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Como Ouvimos em Filosofia Clínica

Por:   •  18/8/2016  •  Projeto de pesquisa  •  7.165 Palavras (29 Páginas)  •  272 Visualizações

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COMO OUVIMOS EM FILOSOFIA CLÍNICA[1]

Prof. Will Goya

Mestre e filósofo clínico

http://willgoya.com  e  willgoya@gmail.com

Resumo: A nascente filosofia clínica faz uma junção original na história do pensamento entre a especulação filosófica e a prática psicoterápica. A simultaneidade dos dois lados dessa filosofia só é intrinsecamente possível graças a uma escuta ética do cuidado afetivo na relação de alteridade entre o filósofo e o seu partilhante da terapia.

Palavras-chave: filosofia clínica, ética do cuidado, alteridade, escuta filosófica.

Antes de tratar a questão proposta, sobre como ouvimos em filosofia clínica, deixo claro que as considerações que aqui faço nasceram e ainda se desenvolvem a partir da minha prática terapêutica de filósofo clínico, permanentemente confrontada com uma trajetória de aprendizado teórico que também é pessoal. Não tenho, de modo algum, a pretensão de resumir aqui a cultura enciclopédica da filosofia clínica, tampouco de descrever os modos práticos de se exercitar a escuta e a metodologia da terapia filosófica feita em consultório. Oportunidade realizada em outro trabalho (GOYA, 2010). Não sendo esse o propósito de agora, se o fizesse, ainda que didaticamente, eu haveria de fazê-lo tomando por base as minhas experiências e opiniões, com meus erros e acertos. Erros talvez necessários como os fundamentos da verdade de quem me tornei. Devo apenas garantir a certeza fundante do pensamento de Lúcio Packter que subjaz à minha fala e convicções, de que não há filosofia clínica sem clínica e, quem sabe, contribuir para novas reflexões e futuros diálogos. Nesse sentido, esforcei-me por assegurar respeito e fidelidade aos princípios do filósofo que sistematizou essa nova escola filosófica e terapêutica por meio da apresentação de alguns elementos conceituais importantes, tais como eu soube interpretá-los. Um certo romantismo poético, esperançoso e acolhedor das dores humanas é perceptível em minha abordagem e fiz questão de mantê-la presente na estrutura do meu discurso. Isto me pareceu também um critério de fidelidade. Não obstante, espero trazer alguma luz, talvez um quadro conceitual básico, alegorias ou um conjunto de ideias que fundamentem a arquitetura do discurso do querido professor Packter a respeito da sua filosofia, que ele próprio declara estar ininterruptamente em construção. Feita a ressalva, dou início a uma pergunta:

Como ouvimos ou vemos qualquer coisa? Uma resposta médica nos explicaria como as células transmitem impulsos pelo sistema nervoso até o nosso cérebro, que interpreta os estímulos exteriores. Porém, jamais devemos nos esquecer da advertência do grande poeta Fernando Pessoa: “Não basta abrir a janela para ver os campos e o rio. Não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores...[2]. É preciso um esforço incomum para resistir à sedução do óbvio conveniente e ao cansaço sofrido de todas as verdades engessadas que pesam sobre nós. Se o simples ouvir é função dos ouvidos e o simples olhar é uma fisiologia dos olhos, faz sentido a recomendação aparentemente tola e redundante dos antigos sábios, que nos alertavam sobre a necessidade vital de adquirirmos outros tipos de “ouvidos para ouvir” e de “olhos para ver”[3]. Os gregos inventaram a theoría, termo que significava a ação de pensar e entender um fenômeno a partir da observação. Nasceu a filosofia, o amor à verdade. Desde então, saber ver ou ouvir, enquanto arte, é metáfora do conhecimento. Após muitos séculos do pensamento filosófico, a Filosofia Clínica, de Lúcio Packter, também deixa o seu legado, e tem algo a dizer sobre a escuta[4]. Porque a filosofia é um profundo e desafiante amor à verdade, conhecer o outro através da escuta é, em sua essência, um ato profundamente filosófico de amor às verdades subjetivas de cada um.

Sem uso do termo “paciente”, abstendo-se o filósofo clínico do julgamento médico e psicológico nos princípios da psicopatologia, nem tampouco orientado pelo interesse econômico, chamando o outro de “cliente”, o terapeuta, por grande respeito e generosidade, dá a ele o nome de “partilhante”, por este haver aceito a partilha íntima de uma caminhada existencial de diálogos com o filósofo, um amigo para apoio e reflexões. Sem medidas comparativas de julgamento, o partilhante em nada é considerado nos parâmetros normal/anormal, saúde/doença ou por quaisquer modelos diagnósticos prévios de investigação estatística. Rigorosamente, filosoficamente, é alcançada a compreensão inteira do dito popular “cada pessoa é única”.

O falar e o ouvir dessa relação, ancoradas no leque de conhecimentos filosóficos do terapeuta, exigem do filósofo antes, e sobretudo, uma grande sensibilidade humana, forte mas versátil, disciplinada porém afetuosa, capaz de perceber miríades de diferentes e intraconjugadas formas de linguagens semióticas com que o partilhante se utiliza para se comunicar. Na intencionalidade do discurso entre dois, tudo que se manifesta diante do filósofo parece ser “fala”. Gestos, palavras, dores de cabeça, insônia, roupas, cheiro, coceiras, respiração e infinitamente outros. Tudo pode estar implicado e partícipe na vivência do discurso, na qualidade de pronunciamento de sentenças, exigindo do filósofo o deciframento dos jogos de linguagem utilizados pelo outro. Mesmo o silêncio pode ser interpretado a partir da sintaxe de articulações exercidas pelo partilhante em sua gramática subjetiva. Isto é, sua lógica individual própria, enquanto sujeito reconhecido na sua plena singularidade, na qual os lapsos de raciocínio ou de memória, as recusas, mentiras ou contradições, os delírios, tiques e os matizes de humor, como quaisquer outros elementos de uma conversação, podem expor relações de concordância intrínseca, de subordinação, de ordem ou desordem, de modo a revelar ao filósofo clínico, posto em prática o seu método, a estrutura de pensamento do partilhante. Conhecimento necessário para futuras devoluções e aconselhamentos. A trama conceitual da sua malha intelectiva, entrelaçada pelas circunstâncias históricas da sua vida e parcialmente descortinadas pela investigação filosófica, dá ao filósofo clínico um conhecimento empírico e epistêmico do sentido subjetivo de realidade com que o outro construiu a sua visão de mundo. Se o terapeuta for bem sucedido em seu trabalho intelectual, será comum ouvir do seu partilhante qualquer expressão semelhante a esta: “você me compreendeu bem, tal como eu gostaria de ser compreendido”. Compreender não significa concordar. Estabelecem-se o diálogo e as transformações. Quase sempre, a sensação ética de confiança naquele a quem se desnuda a própria intimidade é gratificante o suficiente para o partilhante continuar a terapia, demonstrada a certeza de que o filósofo clínico sabe ouvi-lo.

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