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Delação E Devassa Nas Visitas Pastorais

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Por:   •  30/6/2014  •  3.470 Palavras (14 Páginas)  •  371 Visualizações

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Delação e Devassa nas Visitas Pastorais

José Augusto Alves

Abalo telúrico

A onda de choque provocada por Martinho Lutero quando afixou, em 1517, à porta da Igreja do Castelo de Wittenberg, as suas 95 Teses de protesto chegou a Roma sob a forma de abalo telúrico, colocando em risco os novos e já devassados alicerces basilicais erguidos por Leão X, em nome de S. Pedro.

A iniciativa de Lutero apanhou de surpresa a cúria romana e o papa dos Médicis, mais dado às artes do que às questões da Igreja. Roma estava assim impotente para responder ao movimento imparável da Reforma Protestante iniciado nessa altura, escapando por pouco a um cenário apocalíptico graças à reunião simultânea de vários factores conjunturais: a rápida divisão dos protestantes em várias facções (luteranos, calvinistas, anglicanos, etc.); a superior organização administrativa burocrática da Igreja e a sua influência milenar; a criação da Companhia de Jesus, ponta-de-lança da resistência e da contra-ofensiva católica; e, sobretudo, a emergência da Espanha e do seu império colonial americano, que se tornaria, a breve trecho, no amparo mais fiável e poderoso do catolicismo. Seja como for, a verdade é que a dissidência protestante dividiu praticamente a meio o espaço confessional no velho continente, terminando de vez com a hegemonia do sólio pontifício sobre o cristianismo situado a Oeste da ortodoxia.

Concílio de Trento

A nova realidade, contudo, vai obrigar a Igreja a responder. Tardará cerca de 30 anos, é certo, mas em 1545, Paulo III (avô de “três netos feitos cardeais entre os 14 e os 16 anos”), convoca o Concílio de Trento para pôr fim às práticas mais abusivas denunciadas pelos protestantes, mas já sem um objectivo de se recongraçar com Lutero e seus seguidores. Pelo contrário, “a reforma interna não é um meio de reconciliação e de reunião, mas um instrumento ao serviço da estratégia que preside ao combate contra a Reforma”.

Entre delongas e suspensões, o concílio tridentino durou 18 anos, terminando em 1563. No final, e uma vez que a cúria chamara a si o controlo dos trabalhos, a reforma interna da Igreja limitou-se à restauração de uma espécie de ascetismo medieval, agora submetido a uma apertada regulamentação que reforçava o poder absoluto do papa e da hierarquia da Igreja. É dentro desta lógica que se tem que entender a intensificação das visitas pastorais e das novas normas que passam a regulá-las, nomeadamente a obrigatoriedade de residência dos prelados na área das suas dioceses, a fiscalização dos benefícios, do estado dos templos e das suas alfaias e a apreciação da conduta moral e religiosa de clérigos párocos e leigos do terceiro estado.

Visitações

As visitas pastorais são um instrumento de exercício do poder político, económico, cultural e espiritual dos bispos sobre as suas dioceses, que remonta aos primeiros séculos da cristandade. Regulamentadas desde a Idade Média, afirmam-se durante a Renascença Carolíngia e vão manter um carácter ordinário até ao século XII, altura em que acompanham a decadência progressiva do clero.

Na sequência do concílio tridentino readquirirão com redobrada energia a regularidade entretanto perdida, embora em algumas dioceses de Portugal pareça ter-se mantido a periocidade anual já antes estabelecida, pelo menos na de Lisboa. Esta conclusão, apesar de ter que ser feita com bastantes reservas, uma vez que se sustenta numa lista de visitações realizadas em apenas quatro paróquias daquela diocese, nos séculos XIV e XV, poderá indiciar, contudo, uma prática semelhante nas restantes freguesias ou até noutras dioceses. De todo o modo, percebe-se que a acção dos visitadores desta época não difere substancialmente da dos seus sucessores dos séculos seguintes na medida em que se continua a privilegiar a penalização dos crimes de natureza sexual, sugerindo “que os homens não se modificam facilmente e que os defeitos se repetem por largos períodos”.

O que muda, depois do Concílio de Trento, é basicamente o aprofundamento das preocupações com a conduta moral do baixo clero e dos leigos do terceiro estado e um maior rigor na sua apreciação através da instituição da devassa e da denúncia como instrumentos colocados ao serviço da repressão exercida pelos tribunais episcopais. A eficácia desta política persecutória exige, contudo, uma normalização jurídica que, de acordo com as determinações de Trento, se consubstanciará na instituição de Constituições Diocesanas e na subsequente aprovação de regimentos que regulavam as visitas pastorais.

No território nacional, e no que aos aspectos regimentais das visitações dizia respeito, as Constituições diocesanas não seguiram um padrão comum. Em Viseu não se escreve uma linha sequer sobre as visitas, mas em Coimbra a preocupação de elaborar “um título exclusivamente dedicado ao assunto” demonstra o empenho da diocese em aplicar com o maior rigor o preceituado tridentino.

Para além das Constituições, algumas dioceses produziram ainda regimentos mais ou menos elaborados que regulavam o funcionamento dos seus tribunais e dos funcionários da administração episcopal, onde se incluíam, por vezes, as funções dos visitadores, sempre por delegação de competências dos prelados.

O dispositivo normativo das visitações não se esgotou, porém, na iniciativa dos bispos ou das dioceses. Ao longo do século XVII outros terão sido difundidos, mas só chegaram até nós dois dos que foram impressos, entre os quais o de Mateus Soares de que aqui nos propomos analisardamos conta.

Mateus Soares

Natural de Braga, “Matheus Soares, formado em Cânones, advogado na cidade de Lamego e em Lisboa, e Promotor da Capella Real”, de quem pouco mais se sabe do que o que agora está dito, deu ao prelo, em 1602, a “Prática e ordem para os visitadores dos bispados, na qual se decidem muitas questões, assim em causas civis, como criminais, pertencentes aos Advogados, no foro eclesiástico e secular. Com entendimento de algumas Extravagantes dos Sumos Pontífices e concordatas deste Reino de Portugal”. O texto tem uma dedicatória datada de 1569 a antecipar os 18 capítulos que lhe sucedem, mas Mateus Soares, a propósito dos “casos e crimes que os visitadores por si” podiam “castigar e emendar”, aconselha-os a consultar as “doutas constituições do Bispado de Coimbra”, promulgadas trinta e dois anos depois, em 1591. Esta discrepância de datas pode gerar interpretações

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