Publicado originalmente em folhetins
Por: Pablo Manoel • 26/9/2021 • Resenha • 53.236 Palavras (213 Páginas) • 80 Visualizações
Iaiá Garcia
Texto-fonte:
Obra Completa, de Machado de Assis, vol. I,
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
Publicado originalmente em folhetins, a partir de 01/01/1878, em O Cruzeiro.
CAPÍTULO PRIMEIRO
Luís Garcia transpunha a soleira da porta, para sair, quando apareceu um criado e
lhe entregou esta carta:
“5 de outubro de 1866.
Sr. Luís Garcia — Peço-lhe o favor de vir falar-me hoje, de uma a duas horas da
tarde. Preciso de seus conselhos, e talvez de seus obséquios. — VALÉRIA.”
— Diga que irei. A senhora está cá no morro?
— Não, senhor, está na Rua dos Inválidos.
Luís Garcia era funcionário público. Desde 1860 elegera no lugar menos povoado
de Santa Teresa uma habitação modesta, onde se meteu a si e a sua viuvez. Não
era frade, mas queria como eles a solidão e o sossego. A solidão não era absoluta,
nem o sossego ininterrompido; mas eram sempre maiores e mais certos que cá
embaixo. Os frades que, na puerícia da cidade, se tinham alojado nas outras
colinas, desciam muita vez, — ou quando o exigia o sacro Ministério, ou quando o
governo precisava da espada canônica, — e as ocasiões não eram raras; mas
geralmente em derredor de suas casas não ia soar a voz da labutação civil. Luís
Garcia podia dizer a mesma coisa; e, porque nenhuma vocação apostólica o
incitava a abrir a outros a porta de seu refúgio, podia dizer-se que fundara um
convento em que ele era quase toda a comunidade, desde prior até noviço.
No momento em que começa esta narrativa, tinha Luís Garcia quarenta e um
anos. Era alto e magro, um começo de calva, barba rapada, ar circunspecto. Suas
maneiras eram frias, modestas e corteses; a fisionomia um pouco triste. Um
observador atento podia adivinhar por trás daquela impassibilidade aparente ou
contraída as ruínas de um coração desenganado. Assim era; a experiência, que foi
precoce, produzira em Luís Garcia um estado de apatia e cepticismo, com seus
laivos de desdém. O desdém não se revelava por nenhuma expressão exterior; era
a ruga sardônica do coração. Por fora, havia só a máscara imóvel, o gesto lento e
as atitudes tranqüilas. Alguns poderiam temê-lo, outros detestá-lo, sem que
merecesse execração nem temor. Era inofensivo por temperamento e por cálculo.
Como um célebre eclesiástico, tinha para si que uma onça de paz vale mais que
uma libra de vitória. Poucos lhe queriam deveras, e esses empregavam mal a
afeição, que ele não retribuía com afeição igual, salvo duas exceções. Nem por
isso era menos amigo de obsequiar. Luís Garcia amava a espécie e aborrecia o
indivíduo. Quem recorria a seu préstimo, era raro que não obtivesse favor.
Obsequiava sem zelo, mas com eficácia, e tinha a particularidade de esquecer o
benefício, antes que o beneficiado o esquecesse.
A vida de Luís Garcia era como a pessoa dele, — taciturna e retraída. Não fazia
nem recebia visitas. A casa era de poucos amigos; havia lá dentro a melancolia da
solidão. Um só lugar podia chamar-se alegre; eram as poucas braças de quintal
que Luís Garcia percorria e regava todas as manhãs. Erguia-se com o sol, tomava
do regador, dava de beber às flores e à hortaliça; depois, recolhia-se e ia trabalhar
antes do almoço, que era às oito horas. Almoçado, descia a passo lento até à
repartição, onde, se tinha algum tempo, folheava rapidamente as gazetas do dia.
Trabalhava silenciosamente, com a fria serenidade do método. Fechado o
expediente, voltava logo para casa, detendo-se raras vezes em caminho. Ao
chegar a casa, já o preto Raimundo lhe havia preparado a mesa, — uma mesa de
quatro a cinco palmos, — sobre a qual punha o jantar, parco em número,
medíocre na espécie, mas farto e saboroso para um estômago sem aspirações
nem saudades. Ia dali ver as plantas e reler algum tomo truncado, até que a noite
caía. Então, sentava-se a trabalhar até às nove horas, que era a hora do chá.
Não somente o teor da vida tinha essa uniformidade, mas também a casa
participava dela. Cada móvel, cada objeto, — ainda os ínfimos, — parecia haver-se
petrificado. A cortina, que usualmente era corrida a certa hora, como que se
enfadava se lhe não deixavam passar o ar e a luz, à hora costumada; abriam-se
as mesmas janelas
...