A PSICOLOGIA E O SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE
Ensaios: A PSICOLOGIA E O SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE. Pesquise 862.000+ trabalhos acadêmicosPor: LethiciaAmorim • 6/10/2014 • 3.187 Palavras (13 Páginas) • 293 Visualizações
Psicologia & Sociedade; 17 (2): 21-25; mai/ago.2005
A PSICOLOGIA E O SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE:
QUAIS INTERFACES?
Regina Benevides
Universidade Federal Fluminense
RESUMO: Discute-se a relação da Psicologia com o Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil tomando-se como ponto de partida uma crítica à separação entre clínica e política fortemente presente na formação e na prática profissional dos Psicólogos. Indicam-se três princípios para a construção de políticas públicas em saúde: o da inseparabilidade, o da autonomia e co-responsabilidade e o da transversalidade, estando a contribuição da Psicologia no entrecruzamento do exercício destes três princípios. O artigo destaca, ainda, a importância dos modos de fazer acontecer as políticas públicas, indicando a urgência na criação de dispositivos que dêem suporte à experimentação das políticas no jogo de conflitos de interesses, desejos e necessidades dos diferentes fatores que compõem a rede de saúde.
Palavras-chave: Políticas públicas; psicologia; Sistema Único de Saúde.
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O título do artigo já indica um ponto de partida lamentavelmente pouco encontrado no campo da Psicologia: a preocupação com a saúde pública, com a inserção do trabalho do Psicólogo no debate sobre modos de intervenção que se façam para além dos enquadres clássicos de uma clínica individual e pri- vada, ou mesmo de uma psicologia social que mantém a separação entre os registros do individual e do social, tal como a ainda predominante em nossos cur- sos de formação. Digo isso para que fique logo claro que não acredito numa crítica à Psicologia e às suas diversas áreas pela identificação de uma face conservadora, porque cuidando do indivíduo, e uma face emancipadora, porque voltada para o social, para a comunidade, para os processos educacionais ou de
trabalho. Como pretendo aqui sustentar, trata-se de não se iludir com esta solução de compromisso da Psicologia.
Especialmente quando queremos pensar as interfaces da Psicologia com o Sistema Único de Saúde (SUS) urge que problematizemos o que podemos, o que queremos e, principalmente, como fazemos para contribuir na construção de um outro mundo possível², de uma outra saúde possível e, digo logo, de uma saúde pública possível.
Convocada ao debate e em sintonia com omovimento de resistência que institui o Fórum Social Mundial desde sua primeira versão em 2001, fiquei me perguntando por onde nele entrar. Poderia retomar a história da Psicologia indicando suas alianças
com as ciências positivistas ou com as filosofias subjetivistas. Poderia apontar para a tradição humanista que amarra a Psicologia ao campo das Ciências Humanas, tornando-se separada das ciências da saúde. Poderia, ainda, rastrear as inúmeras cisões entre correntes da Psicologia ou entre estas e a Psicanálise, cada uma delas marcando e se apropriando do sujeito como seu objeto de investigação.
Não é preciso ir muito longe para percebermos que o discurso sobre o sujeito tem vindo acompanhado, no campo das práticas psi, de um processo de despolitização destas mesmas práticas. No mesmo movimento em que o sujeito é tomado como centro(ou mesmo eventualmente descentrado) opera-se uma dicotomização com o social que se acredita circundálo.
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Duas realidades (interna/externa) em constante articulação, mas sempre duas realidades dadas a serem olhadas com seus específicos instrumentos de análise. Esta operação não se faz sem consequências e uma delas tem sido, justamente, a de manter em dois registros separados: o sujeito/indivíduo (Benevides, R, 2002) e o social, o desejo e a política (Guattari & Rolnik, 1986).
Assim é que não causa espanto, entre muitos, a afirmação de que Psicologia e Política não se misturam, ou, de que, quando somos psicólogos não somos militantes e se somos militantes não devemos sê-lo enquanto psicólogos.
O paradigma que está norteando tais afirmações é o de que ciência e política são duas esferas separadas e de que as práticas psi ao se encarregarem do sujeito não devem tratar de questões políticas.
Tal ascese, pretendida por muitos e, afirmada por tantos outros como alcançada, tem sistematicamente colocado o desejo como algo da ordem do individual, ou como questão do sujeito e a política como da ordem do social, ou como questão do coletivo. O efeito-despolitização neste tipo de análise é notório, posto que as práticas psi passam a se ocupar de sujeitos abstratos, abstraídos/alienados de seus contextos e tomam suas expressões existenciais como produtos/dados a serem reconhecidos em universais apriorísticos. Digo despolitização para marcar o lugar exterior, separado, em que a política, em suas mais variadas formas, é lançada quando se trata da análise das questões subjetivas. Entretanto, o mais correto seria dizer que aí também há a produção de uma certa política: aquela que coloca de um lado a macropolítica e, de outro, a micropolítica; de um lado, o Sistema Único de Saúde como dever do Estado e direito dos cidadãos, como conquista garantida pela lei, pela Constituição e, de outro, os processos de produção de subjetividade. Aqui, me parece, há uma pista importante para seguirmos, pois é a partir da fundação da Psicologia nestas dicotomias que o individual se separou do social, que a clínica se separou da política, que o cuidado com a saúde das pessoas se separou do cuidado com a saúde das populações, que a clínica se separou da saúde coletiva, que a Psicologia se colocou à margem de um debate sobre o SUS.
A pergunta, então, insiste: quais as interfaces da Psicologia como campo de saber e, mais precisamente, dos psicólogos enquanto trabalhadores, com o Sistema Único de Saúde? Mais do que fazer uma discussão de conteúdos curriculares, ou mesmo indicar disciplinas a serem incluídas e/ou excluídas dos cursos de formação devemos nos perguntar sobre quais práticas tais psicólogos têm efetuado, quais compromissos ético-políticos têm tomado como prioritários em suas ações. É claro que isto não se separa dos referenciais teórico-conceituais que dão suporte a estas práticas e, é claro também, que se trata de uma tomada de posição, de atitude, quanto ao que se define como objeto e campo de intervenção da Psicologia. Trata-se, então, de uma discussão ética, melhor dizendo, ético-política. Se não aceitamos as posições abstratas, transcendentes, descoladas de onde a vida se passa,
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