A Problemática Da Ciência
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A PROBLEMÁTICA DA CIÊNCIA
Considerações para uma psicoterapia científica
Pedro Bertolino∗
Claudia Félix∗∗
Resumo
O presente trabalho traz uma exposição resumida e sistematizada dos conteúdos ministrados pelo Professor Pedro Bertolino, no segundo semestre de 2005, da disciplina “A problemática da Ciência” do Curso de Formação em Psicologia Existencialista. Para tanto, foram utilizadas principalmente as anotações de aula, o texto "Construindo a ciência”, de Luiz Ferraz Netto, trabalhado pelo Professor nas aulas, bem como Modelos Científicos do mesmo: a quem se deve igualmente a orientação bibliográfica e o seu aproveitamento. A exposição foi subdividida a saber: o primeiro capítulo demarcará introdutoriamente o tema principal, que é a ‘Ciência’; o segundo abordará a problemática da Cultura Ocidental e as diversas racionalidades que a constituem; o terceiro exporá a constituição histórica e antropológica da Ciência; o quarto, detalhará como a Ciência é produzida, destacando as condições para o trabalho científico; o quinto elucidará dois equívocos que envolvem a ciência: o “engano dos sentidos” e a confusão entre “Ciência e Estatística”; por fim, o sexto fará as últimas considerações acerca do conteúdo trabalhado.
Palavras-chave: Ciência. Observação Científica. Cultura Ocidental. Psicologia e Psicoterapia Existencialista.
The Problematic of the Science - Considerations for a Scientific Psychotherapy
Abstract
The following work is a systematic resume of the issues presented by Professor Pedro Bertolino concerning the dicipline “The Problematic of the Science”, a module of the Course in Existentialist Psychology wish took place in the II semestre of 2005. In order to carry out
∗ Filósofo; Escritor; Pós-graduado em Antropologia Filosófica; Professor Aposentado pela Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: pedrobertolino@brturbo.com.br
∗∗ Psicóloga, CRP 12/ 01378. E-mail: cfelixt@yahoo.com.br
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this work classroom notes were used as was the text “Building a Science” by Luiz Ferraz Neto, explored and utilized by Professor Bertolino during class time, in addiction to Professor Bertolino’s Scientific Models and his orientation bibliographic. The work was subdivided: the first chapter will be an introduction to the principal theme, what is a ‘Science’; the second will elaborate the problematic of the Western Culture and the rationalities that constitute it; the third will explore the historic and anthropologic constitution of Science; the fourth will detail how the Science is produced, highlighting the conditions necessary for a scientific work; the fifth will shed light on two misconceptions: ‘the error of the senses’ and the confusion between ‘Science and Statistics’ and, finally, the sixth will be the ultimate consideration of the work carried out.
Keywords: Science. Scientific Observation. Western Culture. Existentialist Psychology and Existentialist Psychotherapy.
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1 NOÇÕES BÁSICAS SOBRE CIÊNCIA
A ciência é uma forma de produção de conhecimento estabelecida a partir de pesquisas e verificações experimentais empreendidas pelos homens, com propósito de transformar a realidade objetiva e possibilitar a superação dos problemas enfrentados pela humanidade.
Marco Polo descreve uma ponte, pedra por pedra.
- Mas qual é a pedra que sustenta a ponte? - pergunta Kublai Khan.
- A ponte não é sustentada por esta ou aquela pedra, responde Marco, mas pela curva do arco que estas formam.
Kublai Khan permanece em silêncio, refletindo. Depois acrescenta:
- Por que falar das pedras? Só o arco me interessa.
Polo responde:
- Sem pedras o arco não existe.1
A ciência esclarece fenômenos – conjuntos complexos de variáveis articulados entre si, isto é, de ocorrências implicadas por funções umas às outras, tal como a ponte de pedras descrita por Marco Polo acima: cada pedra está articulada às demais de modo que juntas formam um arco, sem pedras não haveria arco, sem a curvatura do arco as pedras não se sustentariam. Cada variável está tão intimamente ligada às outras que sem uma delas o fenômeno ‘ponte de pedras em arco’ não existiria. Não há uma variável que seja a causa do fenômeno, nem tampouco o fenômeno é o efeito das variáveis. Não há causa e efeito em ciência, por que ciência não trabalha com fatos isolados, mas com conjuntos, pois a realidade objetiva acontece desta forma.2
É possível verificar cientificamente como um fenômeno se constitui, evolui e se extingue – está no tempo e no espaço – sempre como um conjunto de variáveis articuladas entre si ele se dá, tanto em sua constituição, como em sua evolução e extinção.3 O fenômeno ocorre na realidade e não no interior das pessoas, ele não depende do homem para existir. Por ser assim, não há uma lógica oculta a ser descoberta, a lógica deve ser produzida a partir dos indicativos proporcionados pelo próprio fenômeno. Marco Polo mostra como observar a realidade, há uma objetividade a ser descrita e conhecida e é dela que se deve tirar os
1 CALVINO, Ítalo. “As cidades invisíveis”. (Pg.79); apud BERTOLINO, Pedro: Modelo “Constituição interna do fenômeno-de-ser”. In NUCA, disponível em <http://www.nuca.org.br> Em Subsídios Científicos/Modelos Científicos. Acesso em: 08 mar, 2006.
2 BERTOLINO, Pedro: Modelo “Constituição interna do fenômeno-de-ser”. In NUCA, disponível em <http://www.nuca.org.br> Subsídios Científicos / Modelos Científicos. Acesso em: 08 março, 2006.
3 Idem: Modelo “Lei da Inércia do Fenômeno”, in NUCA, disponível em <http://www.nuca.org.br> Em Subsídios Científicos/Modelos Científicos. Acesso em: 19 fev, 2006.
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elementos para montar a inteligibilidade do fenômeno, jamais da cabeça do sujeito ou das forças ocultas, como faz a metafísica.
