AS PERSPECTIVAS DE SOCIOLOGIA RURAL
Por: Ana Alcântara • 21/12/2019 • Artigo • 4.958 Palavras (20 Páginas) • 349 Visualizações
LEFEBVRE, H. Perspectivas de sociologia rural. Tradução de Cristiano de Paiva Barroso do artigo "PERSPECTIVES DE LA SOCIOLOGIE RURALE". Cahiers Internationaux de Sociologie, v.XIV, p.63-78, 1949. Reproduzido em Henri Lefebvre, Du rural à l’urbain (Paris: Anthropos, 1970, p.21-40).
Perspectivas de sociologia rural
Um artigo anterior do Cahiers Internationaux de Sociologie[1] apresentava alguns dos problemas da sociologia rural. Chegou a hora de identificar as perspectivas gerais deste ramo da sociologia, ao apresentar - e submeter para discussão - um projeto de Manual ou Tratado.
Pode-se falar de um "mundo" camponês, não no sentido de que a realidade camponesa constitui um "mundo" isolado, mas devido à sua extraordinária variedade e características próprias.
Insistamos mais uma vez num paradoxo (aparente): esta realidade há muito tempo foi ignorada e, particularmente, quando dominava quantitativa e qualitativamente a vida social. Como realidade “urbana” com as suas instituições e ideologias - como os modos sucessivos de produção, com suas superestruturas - banhado em um ambiente rural, e repousado sobre uma base agrícola ampla, homens da classe média e das classes dominantes prestavam pouca atenção aos camponeses. Não pensamos mais neles do que no estômago ou no fígado, enquanto estivermos bem! A vida camponesa apareceu como uma daquelas realidades familiares, que parecem naturais, e que muito tarde se tornam objetos da ciência. O aforismo de Hegel deve estar no topo de qualquer metodologia de ciências sociais: “o que é familiar não é por isso conhecido”, verdade válida para os gestos da vida cotidiana - por exemplo, o de comprar ou vender qualquer objeto - para os gestos do trabalho, para a vida social como um todo, ou ainda para a vida no campo.
As realidades dos agricultores tornaram-se o objeto da ciência a partir do momento em que levantaram problemas práticos.
Na França, em meados do século XIX, a distribuição das heranças e da terra, a divisão da propriedade e o êxodo rural começaram a preocupar as autoridades. A constituição do mercado nacional resulta numa reorganização da estrutura agrária: concentração da propriedade, comercialização e especialização da produção. Em seguida, as questões colocadas pelo mercado mundial, depois pelas técnicas modernas, se sobrepuseram às primeiras: proteção de preço, lucratividade, introdução de maquinário. Pouco a pouco, as realidades familiares e desconhecidas são consideradas merecedoras de interesse e estudos científicos.
Se a sociologia rural se desenvolveu nos EUA, está claro que o problema camponês é a causa, que é uma grande preocupação para os sucessivos governos.[2]
Atualmente, em todo o mundo, o "problema camponês" se colocou ou se coloca de várias formas. Em todos os lugares tiveram, ou terão, reformas agrárias: nas democracias populares, China, México, Egito, Itália, Japão, Índia, etc., etc. Sem mencionar as grandes transformações da agricultura na U.R.S.S. É claro que essas transformações e reformas têm características profundamente diferentes dependendo das condições e dos regimes políticos. Elas não expressam menos a imensidão e a atualidade mundial dos problemas agrários.
No entanto, os sociólogos passaram do estudo de primitivos para o estudo do meio urbano e industrial, saltando, por assim dizer, sobre essa realidade tão vasta no tempo e no espaço. Na França, o estudo da realidade camponesa foi iniciado por historiadores, por geógrafos[3] Mas seus trabalhos devem ser retomados hoje, de uma só vez concretizados e integrados a uma concepção global que somente a sociologia pode considerar, como um estudo da totalidade do processo social e de suas leis.
Não é demais enfatizar que grandes grupos (mercados nacional e global, estruturas sociais e políticas) contribuíram significativamente para transformar as estruturas agrárias. Do mercado nacional e global vieram as especializações (em escala nacional, podemos tomar como exemplo as vinhas do Sul e, em escala mundial as plantações de café do Brasil). A organização social e política, a ação de Estado, os planos – ou a ausência de planos, ou seus fracassos – agiram e reagiram em todos os cantos da terra. Não há um camponês hoje, mesmo na África ou na Ásia, que não dependa dos eventos mundiais.
Mas não se deve deixar de enfatizar outro aspecto da realidade, contraditório ao anterior: a agricultura mantem resíduos, remanescentes do passado mais distante. E isto especialmente em países não planejados, atrasados ou subdesenvolvidos, isto é, coloniais, mas também em países europeus "ocidentais". Numa mesma região, nos Pireneus, pode-se observar uma pouca distância uns dos outros: a lavoura mais arcaica na enxada (a "laya", do lado espanhol), o arado latino, o trator, a sobrevivência da comunidade agrária (posse e exploração coletiva das pastagens), a cooperativa moderna, a grande exploração mecanizada...
A realidade camponesa apresenta-se com uma dupla complexidade:
a) Complexidade Horizontal. Em formações agrárias e estruturas da mesma data histórica - particularmente naquelas determinadas pelos grandes grupos sociais e políticos atuais – se manifestam diferenças essenciais, chegando ao antagonismo.
Assim, nos EUA se encontra o caso limítrofe do capitalismo agrário, acompanhado por uma mecanização muito avançada do trabalho da terra. O “proprietário” ou fazendeiro capitalista, que possui as ferramentas avançadas, pode gastar pelo menos metade do ano na cidade. Ele parte para seu domínio no momento da lavoura, que ele executa com uma técnica melhorada e uma mão de obra sazonal. Após a colheita e a venda do produto, ele retorna para sua casa urbana.
No outro pólo, com uma mecanização e uma técnica tão avançada, mas com uma estrutura social muito diferente, encontramos o kolkhoz, o sovkhoz soviético, e também as futuras agrovilas (agrupando-se em uma aglomeração das aldeias kolkhoaianas).
Entre os dois extremos, encontramos intermediários. M. J. Chombart de Lauwe publicou recentemente um estudo interessante sobre os C.U.M.A (Cooperativas para o Uso Comum de Equipamentos Agrícolas na França). As cooperativas de produção, como as de Emilia (região de Bolonha, Itália) ou as das democracias populares, são também formas intermediárias e de transição entre os pólos acima mencionados.
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