario, a violencia estara em nao compreendermos nossa destinacao racional e em

confundirmos nossa liberdade com a satisfacao irracional de todos os nossos apetites e

impulsos. O dever revela nossa verdadeira natureza.

O dever, afirma Kant, nao se apresenta atraves de um conjunto de conteudos fixos, que

definiriam a essencia de cada virtude e diriam que atos deveriam ser praticados e evitados em

cada circunstancia de nossas vidas. O dever nao e um catalogo de virtudes nem uma lista de

gfaca istoh e gnao faca aquiloh. O dever e uma forma que deve valer para toda e qualquer

acao moral.

Essa forma nao e indicativa, mas imperativa. O imperativo nao admite hipoteses (gsec

entaoh) nem condicoes que o fariam valer em certas situacoes e nao valer em outras, mas vale

incondicionalmente e sem excecoes para todas as circunstancias de todas as acoes morais.

Por isso, o dever e um imperativo categorico. Ordena incondicionalmente. Nao e uma

motivacao psicologica, mas a lei moral interior.

O imperativo categorico exprime-se numa formula geral: Age em conformidade apenas com a

maxima que possas querer que se torne uma lei universal. Em outras palavras, o ato moral e

aquele que se realiza como acordo entre a vontade e as leis universais que ela da a si mesma.

Essa formula permite a Kant deduzir as tres maximas morais que exprimem a

incondicionalidade dos atos realizados por dever. Sao elas:

1. Age como se a maxima de tua acao devesse ser erigida por tua vontade em lei universal da

Natureza;

2. Age de tal maneira que trates a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de

outrem, sempre como um fim e nunca como um meio;

3. Age como se a maxima de tua acao devesse servir de lei universal para todos os seres

racionais.

A primeira maxima afirma a universalidade da conduta etica, isto e, aquilo que todo e qualquer

ser humano racional deve fazer como se fosse uma lei inquestionavel, valida para todos e em

todo tempo e lugar. A acao por dever e uma lei moral para o agente.

A segunda maxima afirma a dignidade dos seres humanos como pessoas e, portanto, a

exigencia de que sejam tratados como fim da acao e jamais como meio ou como instrumento

para nossos interesses.

A terceira maxima afirma que a vontade que age por dever institui um reino humano de seres

morais porque racionais e, portanto, dotados de uma vontade legisladora livre ou autonoma.

A terceira maxima exprime a diferenca ou separacao entre o reino natural das causas e o reino

humano dos fins.

O imperativo categorico nao enuncia o conteudo particular de uma acao, mas a forma geral

das acoes morais. As maximas deixam clara a interiorizacao do dever, pois este nasce da

razao e da vontade legisladora universal do agente moral. O acordo entre vontade e dever e o

que Kant designa como vontade boa que quer o bem.

O motivo moral da vontade boa e agir por dever. O movel moral da vontade boa e o respeito

pelo dever, produzido em nos pela razao. Obediencia a lei moral, respeito pelo dever e pelos

outros constituem a bondade da vontade etica.

O imperativo categorico nao nos diz para sermos honestos, oferecendo-nos a essencia da

honestidade; nem para sermos justos, verazes, generosos ou corajosos a partir da definicao

da essencia da justica, da verdade, da generosidade ou da coragem. Nao nos diz para

praticarmos esta ou aquela acao determinada, mas nos diz para sermos eticos cumprindo o

dever (as tres maximas morais). E este que determina por que uma acao moral devera ser

sempre honesta, justa, veraz, generosa ou corajosa. Ao agir, devemos indagar se nossa acao

esta em conformidade com os fins morais, isto e, com as maximas do dever.

Por que, por exemplo, mentir e imoral? Porque o mentiroso transgride as tres maximas

morais. Ao mentir, nao respeita em sua pessoa e na do outro a humanidade (consciencia,

racionalidade e liberdade), pratica uma violencia escondendo de um outro ser humano uma

informacao verdadeira e, por meio do engano, usa a boa-fe do outro. Tambem nao respeita a

segunda maxima, pois se a mentira pudesse universalizar-se, o genero humano deveria abdicar

da razao e do conhecimento, da reflexao e da critica, da capacidade para deliberar e escolher,

vivendo na mais completa ignorancia, no erro e na ilusao.

Por que um politico corrupto e imoral? Porque transgride as tres maximas. Por que o

homicidio e imoral? Porque transgride as tres maximas.

As respostas de Rousseau e Kant, embora diferentes, procuram resolver a mesma dificuldade,

qual seja, explicar por que o dever e a liberdade da consciencia moral sao inseparaveis e

compativeis. A solucao de ambos consiste em colocar o dever em nosso interior, desfazendo

a impressao de que ele nos seria imposto de fora por uma vontade estranha a nossa.

ATIVIDADE

De acordo com o texto de Marilena Chaui, expliquem cinco dos oito pontos a seguir:

1) Conceitos de etica e moral.

2) As perguntas de Socrates como fundacao da filosofia moral.

3) Deliberacao e escolhas morais na etica de Aristoteles.

4) Conduta etica no pensamento antigo, em linhas gerais.

5) Principios fundamentais da etica crista.

6) A ideia de dever no desenvolvimento da etica ocidental.

7) Caracteristicas da Razao Pratica e do imperativo moral na filosofia de Kant.

8) Conflitos entre natureza e razao nas filosofias morais do Ocidente.

AVISO: As respostas do grupo devem ser feitas com base no texto da autora, e nao

reproduzidas do mesmo (nao copiar as explicacoes do texto, mas escrever de maneira

propria, segundo a interpretacao pessoal).

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