A racionalidade que busca causas e efeitos é a metafísica, bem ilustrada na atitude de Kublai Khan: ele não estava interessado em saber como era a ponte, mas em descobrir o que a sustentava, ou seja, qual era a ‘causa’ da ponte estar em pé, ele tentava descobrir o que estava por detrás, oculto, buscava uma explicação para uma manifestação. Como salienta o professor: “O Rei queria uma explicação metafísica para a ponte: causa primeira, pedra última. Marco Polo, porém, oferece-lhe um esclarecimento científico: correlações de forças e/ou funções. É assim que a ponte acaba sustentada pelo arco que as pedras formam.” 4
Modelo 1 5
4 BERTOLINO, Pedro: Modelo “Constituição interna do fenômeno-de-ser”. In NUCA, disponível em <http://www.nuca.org.br> Subsídios Científicos / Modelos Científicos. Acesso em: 08 março, 2006
5 In NUCA, disponível em <http://www.nuca.org.br> Subsídios Científicos / Modelos Científicos. Acesso em: 08 março, 2006.
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A ciência, ao contrário, objetiva esclarecer como os fenômenos acontecem na realidade, para utilizar este conhecimento na interceptação e na prevenção de problemas para o bem-estar humano. Interceptar, ou seja, interromper um fenômeno já constituído e com isso alterar sua evolução própria. Por exemplo, utilizar certo antibiótico para curar uma pneumonia bacteriana, mudar o curso de um rio para irrigar terras áridas, fornecer alimentos às pessoas desnutridas. Prevenir, isto é, evitar que um fenômeno se constitua, que ele ocorra. Por exemplo, a cárie dentária pode ser evitada por meio de profilaxia diária, uso de flúor, visitas periódicas ao dentista; alguns tipos de câncer, como os de mama, de útero, de próstata, podem ser evitados com exames regulares, com mudança de hábitos nocivos como tabagismo, etc; a AIDS pode ser evitada com o uso de camisinha durante a relação sexual, com o não compartilhamento de seringas, etc. Ou proteger, isto é, auxiliar ou socorrer da melhor forma quando os fenômenos são inevitáveis, quando são preditos, já se constatou que irão acontecer, mas é impossível realizar sua interceptação ou prevenção, como exemplo, os furacões que atingem vários países, não há, ainda, como evitar que eles aconteçam, mas há como se defender quando verificados a tempo.
Desta forma, a ciência tem um propósito estritamente prático, a Teoria Científica está sempre vinculada a uma prática, exigindo e possibilitando o contínuo avanço tecnológico. É por assim dizer, um conhecimento que serve para uma intervenção na realidade: se o conhecimento não servir para viabilizar uma determinada prática não tem espaço nem necessidade na ciência. A ciência produz Teoria, ou seja, o esclarecimento fiel e rigoroso do fenômeno que possibilita uma intervenção segura e com controle dos resultados. Muitas vezes, porém, o termo “teoria” é utilizado erroneamente para designar qualquer tipo de discurso, doutrina, explicação, especulação, hipótese, enfim, achismos de toda sorte. Porém “teoria”, na acepção correta do termo, é a expressão (determinação) exata do fenômeno, compõe-se por um conjunto de Leis Científicas, com vistas a viabilizar uma intervenção onde seja possível prever, antecipar e controlar os resultados.
A Teoria Científica é construída por meio da “observação do fenômeno”, destaca-se que ‘observar’ o fenômeno não é o mesmo que ‘percebê-lo’. O fenômeno não pode ser ‘percebido’, podemos perceber apenas suas ocorrências. É a teoria que nos permite ultrapassar a percepção e esclarecer o conjunto das ocorrências. Como dito anteriormente, ciência trabalha com conjuntos de ocorrências e a Teoria Científica mostra os ‘sistemas’, ou seja, ‘conjuntos articulados’ e não percepções. Cada ocorrência é um dos “n” fatos que constituem o fenômeno, é uma função no fenômeno, podemos considerar cada ocorrência
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isoladamente, mas na realidade o fenômeno não se dá de forma isolada. Por exemplo, o ‘computador’ é um fenômeno, é um conjunto de ocorrências articuladas entre si (monitor, CPU, teclado, mouse, hardware, software, estabilizador, etc), não se percebe o ‘computador’ como fenômeno: percebe-se o conjunto de ocorrências que o constituem. Pode-se considerar uma variável isoladamente, o teclado, por exemplo, que caiu uma tecla sem a qual fica complicado escrever, este teclado tem sua função dentro do conjunto, mas o fenômeno ‘computador’ não se restringe ao teclado. Para se ter o ‘computador’ em perfeito funcionamento é preciso que o teclado exerça sua função no conjunto de variáveis, que articuladas às outras, constituem o fenômeno ‘computador’.
Outro aspecto é que a ciência esclarece alguns fenômenos, os fenômenos objetivos, que se dão como complexos de variáveis articulados entre si e que fazem parte de uma série, ou seja, de um conjunto de fenômenos do mesmo tipo, fazem parte de um universo de fenômenos similares. Assim, a ciência só trabalha com fenômenos demarcados, definidos ou passíveis de definição. Não há propósito científico em pesquisar um fenômeno único, que não acontecerá novamente ou que não pode ser observado na realidade objetiva. Não é possível conhecer cientificamente Deus, por exemplo, já que ele é único, não faz parte de uma série, ele não existe, na acepção de que não está nem no tempo nem no espaço, nem é coisa, isto é, não possui substância: Deus “é”, independente da realidade objetiva, da materialidade, da temporalidade, porquanto é sustentado e compreendido por outra racionalidade que não a científica, a Racionalidade Teológica.
É importante, destacar que a ciência é um instrumento, uma ferramenta construída pelo homem para resolver problemas humanos e mundanos, por isso seu uso depende dele, é o homem quem escolhe se vai produzir energia elétrica a partir da energia do átomo e iluminar cidades ou produzir bomba atômica e destruí-las.
