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João Alexandre Barbosa1 Literatura Nunca é Apenas Literatura

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Por:   •  18/4/2014  •  Abstract  •  3.151 Palavras (13 Páginas)  •  421 Visualizações

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João Alexandre Barbosa1

Literatura Nunca é Apenas Literatura2

Vou começar contando uma história que é ilustrativa daquilo que quero dizer. Há muito tempo,

uma aluna, numa aula de Teoria Literária, disse-me que estava muito interessada em ler um

livro que fosse importante, mas que obedecesse a algumas condições: antes de mais nada,

tinha de ser "fininho". E exatamente na ocasião em que ela falava isso, a editora Civilização

Brasileira acabava de publicar uma coleção, que infelizmente já desapareceu, chamada

Biblioteca Universal Popular, composta de livrinhos pequenos, fininhos. A Civilização Brasileira

acabara de publicar uma tradução de A Metamorfose e eu disse: "Pronto, está aqui o livro que

você me pediu; é A Metamorfose, de Franz KAFKA, um livro fundamental na história da

literatura, e é fininho.".

Depois de uns quinze dias, ela retornou e disse-me o seguinte: "Professor, comprei o livro que o

senhor indicou, li e detestei. Detestei porque, logo no início dele, se lê que o personagem se

transforma num inseto e isso, professor, não é verdade, isso não pode acontecer.".

"É verdade" – disse-lhe. "Eu acho que isso, do ponto de vista ontológico, não pode acontecer; a

natureza do homem é diferente da do inseto. E, do ponto de vista da evolução biológica, isso não

pode acontecer, pelo menos até o momento. Mas isso pode acontecer do ponto de vista da criação

literária. E aí expliquei a ela o seguinte: "Você perdeu uma grande oportunidade de atravessar essa

dificuldade inicial e ir um pouco mais adiante, vendo como esse escritor, Franz KAFKA, tira partido

dessa transformação inicial, como a coisa se torna complexa. Isso ou se transforma ou vai-se diversificando

em várias metáforas, várias imagens e acaba agarrando a experiência do leitor de uma

1 Professor titular de Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade de São Paulo-USP.

2 Depoimento apresentado no Seminário Linguagem e Linguagens: a fala, a escrita, a imagem.

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ou de outra maneira. Quer dizer, você perdeu uma grande chance de estar atenta a essa

complexidade.". Depois disso, não sei o que ela fez, se retornou ou não ao livro do KAFKA.

Mas essa história inicial serve para dizer que, na leitura – e essa é a primeira reflexão que

quero fazer – de qualquer obra literária, de qualquer texto que tenha por base a intensificação

de valores – daquilo que chamamos de uma ou outra maneira aproximada de valores literários

– existe sempre, como dizia o grande crítico canadense recentemente falecido, Northrop FRYE,

a necessidade de conhecimento de duas linguagens. Segundo ele, "Na leitura de qualquer

poema é preciso conhecer duas linguagens: a língua em que o poeta está escrevendo e a

linguagem da própria poesia.".

Acho extraordinária essa frase de Northrop FRYE porque isso sugere que, ao ler qualquer

poema, eu tenho de ler nele um pouco da história da linguagem na qual ele se inscreve. Mas

não posso chegar a isso sem passar pelo conhecimento da linguagem ou da língua em que o

poema está escrito, que vai levantar determinados problemas, sobretudo os de ordem

semântica, que qualquer bom dicionário ajuda a resolver. Entretanto, mesmo depois de passar

por esses problemas, vou-me defrontar com outros muito graves, que são aqueles referentes à

própria história daquela linguagem.

É difícil "ler", apreciar um quadro de MONDRIAN, por exemplo, se não se conhece um pouco de

que modo este pintor se insere na tradição da pintura holandesa. Isto porque os primeiros

quadros de MONDRIAN são absolutamente figurativos e dialogam com a tradição da pintura

holandesa. Ele não chegou ao abstrato sem antes passar por um percurso enorme, que foi o

aprendizado da linguagem de um determinado tipo de arte – uma arte bastante localizada, a

arte visual holandesa.

Esse é um problema que queria levantar inicialmente, porque ele afasta um pouco a idéia de

que tudo é muito fácil na apreciação da literatura ou das outras artes. É o laissez-faire que

muitos arte-educadores defenderam durante tanto tempo. Não, é preciso também conhecer

isso; é preciso ter um estoque mínimo, um repertório mínimo, para que seja possível identificar

a importância de uma obra ou de um texto literário. Mesmo porque, sabemos que toda arte é

condenada à história.

Já que mencionei Northrop FRYE, vou, patrioticamente, citar um autor da nossa língua,

Fernando PESSOA, que, em 1916, escrevendo sobre a modernidade da literatura, dizia mais ou

menos assim: "No mais pequeno poema de um poeta deve haver sempre alguma coisa por onde

se note que existiu Homero.". O que significa isso? Significa a condenação do poeta a uma

determinada tradição de linguagem de trabalho. Isso não quer dizer que ele, a todo momento,

...

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