Montessori
Por: felipeguiara • 30/5/2016 • Resenha • 9.857 Palavras (40 Páginas) • 262 Visualizações
UM ENCONTRO E VÁRIAS PROBLEMATIZAÇÕES: ESCRITA DOS DESASSOSSEGOS ACERCA DA QUESTÃO DA “DEFICIÊNCIA”.
Adrielly Selvatici Santos - Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
Resumo: O presente trabalho é fruto de uma experiência de estágio vivida na Unidade de Educação Infantil da Universidade Federal Fluminense (UFF), e irá contar um pouco desse percurso, bem como discutir as questões que emergiram, em três partes. Na primeira será realizada uma visita à história, a fim de desvelar os discursos/práticas produtores de uma subjetividade pautada na normalização da vida. Depois, um mergulho nos conceitos de vida, normal, doença e saúde, trazidos por Canguilhem na obra O Normal e o Patológico, para se pensar a conceituação de “pessoa deficiente”, proposta pela Convenção Sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. O terceiro momento, por sua vez, vem com reflexões acerca de uma aposta ética da presença.
Palavras-chaves: deficiência, ética, normatização, normalização
Introdução
Discursos/práticas acerca da Deficiência foram se constituindo de diferentes formas no decorrer da história. O modo como determinada sociedade lida com suas questões é produzido pelas relações e valores criados a partir de seus processos econômicos, políticos, sociais e culturais. Desse emaranhado configuram-se formas provisórias de semiotização das problemáticas, denominadas por Guattari (2010) de processos de subjetivação: “(...) sistemas de conexão direta entre as grandes máquinas de controle social e as instâncias psíquicas que definem a maneira de perceber o mundo.” (GUATTARI 2010, p.35) É importante ressaltar o caráter provisório destas, pois quando se fala em processos de subjetivação, lida-se com movimentações, construções e desconstruções de territórios existenciais, que ocorrem no tempo e no espaço.
A história da deficiência vai se configurando já no início da idade moderna, pela identificação dos “monstros”. Neste período, século XVI, a monstruosidade estava ligada à questão da raridade, a tudo aquilo que fosse desconhecido, e sua causa tinha a ver com a glória ou ira de Deus. Pouco mais tarde, no século XVIII, vai se formulando um trato vinculado ao desvio das leis da natureza. Essas irregularidades aconteciam a partir de coitos antinaturais, ou até mesmo por uma força imaginativa das mães durante a gestação. Ainda neste momento, os desvios e as raridades não se associavam a uma ideia de ameaça a tara hereditária da sociedade, como foi, mais tarde, no século XIX, em que foram criados instrumentos e estabelecimentos de reclusão com práticas ortopédicas, no intuito de banir as “perturbações” ao que estava regulamentado (LOBO, 2008).
Nos séculos XX e XXI, no entanto, pode-se perceber discursos/práticas pró-inclusão dos indivíduos tomados como deficientes. Os movimentos sociais foram ganhando força e suas reivindicações por efetiva participação social, política e cultural dos “antigos excluídos” por suas características diferentes, passaram a ser temas de debates em órgãos importantes no mundo, como a Organização das Nações Unidas (ONU). Desses, tratados foram assinados, leis e programas de governo foram criados, com o intuito de que os direitos humanos dessa população fossem garantidos.
Em 2007 é promulgada no Brasil a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, uma dessas conquistas. Esta é lançada com o propósito de “promover, proteger e assegurar o desfrute pleno e eqüitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por parte de todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua inerente dignidade” (BRASIL 2007, art. 1º) e apresenta uma definição das pessoas com deficiência. Segundo ela “pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de natureza física, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade com as demais pessoas” (ibid).
A conceituação trazida pela Convenção nos dá pistas do modo de subjetivação em torno da questão da deficiência, quando apresenta em sua redação três palavras que podem ser usadas como sinônimas: “impedimentos”, “barreiras”, “obstruir”. Esses termos possuem um sentido negativo, com um direcionamento para aquilo que não se pode, evidenciando uma parte faltosa. O que se cria como entendimento, por sua vez, faz-se a partir do que Foucault (1979) denomina relações de poder. Essas são múltiplas, atravessam, caracterizam e constituem o tecido social, funcionando pelas operações discursivas, que, segundo o autor, também se referem a uma prática. Assim sendo, o processo de criação de sentido é sempre positivo, mesmo esse tendo caráter negativo. Ou seja, uma ideia de falta não tem a ver com o fato de existir mesmo uma realidade faltosa, mas com certa produção subjetiva de “falta” como uma realidade possível.
A palavra “deficiência” é efeito de discursos/práticas produtores de certo sentido deficitário, bem como uma ferramenta que ratifica essa construção, como nos traz Santos (2012) em seu artigo que discute “os sentidos dicionarizados de deficiência”. Segundo a autora “podemos dizer que o funcionamento da palavra deficiência é marcado pelo memorável da enunciação, da etimologia quando mobiliza as acepções insuficiência, falta, fraqueza, limitação, incapacidade” (SANTOS, 2012). Assim, surge uma questão quanto aos efeitos político-subjetivos e aos discursos/práticas criados sobre o dito “portador de deficiência”, já que essas maneiras de qualificação também falam de modos de atuação no trato das questões ligadas à deficiência, estando presente nos programas de governo, nas leis, nas intervenções, bem como nas relações mais informais. Pois acredito, servida de Foucault (1979), que discurso e prática são indissociáveis. Ou seja, que os discursos são produtores de realidades.
Tais questionamentos advêm de uma experiência de estágio, na Unidade de Educação Infantil da UFF, com uma criança “portadora de múltiplas deficiências”. A experiência, de um ano e meio é perpassada por momentos chaves que guiarão a construção dessa escrita. Um primeiro diz respeito a minha adesão a uma demanda hegemônica, que ilustro pela seguinte situação: “entregar uma pasta cheia de tarefinhas para a mãe”. Outro apresenta um acontecimento produtor de desvios no processo de adesão ao qual estava inserida: “a mordida marcou para mim um limite e, nesse momento, vi sua potência”. Por fim, a possibilidade de pensar meus modos de fazer, produzindo uma postura diferente daquela com a qual iniciei o percurso: “proponho uma postura ética na possibilidade, que vai ‘pintar’ uma paisagem com o pincel e tinta que tem”.
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