Assim, verifica-se que a ciência possibilita uma determinada racionalidade, a Racionalidade Científica, que é uma racionalidade dentre outras que constituem a Cultura Ocidental. E mais: construída pelo homem, no seu trabalho de experimentações ou verificações experimentais, conforme se vê no Modelo:
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Modelo 2 6
2 AS RACIONALIDADES OCIDENTAIS
A Racionalidade Ocidental, isto é, os diversos modos de compreensão do mundo e das coisas pela Civilização Ocidental, é composta por uma diversidade de razões, cada qual produzida de modo diferente e irredutível às outras. São elas: a Racionalidade Teológica, a Racionalidade Metafísica, a Racionalidade Científica e a Racionalidade Política. Todas estas racionalidades foram criadas por homens ou comunidades humanas, são, portanto, fenômenos antropológicos e históricos, passíveis de compreensão, demarcação e estudo. E se transcendem unificando no processo ideológico por totalizações-destotalizações-retotalizações.7
A “Racionalidade Teológica” sustenta-se na fé em um Deus que, por meio de revelações ou mensagens divinas ditadas aos seus ‘escolhidos’, constitui uma doutrina,
6 In NUCA, disponível em <http://www.nuca.org.br> Subsídios Científicos / Modelos Científicos. Acesso em: 08 março, 2006.
7 Modelos “Composição interna da Razão Universal – Gênese e constituição dos Sistemas de Racionalidade” e “Constituição da Razão Universal do Ocidente – Evolução hstórica dos sistemas de racionalidade” . In NUCA, disponível em <http://www.nuca.org.br> Subsídios Científicos / Modelos Científicos. Acesso em: 08 março, 2006.
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respeitada e seguida por uma determinada comunidade religiosa. Portanto, as doutrinas religiosas são produções humanas e foram escritas por homens ou comunidades humanas, como a Bíblia, o Corão, o Torá, dentre outros, sem prejuízo para a revelação. Deus, na Racionalidade Teológica, não é um ser oculto, nem uma manifestação, mas uma entidade que mantém uma relação estreita com o homem, relação esta mantida pela fé de seus seguidores, havendo assim um contato imediato com Deus, como se diz: uma Aliança.
A “Racionalidade Metafísica” ou “Mitológica” é proveniente da Era Antiga e mantém-se na atualidade por meio de crenças ou interesses pessoais. Na Sociedade Ocidental ela remonta à Civilização Grega. A Racionalidade Metafísica não tem o objetivo de elucidar os fenômenos, ela interpreta os acontecimentos e produz discursos para justificar as interpretações, pressupostos ou crenças profanas. É elaborada a partir de especulações acerca dos acontecimentos, busca uma causa às ocorrências naturais e humanas e resulta em explicações utilizadas para legitimar suas pré-suposições. Por exemplo, os gregos atribuíam às intempéries, mensagens divinas: partiam de um fato, como os trovões, e o interpretavam segundo suas crenças “Zeus está zangado”.
Dentre os fiósofos gregos, destacam-se Platão e Aristóteles, por estes construírem as bases da Racionalidade Metafísica que ainda hoje exerce influência no pensamento ocidental. Platão (427-347 a.C.) concebia que o mundo real estaria em outro plano, o que os homens viam no mundo terreno eram meras ilusões. Descreve essa concepção de mundo no “Mito da Caverna”, do Livro VII “A República”. Nesta alegoria, os homens comuns viam apenas as sombras na parede da caverna, porém este era o mundo sensível e falso. O mundo verdadeiro – a realidade – estaria fora da caverna, num plano além da materialidade, e portanto, metafísico8. O filósofo seria o único homem que conseguiria ter acesso ao mundo real, oculto aos outros. A filosofia platônica é encontrada, novamente, na base do Movimento Iluminista e do Racionalismo Moderno, formulados por Renée Descartes no Século XVI, para combater a ciência9.
Aristóteles (384-322 a.C.), para explicar o movimento dos astros, defendia que “a esfera superior das estrêlas fixas era movida pelo Primum Mobile ou Motor Imóvel, situado na periferia do cosmo e que governava todas as esferas e o Universo inteiro”10, daí sua noção de um motor que move tudo sem se mover nem ser movido, conceito mais tarde introduzido
8 Do Grego “tà metà tà physiká” que significa “depois dos tratados da Física”. In PRIBERAM, disponível em <http://www.priberam.pt/dlpo/definir_resultados.aspx> Acesso em: 19 fev, 2006.
9 Ver mais no Capítulo 5.
10 MASON, S.F. História da Ciência: as principais correntes do pensamento científico. 1ª ed. Rio de Janeiro: Globo, 1964. (Pg. 27).
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por São Tomás de Aquino na Igreja Católica como sendo o Deus Cristão tal motor. Para Aristóteles tudo que acontecia tinha uma causa e um destino pré-existentes. É interessante salientar, que a noção de causa grega vêm dos pré-socráticos, estes baseavam-se na idéia babilônica de falta humana e castigo (princípio de retribuição), retirada dos costumes sociais daquela época, em que a vingança precedeu ao justo processo legal. Por isso o significado do termo grego de causa (aitia) era culpa. Mais tarde essa noção foi substituída pela concepção de que a natureza, assim como os homens, eram governados por leis.11 Para Aristóteles,
havia (...) quatro principais tipos de causa: a causa material das coisas, a matéria-prima de que se faziam os objetos; em segundo lugar as causas formais – os planos, modelos e formas – que se imprimiam sobre a matéria-prima; depois, as causas eficientes, que forneciam os mecanismos por que tais planos se concretizavam; e , em quarto lugar, as causas finais ou destinações a que os objetos estavam reservados. 12
Aristóteles acreditava que as causas formais eram inerentes a todos as coisas, eram latentes nas coisas e manifestavam-se durante seu desenvolvimento, até chegar ao propósito pelo qual haviam sido criadas, seu destino – a causa final. Desta forma, na Racionalidade Metafísica sempre haverá algo oculto atuando, as coisas já estão determinadas e é preciso interpretar os acontecimentos para buscar sua explicação, ou seja, uma causa para seu efeito. Interpretar é justamente atribuir a algo que acontece, a ação de forças ocultas. E assim são todas as metafísicas, mitologias ou ocultismos.
