A Institucionalização do Silêncio: A escravatura nos manuais de história portugueses
Por: Cláudia Moreira • 6/6/2018 • Artigo • 4.171 Palavras (17 Páginas) • 126 Visualizações
4. Reflexão crítica
A institucionalização do Silêncio: a escravatura nos manuais de história portugueses
http://www.ces.uc.pt/myces/UserFiles/livros/1097_Ara%FAjo%20%26%20Maeso%202012%20Escravatura%20-%20Invis%EDvel.pdf
Este artigo pretende explorar como se constitui no contexto escolar a representação da escravatura nos manuais escolares de história. O silêncio acerca deste assunto é negativo por se tratar de um importante processo historiográfico na construção da Europa, mas, principalmente, na sua relevância política e na governamentalidade racista a que esteve associado. As reflexões apresentadas trata-se resultam de uma investigação com o objetivo de explorar a construção do eurocentrismo nos manuais escolares de história do 3ºCiclo do Ensino Básico incidido na ausência de aspetos importantes na História de África e a (in)visibilidade da questão racial na história nacional e europeia. Na atualidade, os sistemas educativos têm um papel fundamental na construção e reprodução das identidades nacionais. As metas curriculares estão centradas numa visão do mundo que tende em colocar a Europa como elemento fundamental na construção da sociedade moderna, resulta da discriminação e eliminação das diversas identidades, fazendo com que os estudantes construam certas versões da identidade nacional e europeia (cristã, branca, ocidental) construídas como ontologicamente distante da geografia colonial. Este projeto é desafiado por abordagens inter/multiculturais à educação, estas tentativas têm fracassado precisamente por terem como objetivo o ‘outro’ — esta lógica trata-se pela representação, por vezes, destorcida e dos ditos estereótipos criados em função do desconhecimento, podendo ser superados se os conheceremos mais aprofudadamente e melhor. Assim o racismo e o eurocentrismo são vistos como resultado da ignorância e de um excesso de nacionalismo e não relacionado com o poder e superioridade racial, mas esta é camuflada por narrativas sobre personagens herióicas sem analisar outras perspetivas. Esta abordagem é incapaz de suscitar a outro questionamento acerca dos processos políticos para a compreensão da formação da ideia da Europa /Portugal estabelecendo-os como processos apenas relevantes para compreender os acontecimentos internos nas colónias. Apesar de Portugal desde a década de 90 ter vindo a autorrepresentar-se como multicultural, incidindo na ideia de uma vocação histórica nacional para o contato com o outro, está a investir nas práticas oficiais para a diversidade esquecendo e silenciando certos períodos históricos. Ou seja, as práticas oficiais para a diversidade têm geralmente sido centrada em espaços marginais do sistema educativo, deixando intactas a estrutura tradicional da educação. Isto por ser necessário reformas educativas fundamentais no ensino da história.
No caso da disciplina de história o último decreto de revisão curricular data em 1989, apesar de em 1997 ter sido introduzido um despacho que previa a Gestão Flexível do Currículo, sabemos que na prática, a autonomia dos professores é restrita. As editoras de manuais escolares, principal recurso pedagógico, têm alguma autonomia para inovar abordagens e conteúdos em relação aos curricula; tais alterações têm sido mínimas sendo incapazes de desafiar as narrativas mais amplas da história que naturalizam a ausência de uma História de África para além do contato estabelecido pelos europeus, ou que invisibilizam a imposição violenta do poder colonial.
A escravatura, tratada com especial institucionalização do silêncio, tem dupla forma: de um lado o tráfico de escravos é referido como um fenómeno característico da época histórica em questão; por outro, banalizam a violência e o racismo associados à escravatura. A figura do escravo e a trivialização da escravatura é conseguida através de uma descrição como uma necessidade económica e como uma questão de direitos humanos. A escravatura é apresentada como parte da “circulação de novos produtos” entre a Europa e outros continentes. Surgindo como natural descritos como mais uma mercadoria colocada em circulação, desumanizando a figura do escravo levando à invisibilidade da violência deste sistema político-económico. Sendo também referenciado como um elemento fundamental das rotas comerciais e impulsionadoras das necessidades económicas nascidas com a colonização sendo mais uma vez referida como um aspeto natural, inevitável e inalterável no contexto histórico. Os vários exemplos encontrados nos manuais do 8ºano demonstram um silenciamento da dimensão política e racial da escravatura, pois esta é trivializada pelo facto de acontecer em certas regiões. É, por isso, importante referir que “a escravatura não foi uma invenção dos europeus/portugueses”, “os africanos também eram racistas”. Alguns manuais fazem uma abordagem humanista que destaca sobretudo questões relacionadas com as condições em que viviam os escravos e o seu sofrimento. A escravatura é assim enquadrada como uma prática que perdurou até ao século XIX como um dos exemplos mais cruéis da não garantia dos direitos humanos, sendo esta abordada numa perspetiva moral incidido nas condições degradantes em que os escravos viviam, enfatizando a desumanidade mas sem uma abordagem política que permita vincular ideologias raciais a processos económicos e culturais. A empatia surge assim como modo de suster esta visão humanista e moralizadora da história que evita o debate ‘raça’/poder e que consigna o fenómeno da escravatura à figura de um mal passado efetivamente superado. A narrativa dos manuais escolares não nega os contornos raciais do sistema de escravatura utilizando referências como ‘escravos negros’ ;’escravos africanos’ são expressos que apontam para a dimensão racial da escravatura, que nunca passa a ser discutida. Os manuais não consideram a relevância das ideologias e governamentalidades raciais da ‘expansão’ portuguesa ou espanhola. Predomina assim uma narrativa que considera os ‘ aspetos positivos do colonialismo’ e a sua interpretação em termos de multiculturismo e contacto cultural. Para falar de racismo utiliza-se uma abordagem moralizadora: o desafio à injustiça e a estruturas socioeconómicas e culturais violentas é projetado como sendo liderado por ‘pessoas boas’ camuflado a sua imersão no sistema colonial através da higienização do papel das missões e dos projetos de ‘evangelização’ na configuração de ideologias raciais. A institucionalização de uma certa ‘memória’ do combate à escravatura – que sanciona a heroicidade de figuras implicadas no sistema colonial – ativa a centralidade de uma história moral cristã (católica) e o apagamento das lutas e rebeliões dos escravos. Na construção historiográfica estabelece-se a Revolução Francesa como berço da antirracismo, tendo como pilares fundamentais a liberdade pessoal e a igualdade de todos os seres humanos e que é transmitido em todos os manuais escolares. Afirmar que nos manuais o direito à liberdade pessoal não desaparecerá nas colónias e acabará por triunfar, descarta todo um conjunto de legislações e códigos com os quais os Estados europeus continuaram a governar as colónias e o trabalho forçado de grande parte da população: a ideia de Europa e do cidadão europeu como motores da história e da política, ignorando que em grande medida a abolição da escravatura se deveu à ação política dos escravos e longos processos de rebelião e resistência. A revolução de Saint-Domingues (1791-1804), atual Haiti foi um acontecimento importantíssimo na história do colonialismo e das lutas políticas das populações negras que têm sido silenciadas na historiografia europeia. No caso português, os manuais não fazem qualquer tipo de referência aos quilombolas designadamente ao Quilombo de Palmares um dos principais focos da resistência escrava no século XVII na região.
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