O capeta o demônio e o diabo no dicionário
Por: mariavieira.mv • 10/9/2015 • Ensaio • 1.966 Palavras (8 Páginas) • 244 Visualizações
O “capeta”, o “demônio” e o “diabo” no dicionário1
Maria S. Vieira dos Santos2
No Brasil, para o senso comum, as palavras “capeta”, “demônio” e “diabo” estão diretamente ligadas à religião, porém, estas são utilizadas em diferentes contextos e com significações variadas. Estas palavras trazem uma gama de significações simbólicas no contexto religioso, porém, há entre elas uma que mais se destaca dentro dessas significações. Nesse sentido, é interessante compreender a significação das palavras, acima citadas, na sociedade brasileira produzida em dicionários gerais de língua.
Para isto, procuramos desenvolver este trabalho a partir de estudos da Lexicografia Discursiva e sustentado teórica e metodologicamente na Análise de Discurso, o que significa que seu objeto de estudo, o dicionário, foi tomado como um objeto discursivo, pois o mesmo se constrói como material de desenvolvimento da memória lexical: uma memória ligada ao sujeito, à história e à linguagem, pois como afirma ORLANDI:
A Lexicografia Discursiva vê, nos dicionários, discursos. Desse modo, na escuta própria à análise de discurso, podemos ler os dicionários como textos produzidos em certas condições tendo seu processo de produção vinculado a uma determinada rede de memória diante da língua. (ORLANDI, 2002, P. 103)
Situamos, pois, o dicionário em seu contexto histórico e ideológico de produção, observando por meio da análise das palavras “capeta”, “demônio” e “diabo” nele contido, como ele processa efeitos de sentido em uma sociedade dada, assim como os processos de individualização do sujeito. Objetivamos com este trabalho compreender como se produzem os processos de significação no dicionário, analisando sua estrutura e funcionamento. Tomamos como corpus os dicionários monolíngues: Aurélio (2009) e Houaiss (2008). O fato de termos nos preocupado em utilizar tais dicionários monolíngues, mais comuns, de uso diário de estudantes e professores, se deve a uma tentativa de desconstruirmos certas evidências quanto às significações de senso comum presentes na sociedade brasileira.
O dicionário é tido, para o senso comum, como algo em que se encontra tudo, algo completo, o senhor das verdades absolutas nas significações das palavras. É certo que há uma concepção de que no dicionário teríamos uma representação mais “correta” da língua, em termos de significação, e que nele sempre encontraríamos uma transparência e precisão nas informações sobre as dúvidas surgidas sobre ela. Todavia, essa projeção imaginária, concreta e fechada da língua que se faz através do dicionário, faz com que ele contribua para a produção e reprodução de certos sentidos que terão seus efeitos sociais e políticos na construção da memória social e nas práticas de uma sociedade.
Por parte da Lexicologia, como disciplina que “identifica e descreve as unidades lexicais”, bem como “estabelece critérios de identificação, os quais podem ser fonológicos, morfológicos, sintáticos ou semânticos, na fronteira com uma ou outra dessas áreas do saber” (2006, p.150), observa-se que o horizonte discursivo a que ela remete não se distancia do quadro histórico e social da língua. Não são apenas os componentes estruturais da língua que substanciam o discurso do dicionário, porquanto há nele toda uma conjuntura analítica que faz do sujeito e da história parte desses componentes.
Nunes (2006), , em “Lexicologia e Lexicografia” afirma que “o conjunto de relações que os elementos lexicais entretêm na língua é extremamente diversificado. Além disso, visto que a língua tem história, ela está em constante transformação” (p.153), apesar de apresentar também fixidez. Tal assertiva serve para ratificar o propósito de que a língua na “ordem do discurso” funciona por meio de um caráter social e histórico que apresenta diferenças e ao mesmo tempo similitudes.
A Análise de Discurso, ao lidar com a lexicografia de modo próprio, desloca alguns conceitos e procedimentos metodológicos para remeter o léxico e o próprio dicionário ao sujeito e à história (NUNES, 2006, P. 150). Orlandi diz que “a palavra discurso, etimologicamente, tem em si a ideia de curso, de percurso, de correr por, de movimento” (2009, p.15), e é justamente por isso que se faz necessário o deslocamento das teorias em relação ao sujeito e à história, uma vez que são estes os dois agentes produtores do discurso, fazendo-o ter a possibilidade de permanente transição. Conceitualmente, discurso é efeito de sentidos entre locutores, o que significa que o sentido se produz na relação entre o lexicógrafo e o leitor, em se tratando do dicionário, da mesma forma que sujeito não é tomado como o indivíduo empírico, mas como posição enunciativa.
É a partir disso que a análise das palavras “capeta”, “demônio” e “diabo” deve ser feita por meio de uma compreensão da língua na produção dos sentidos “enquanto trabalho social geral, constitutivo do homem e da sua história” (ORLANDI, 2009). Trataremos, pois, aqui da língua num sentido de análise do funcionamento lexical do dicionário, que leva em consideração o conjunto de relações dos mecanismos lexicais do seu próprio discurso, sejam eles principalmente relacionados à sinonímia, à antonímia, à significação primária e secundária, ao campo lexical e à definição (NUNES, 2006, P.153).
Apresentamos, a seguir, os verbetes selecionados em nosso corpus.
AURÉLIO (2009) | HOUAISS (2008) |
capeta (ê) sm. Bras. 1. V. diabo (2). 2. Fam. Criança levada, travessa. | capeta \ê\ sm. infrm. 1 o diabo adj. 2g. s. 2g infrm. 2 que(m) é travesso. |
demônio sm. 1. Nas crenças da Antiguidade, gênio ou espírito do bem e do mal. 2. Nas religiões judaica e cristã, gênio ou representação do mal; Lúcifer, Diabo, Satanás. 3. V. diabo (2). 4. fig. Pessoa má, perversa; diabo. | demônio sm. 1 espírito do mal inicial por vezes maiúsc. 2 fig indivíduo cruel 3 fig. Indivíduo irrequieto 〈esse menino é um d.〉 ⊃ anjo ∼ demoníaco adj |
diabo sm. 1. V. demônio (2 e 4). 2. O chefe dos demônios; capeta, demo, Demônio, Satanás, Satã, Lúcifer, sujo (bras., pop); diacho, tentação, tinhoso. Interj. 4. Exprime contrariedade, perplexidade, impaciência, raiva, etc.; diacho. | diabo sm. 1 espírito do mal; demônio 2 pej. Indivíduo mau, de mau gênio 3 fig. Indivíduo esperto, perspicaz 〈o menino é o d., não perde nada〉 4 us. com intensificador, com as ideias de: 4.1 confusão, desordem 〈a reunião foi o d., ninguém se entendeu〉 4.2 quantidade excessiva 〈 tem feito o d. para sobreviver〉 4.3 esperteza, energia 〈o d. do menino sabe tudo〉 4.4 descontentamento 〈o d. do negócio não deu certo〉 5 us. Como realce após pronomes interrogativos 〈 onde d. você se meteu?〉 interj. 6 indica contrariedade, espanto, impaciência 〈vem logo d.!〉 comer o pão que o d. amassou fraseol. passar dificuldades, privações |
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