A “Racionalidade Científica” é relativamente nova, tem seu primórdio nos Séculos XVI e XVII, e pode-se demarcar seu início por meio das experimentações realizadas pelos primeiros cientistas. Ela é estabelecida a partir de pesquisas e verificações experimentais realizadas pelo homem e sustenta-se pela interdisciplinaridade. Nos capítulos 3 e 4 que seguem será tratado mais detidamente como a Racionalidade Científica se constituiu antropologicamente e historicamente, como é produzida e qual o método utilizado por ela.
A “Racionalidade Política” constituiu-se a partir do momento em que os homens passaram a se organizar em sociedade. Por meio desta racionalidade, buscou-se a solução para os problemas de constituição da polis (cidade), de forma a garantir e legitimar as condutas éticas e morais, estabelecendo a harmonia possível para o convívio entre os homens numa
11 MASON, S.F. História da Ciência: as principais correntes do pensamento científico. 1ª ed. Rio de Janeiro: Globo, 1964. (Pg. 16).
12 Idem (Pg. 29).
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determinada sociedade ou entre eles e as comunidades. É pelo processo político que as racionalidades diversas se transcendem para as ideologias e nelas se unificam.13
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Todas estas racionalidades constituíram e constituem o homem ocidental e atualmente não é mais possível viver sem debater-se com elas. Não é mais concebível o mundo sem a ciência e seus avanços, tampouco é possível negar a religiosidade de milhões de pessoas, ou as crenças em metafísicas de vários tipos, ou mesmo, prescindir da política na organização da vida em sociedade. No dia-a-dia o homem convive com esta diversidade de racionalidades, cada qual com uma função, mas há, também, a dificuldade de coexistência entre elas, cujo desdobramento mais funesto é o fundamentalismo. O fundamentalismo é uma tentativa extrema de anular a existência desta diversidade de razões, para que apenas uma prevaleça. É a negação total da existência de outras racionalidades ou a tentativa de resolver todos os problemas numa só racionalidade. Até hoje as Civilizações vêm se batendo com esse projeto fracassado que está na base das guerras e atrocidades cometidas pelos séculos.
13 BERTOLINO, Pedro. In NUCA, disponível em <http://www.nuca.org.br> Subsídios Científicos / Modelos Científicos. Acesso em: 08 março, 2006.
14 In NUCA, disponível em <http://www.nuca.org.br> Subsídios Científicos / Modelos Científicos. Acesso em: 08 março, 2006.
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O fundamentalismo só comporta uma verdade: ou tudo é espírito ou tudo é matéria e ambos não comportam a ciência. Esta questão é crucial, especialmente para os profissionais da psicologia que desejam trabalhar cientificamente. Primeiramente por que há a necessidade de confrontar-se diretamente com outras racionalidades acerca do mesmo objeto disciplinar, já que há outras racionalidades que compreendem a personalidade como alma, espírito, id, etc. E, também, por que dizer ‘Racionalidade Ocidental’, é incluir todos os homens e mulheres ocidentais, compreendidos no seu espaço e tempo. Esta racionalidade não é ‘optativa’ e exerce uma importante função no ‘saber-de-ser’ do homem ocidental. Não há como ser ocidental e não se deparar com religião, ciência, metafísica e política: quem não consegue se mover no mundo com essa diversidade de racionalidades não tem como não se complicar. Este é o grande desafio do profissional da ciência: ser científico dentro de um contexto extremamente adverso.
3 CONSTITUIÇÃO DA CIÊNCIA
Ao verificar-se antropologicamente como inciou o fenômeno ‘ciência’, constata-se que principiou no Ocidente, nos Séculos XVI e XVII e a partir de então evoluiu progressivamente em várias disciplinas científicas. Contudo, foi no Século XX que a ciência adquiriu um ritmo excepcional de evolução, modificando irreversivelmente as possibilidades do homem e do mundo em vários aspectos. Em contrapartida, a ciência gerou medo em alguns setores da sociedade, por ficar irrevogável que era um instrumento que viabilizava ao homem esclarecer a realidade e transformá-la, o que, em certos aspectos, não interessava às camadas dominantes, uma vez que colocaria em cheque a estrutura da sociedade vigente. Daí desdobrou-se a campanha contra a ciência, também histórica e concomitante a seu surgimento.
Galileu Galilei (1564-1642) proferiu o discurso abaixo em 22 de Junho de 1633, na cerimônia de abjuração pública perante o Tribunal do Santo Oficio da Santa Inquisição da Santa Madre Igreja, que o levou à condenação de retratação e prisão domiciliar perpétua, além da repetição semanal dos sete salmos penitenciais por três anos:
Eu, Galileu Galilei, filho do falecido Vincenzio Galilei de Florença, com a idade de setenta anos, sendo trazido pessoalmente a julgamento, e ajoelhado diante de vós, Eminentíssimos a Reverendíssimos Lordes Cardeais, Inquisidores Gerais da Comunidade Cristã Universal contra a depravação herética, tendo diante de meus olhos o Sagrado Evangelho que toco com as
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minhas próprias mãos, juro que sempre acreditei, e, com a ajuda de Deus, acreditarei no futuro, em todo artigo que a Santa Igreja Católica Apostólica Romana mantém, ensina e prega. Mas por ter sido ordenado, por este Conselho, a, abandonar completamente a falsa opinião que mantém que o Sol é o centro e imóvel, e proibido de manter, defender ou ensinar a referida falsa doutrina de qualquer maneira (...) Estou desejoso de remover das mentes de nossas Eminências, e de todo Cristão Católico, essa veemente suspeita acertadamente mantida a meu respeito, portanto, com sinceridade de coração e fé genuína, eu abjuro, maldigo e detesto os Referidos erros e heresias, e, de modo geral, todos os outros erros e seitas contrários à referida Santa Igreja; e juro que jamais no futuro direi ou asseverarei seja o que for, verbalmente ou por escrito, que possa motivar uma suspeita similar de mim; mas que se eu souber de algum herético, ou de alguém suspeito de heresia, denunciá-lo-ei a este Santo Conselho, ou no Inquisidor ou Ordinário do lugar em que eu esteja. Juro, mais ainda, e prometo que cumprirei observarei plenamente todas as penitências que a mim tenham sido ou venham, a ser impostas per este Santo Conselho. Mas, caso aconteça que eu viole qualquer de minhas promessas, juramentos e protestos citados, eu me sujeito a todas as dores e punições decretadas a promulgadas pelos sagrados cânones e outras constituições gerais e particulares contra delinqüentes dessa descrição. Assim, que Deus me ajude, a Seu Sagrado Evangelho, que eu toco com as minhas próprias mãos; eu, o acima citado Galileu Galilei, abjurei, jurei, prometi e me comprometo como acima; e, em testemunho do que, com a minha própria mão subscrevi o presente escrito de minha abjuração, que eu recitei palavra per palavra. 15
Somente por volta de 1980 a Igreja Católica, por meio do Papa João Paulo II, revisou o processo de condenação de Galileu Galilei. Mas a penalidade infligida a Galileu não conseguiu impedir o desenvolvimento do novo método de esclarecimento e intervenção da realidade que então brotava no horizonte de racionalidade da humanidade: a Ciência.
Desde o Século XIII o filósofo oficial da Igreja Católica era São Tomás de Aquino (1227-1274), cujo grande feito filosófico foi o de incorporar à teologia cristã a filosofia de Aristóteles, diluindo o cristianismo na metafísica aristotélica.
São Tomás é famoso por ter cristianizado Aristóteles, à semelhança do que fez Agostinho com Platão, ele transformou o pensamento desse sábio num padrão aceitável pela igreja católica, apesar de Aristóteles não ter conhecido a revelação cristã, como diz Tomás, e de sua obra ser original, autônoma e independente de dogmas, ele está em harmonia com o saber contido na Bíblia. E Tomás aplica o pensamento de Aristóteles na teologia. No ‘Ente e a Essência’, ele comenta obras como a Física e a Metafísica. 16
A física aristotélica partia de fatos empíricos para formular sua explicação do universo, que tinha como premissas dois postulados: “I- a Terra está imóvel, no centro do Universo; II- O Universo é esférico, finito e tem uma estrutura supremamente ordenada.”17 Partindo destes princípios Aristóteles elaborou suas proposições complementares:
15 CONVITE A FÍSICA, disponível em: <http://www.conviteafisica.com.br/home_fisica/biografia/biografia_galileu.htm>. Acesso em: 19 fev, 2006.
16 CONSCIÊNCIA.ORG. Disponível em: <http://www.consciencia.org/medieval/aquino.shtml> Acesso em: 19 fev, 2006
17 LUCIEN, Pierre. A Gênese do Método Científico. 2ª Ed. Editora Campus. RJ, 1978 (Pg. 47).
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1- há cinco elementos: éter, terra, água, ar e fogo;
2- o éter, elemento perfeito, compõe os Céus, onde reina a perfeição;
3- os outros quatro elementos imperfeitos, alteráveis compõem o mundo sublunar, imperfeito, alterável;
4- cada elemento possui seu lugar natural:
- para o éter: os Céus;
- para a terra e a água: o centro do Universo;
- para o ar e o fogo: a região entre a Teera e o limite superior do mundo sublunar;
5- existem somente três movimentos naturais:
- o movimento circular uniforme para o éter e os corpos celestes;
- o movimento retilíneo em direção ao centro para os corpos graves;
- o movimento retilíneo afastando-se do centro para os corpos leves.
6- todo corpo (sublunar) que não estiver em seu lugar natural tem tendência a voltar para ele, pelo movimento natural que lhe é próprio;
7- existe um “Primeiro Motor”, de essência divina, que põe em movimento a esfera celeste. Esse movimento comunica-se ao Universo inteiro.18
Assim, Aristóteles construiu sua física e sua cosmologia a partir de argumentações e explicações que buscavam comprovar suas crenças mitológicas através de um discurso lógico. Ele não partiu de experiências nem da observação de fenômenos, mas de interpretação de fatos. Quando jogava uma pedra para o alto e ela caía em sua cabeça ele se perguntava: “por quê?”, ao invés de: “como isso ocorreu?”, buscando com isso uma causa pré-determinada. Galileu, por meio de pesquisas experimentais, principalmente na área da mecânica e da astronomia, questionou e destruiu os preceitos da física aristotélica. Galileu não recorreu a forças ocultas para explicar os fenômenos naturais, como o movimento de queda dos corpos graves e leves, o movimento dos projéteis, o movimento dos planetas: verificando como ocorriam era possível obter seu esclarecimento.
Aristóteles, por exemplo, explicava o fato de o martelo cair antes de uma pena como resultado de que os corpos pesados tendem a ser atraídos para o centro da Terra, e os corpos leves eram atraídos para o céu sublunar, pois cada corpo tende a voltar para seu lugar de origem, conforme sua crença profana ou mitológica:
A teoria de Aristóteles era a seguinte: existiriam na terra apenas quatro elementos: terra, água, ar e fogo, e todos estes elementos teriam o seu lugar natural. O ar teria o seu lugar sobre a superfície da terra; o fogo um pouco mais acima. A água e a terra, consideradas mais pesadas, tenderiam para o centro da terra. Quanto mais pesado fosse o elemento mais rapidamente ele iria cair.19
Baseado nas suas experimentações, Galileu por sua vez,
conseguiu mostrar que "dois corpos, quando abandonados de uma mesma altura e ao mesmo tempo, chegarão ao solo juntos independentemente de seus
18 LUCIEN, Pierre. A Gênese do Método Científico. 2ª Ed. Editora Campus. RJ, 1978. (Pgs 47 e 48)
19 INSTITUTO DE FÍSICA, disponível em: <http://www.if.ufrgs.br/tex/edu02220/sem012/po5/texto535.html> Acesso em: 19 fev, 2006.
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pesos". Conta a lenda que Galileu procurou realizar esta experiência atirando bolas de diversos pesos da torre de Pisa, sua cidade natal. O que na verdade Galileu conseguiu provar em sua época era que, quando desprezamos a resistência do ar, os objetos sofrem ação única e exclusivamente da aceleração gravitacional. Ele ainda descobriu uma relação matemática para a queda dos corpos analisando o problema de uma forma mais precisa.20
Com suas experiências, Galileu constatou que haviam regularidades na natureza e que os fenômenos podiam ser verificados, estudados e compreendidos com recurso exclusivamente a eles mesmos. Demonstrou, com isso, que as explicações de Aristóteles para os fenômenos físicos e astronômicos eram todos baseados na metafísica que as fazia falsas, e erigiu as bases da racionalidade científica.
Sendo extremamente importante que entendamos o mecanismo de base dessa investigação, resumiremos os passos sucessivos que Galileu deu no estudo dos problemas que escolheu: (...)
Em primeiro lugar, há a ‘observação do fenômeno’.
A observação suscita geralmente uma pergunta, que caracteriza a existência de um problema.
Galileu tem a intuição de que tanto a pergunta como a solução do problema devem ser elaboradas numa linguagem especial: a linguagem matemática. (...)
Ora, para que o fenômeno estudado possa ser tratado matematicamente, é necessário caracterizá-lo por um conjunto de parâmetros suscetíveis de medição: é a chamada construção do modelo físico.
Esse modelo deve obedecer (...) a certas leis e/ou teorias e/ou hipóteses.
O conjunto dessas leis, teorias e hipóteses impostas ao modelo físico permite escrever certas equações e/ou inequações, que constituem o modelo matemático do problema, isomorfo do modelo físico. A solução dessas equações e/ou inequações fornece, no papel, uma resposta provisória à pergunta inicial e permite geralmente fazer previsões verificáveis quanto às respostas a outras perguntas porventura surgidas no decorrer da investigação.
No entanto, sendo os modelos – com suas leis, teorias, hipóteses...- construões humanas, resta saber se a natureza concorda com a resposta encontrada. Há somente um meio de sabê-lo: voltar à experiência. 21
Galileu não afirmou que as constatações empíricas de Aristóteles eram falsas, ilusórias ou mentiras: se atirarmos uma pedra para o alto ela cairá, isto é fato. Qualquer pessoa pode verificar esta ocorrência. O que Galileu desmontou foram as explicações dadas pelo filósofo aos fatos, ou seja, como atuação de forças ocultas, além da natureza, que determinavam seus movimentos para atingir uma causa final, eram desnecessários e equivocados. As constatações feitas por Galileu tiveram um impacto muito forte sobre os dogmas da Igreja Católica, pois esta se encontrava ancorada na filosofia aristotélica. A gota d’água foi a posição heliocêntrica defendida por Galileu, que culminou em sua condenação.
20 INSTITUTO DE FÍSICA, disponível em: <http://www.if.ufrgs.br/tex/edu02220/sem012/po5/texto535.html> Acesso em: 19 fev, 2006.
21 LUCIEN, Pierre. A Gênese do Método Científico. Ed. Campus. RJ, 1978 (Pgs 141 e 142).
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Porém, a briga efetiva de Galileu não foi com a teologia, mas com a metafísica: quando os fenômenos são verificados na realidade não há necessidade de ocultimos para explicá-los.
4 COMO A CIÊNCIA É PRODUZIDA
4.1 O TRABALHO CIENTÍFICO
Trabalhar cientificamente exige do profissional extrema paciência e cuidado nas suas verificações, bem como nas suas afirmações. O cientista precisa ater-se ao fenômeno que tem diante de si, para que não incorra em erros ou equívocos que, muitas vezes, podem ser fatais. Em ciência jamais se afirma algo que não foi rigorosamente verificado.
Devemos tomar cuidado para extrair de uma experiência apenas o conhecimento que ela fornece – e parar aí; senão seremos como o gato que se senta na chapa quente de um fogão. Ele nunca mais se sentará de novo na chapa quente de um fogão – e isto está bem; mas ele também nunca mais se sentará em uma chapa fria. (Mark Twain) 22
O ‘cuidado para extrair de uma experiência apenas o que ela fornece’ é, portanto, a primeira atitude que um cientista precisa ter diante de seu objeto de pesquisa ou de intervenção. É necessário que o fenômeno seja verificado meticulosamente em todos os seus aspectos, e que o resultado obtido seja fiel à ele. Queimar etapas neste processo é danoso e perigoso em ciência, além de equivocado. Como dito anteriormente, o fenômeno não é um fato isolado, mas um conjunto de ocorrências concretas na realidade objetiva e é dali, da realidade, que é preciso tirar os elementos para compreendê-lo, isto é, nunca se vai buscar algo oculto ou cair em generalizações. O ‘gato de Mark Twain’ partiu de um fato isolado, a “chapa quente”, e dali generalizou para todas as chapas a experiência que teve com uma. Essa atitude diante das coisas, aqui ilustrada pelo gato, é muito comum de ser adotada pelas pessoas, porém não é a forma de proceder de um cientista diante dos fenômenos.
Assim, o conhecimento científico é estabelecido conforme fenômenos que ocorrem na realidade e ao cientista cabe investigá-los, por meio de técnicas adequadas e de um suporte teórico consistente e atualizado. Ciência é um trabalho, não é uma ‘iluminação’ que ocorre na cabeça do cientista, apesar de toda mística que há de ‘genialidade’. A ‘genialidade’ de um cientista não está no peso de seu cérebro, quanto mais nos mapas astrais,
22 NETTO, Luiz Ferraz. “Construindo a Ciência. Parte 1”. In FEIRA DE CIÊNCIAS, disponível em: <http://www.feiradeciencias.com.br/sala19/texto49.asp>. Acesso em: 19 fev, 2006..
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nos oráculos, em habilidade inatas, nem é adquirido com reza ou meditações transcendentais. O que se chama ‘genialidade’, é melhor dito como ‘competência’, e ter competência exige trabalho, dedicação, esforço, estudo, cuidado, paciência e perseverança. É preciso, também, considerar que há um custo social da ciência, pois é um investimento caro. O que é produzido cientificamente deve ter valor para a humanidade. É preciso entender que o valor humano, financeiro, social, gastos numa pesquisa poderiam ser usados para evitar a morte de crianças por fome ou por doenças. Portanto, o cientista deve sempre se perguntar sobre a relevância do seu estudo, se ele serve somente para tirar seu grau de ‘Doutor’ ou se vai efetivamente trazer algum benefício para a humanidade.
Para trabalhar cientificamente é preciso seguir estritamente o Método Científico, ou seja, há uma forma de fazer ciência, não se faz ciência a ‘bel-prazer’. Por isso o trabalho científico é planejado, o cientista tem que saber o que vai fazer, como vai fazer e ter controle dos resultados a serem obtidos; por exemplo, um físico ao estudar o átomo precisa planejar cuidadosamente o que vai realizar, onde vai mexer, senão pode causar uma explosão nuclear. Um médico, ao executar uma cirurgia, precisa saber o que vai fazer, como vai fazer e ter controle sobre os resultados antes de iniciar a cirurgia, ele não abre a pessoa e depois vai ver o que fazer, ele precisa estar preparado teórica e tecnicamente para tal. O profissional da ciência precisa, outrossim, estar sempre atualizado, pois o conhecimento científico está continuamente sendo enriquecido. O que um cientista produz é somado ao que os outros estão produzindo e ao que já foi produzido na sua disciplina: isso vindo dizer que em ciência não se parte do zero, é um conhecimento é cumulativo.
O que é verificado e estabelecido cientificamente não tem como ser desmontado posteriormente, as Leis Científicas são irrevogáveis, não porque são ‘absolutas’, mas por que estão sustentadas na realidade. Não é possível revogar a Lei da Gravitação Universal formulada por Isaac Newton: “a atração entre duas partículas é proporcional ao produto de suas massas e inversamente proporcional ao quadrado da distância entre elas”23. Não por que foi Newton quem a criou, mas por que esta Lei está sustentada no movimento gravitacional como ocorre na realidade.
Com o avanço da ciência mais conhecimentos são somados aos já existentes, porém os novos conhecimentos precisam defrontar-se com os antecedentes e somar-se a eles. Os resultados obtidos pelo método científico valem para o universo de fenômenos similares. O que se produz acerca do vírus da AIDS em uma pesquisa na África tem validade e utilidade
23 NETTO, Luiz Ferraz.“Uma força da natureza - a gravidade “ in FEIRA DE CIÊNCIAS, disponível em:<http://www.feiradeciencias.com.br/sala05/05_RE_10.asp.> Acesso em: 19 fev, 2006."
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para o mundo todo, por exemplo. As Leis Científicas, assim, nada mais são do que as regularidades constatadas nos fenômenos, pois o que é verificado num fenômeno vale para todos do mesmo tipo: as constatações acerca de um pulmão servem para todos os pulmões, ou seja, cada fenômeno singular se inscreve num universo demarcado, dizendo-se por isso que ele é singular/universal.
4.2 OBSERVAÇÃO CIENTÍFICA DO FENÔMENO
O Método Científico implica em etapas que devem ser seguidas com rigor, tanto na pesquisa quanto na intervenção. O processo a ser seguido é o mesmo em todas as disciplinas científicas, o que modifica é o fenômeno a ser investigado ou por intervir. Portanto, cada disciplina possui uma demarcação de seu fenômeno, que deve ser respeitada, pois é esta demarcação a condição de possibilidade para o trabalho interdisciplinar e científico. O ‘Homem’, por exemplo, é um fenômeno complexo, trabalhado por várias disciplinas científicas: a medicina, a química, a física, a história, a sociologia, a geografia, a odontologia, a biologia, etc. Cada disciplina demarca no fenômeno ‘Homem’, o objeto de intervenção que lhe é próprio, sem desconsiderar sua complexidade e seus vários perfis: coisa que é objeto da psicologia.
O processo que possibilita a demarcação de fenômenos tão complexos é, justamente, o ‘Método Científico’. A primeira etapa do Método Científico é a ‘Observação Científica’, com o esclarecimento rigoroso do fenômeno. A segunda etapa é a da ‘Pesquisa’ ou a da ‘Intervenção’ propriamente, a qual, pela equação do problema viabiliza o planejamento e os planos de atuação para a realização da execução do trabalho. A terceira e última etapa é o momento em que se objetivam os ‘Resultados’ obtidos, aí se deve retornar ao fenômeno para verificar as constatações nele realizadas por meio da pesquisa, ou das alterações nele produzidas por meio da intervenção e fazer a crítica do que foi alcançado. Assim, é possível montar um ‘Relatório’, fundamental na ciência, pois é um instrumento de objetivação do que foi realizado o que, conseqüentemente, viabiliza o avanço científico na área específica, bem como da ciência como um todo, uma vez que o que se produz numa disciplina tem função nas demais.
Deter-se-á, neste trabalho, na compreensão da primeira etapa do Processo Científico: a observação científica do fenômeno.
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Modelo 4 24
Para definir o fenômeno de pesquisa ou de intervenção, o primeiro passo é observar em que circunstâncias o fenômeno se produz e quais são suas características ou variáveis constitutivas – é preciso verificar em detalhes de que fenômeno se trata. Somente por meio da verificação do fenômeno podemos definir o objeto e, assim, identificar onde está o problema por resolver, viabilizando o seu esclarecimento, para com isso poder montar a equação do problema e realizar a pesquisa ou a intervenção.
Esta observação deve ser reiterada (deve ser realizada várias vezes; deve ser repetida), minuciosa (deve-se tentar apreciar o maior número possível de detalhes), rigorosa (deve ser realizada com a maior precisão possível) e sistemática (deve ser efetuada de forma ordenada). 25
A observação científica, na pesquisa, precisa ser repetida várias vezes, porém na intervenção ao observar um fenômeno, ele já se insere num universo de fenômenos verificados, ou seja, que já foram exaustivamente repetidos por cientistas do mundo todo. Não se faz intervenção para ‘testar’ o fenômeno em ciência, isso cabe à pesquisa. A minuciosidade na observação é importante, porém é preciso ter o cuidado de demarcar a ‘borda’ do fenômeno, até onde ele vai, senão acumulam-se fatos e se vai ao infinito, perdendo assim o
24 In NUCA, disponível em <http://www.nuca.org.br> Subsídios Científicos / Modelos Científicos. Acesso em: 19 fev, 2006.
25 NETTO, Luiz Ferraz. “Construindo a Ciência. Parte 2”. In FEIRA DE CIÊNCIAS, disponível em: <http://www.feiradeciencias.com.br/sala19/texto50.asp>. Acesso em: 15 fev, 2006. [Artigo:].
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objeto e a objetividade, é preciso buscar detalhes que são pertinentes ao esclarecimento do fenômeno ou à sua constituição interna. A rigorosidade na observação, vai no sentido de seguir com rigor a ordem dada pelo próprio fenômeno, é preciso ser rigoroso no acompanhamento desta ordem, por exemplo, as cores do arco-íris sempre ocorrem numa determinada ordem, e é esta ordem que a observação precisa garantir. Por todos estes aspectos, a varredura no fenômeno é fundamental, pois em meio às ocorrências constitutivas deste há outras ocorrências que não fazem parte dele ou que são de outras disciplinas, cabendo ao cientista demarcar isso.
No processo de observação do fenômeno, o cientista formula hipóteses de trabalho, estas servem como uma direção da observação a ser realizada, se há ocorrências que indicam que é um determinado fenômeno (hipótese de trabalho), é nessa direção que a verificação deve seguir. Por exemplo, se uma pessoa chega na emergência de um hospital com o calcanhar inchado, não consegue mover o pé, está com dor na região, o médico formula a hipótese de trabalho de que houve rupturas de ligamento e/ou talvez tenha fraturado algum osso, e vai investigar nesta direção, não há porquê o médico investigar se ele quebrou o braço ou o pescoço.
A Psicologia tem como objeto a personalidade, ou o psicológico. Um problema psicológico ocorre no tempo e no espaço, não ‘na cabeça’ da pessoa, ou no seu ‘interior’. É um acontecimento objetivo, por isso pode ser demarcado, compreendido e sofrer intervenção científica. Para tanto, é preciso verificar quando ele ocorre, como ocorre, quantas vezes, onde ocorre, quais os acessos que o paciente está padecendo, quais as características destes acessos ou quais seus sintomas.
Na psicoterapia, a etapa de ‘observação do fenômeno’ vai desembocar no diagnóstico, que é o ponto de partida da intervenção. Por meio da observação do fenômeno o psicoterapeuta levanta as ocorrências constitutivas dele e com isso pode demarcar de que fenômeno se trata. O paciente inicia expondo suas queixas ou problemas, cabe ao psicoterapeuta verificar quais as ocorrências psicológicas para demarcar rigorosamente qual o problema que tem diante de si, quais acessos emocionais a pessoa está padecendo e com estes elementos definir o ‘diagnóstico’: é uma depressão e não uma síndrome do pânico, por exemplo. A etapa da obervação do fenômeno, ou do ‘diagnóstico’, deve ser rigorosa, pois é preciso definir com precisão o objeto, caso contrário podem ser cometidos equívocos graves. Ciência não é campo para aventuras, nem para mexer com o que não se conhece. A
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verificação do fenômeno envolve um processo, utiliza-se de intrumentos próprios da área disciplinar para descrever e demarcar o fenômeno e chegar na definição do objeto.
Com o objeto definido o próximo passo é seu esclarecimento, valendo-se da Teoria Científica produzida até o momento acerca do fenômeno. Quando o psicoterapeuta realiza a verificação correta da situação do paciente no início do processo, fica possível dar uma resposta imediata ao problema, ou seja, um encaminhamento adequado e com controle de resultados, além de possibilitar o alívio do sofrimento psicológico da pessoa. Assim, a Psicologia Existencialista trabalha como qualquer outra disciplina científica: para conhecer e intervir numa personalidade é preciso verificar, observar o fenômeno, fazer uma varredura completa neste para demarcar com precisão o diagnóstico do paciente. O psicoterapeuta é um profissional técnico-científico, tanto como o médico ou o engenheiro e, para isso, ele precisa ter como base o conhecimento científico e tecnológico de sua disciplina para realizar a intervenção e, sobretudo, respeitar esta base.
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26 In NUCA, disponível em <http://www.nuca.org.br> Subsídios Científicos / Modelos Científicos. Acesso em: 06 abr, 2006.
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O método utilizado em todas as disciplinas científicas é o mesmo, o que modificará são os instrumentos e técnicas para pesquisa e intervenção em seus objetos. Noutros termos: as técnicas são elaboradas conforme o objeto de intervenção ou pesquisa de determinada disciplina. Pesquisar e intervir no átomo exige instrumentos e tecnologias diversos das utilizadas na pesquisa e intervenção do câncer, por exemplo. Na psicoterapia o psicólogo utiliza-se de técnicas específicas, próprias de sua disciplina, que viabilizam a demarcação e intervenção de seu objeto: a personalidade. Durante sua intervenção o psicoterapeuta conversa com o paciente, mas direciona esta conversa para demarcar e intervir no fenômeno psicológico que tem diante de si, isto é, no problema que tem por resolver, seja ele uma depressão, uma esquizofrenia, uma síndrome do pânico.
Na primeira sessão é preciso restrear o fenômeno e muitas vezes, intervir de imediato no que for urgente. Entre uma sessão e outra é preciso planejar o que será feito, definir o que é mais premente a ser verificado, esclarecido e como deve ser feito. Este é o momento da verificação do fenômeno, é preciso planejar o que vai ser verificado, como será verificado e porquê. É preciso de objetivos e metas a serem alcançadas e o que é verificado com o paciente deve fechar com toda teoria científica que se tem acerca de tal fenômeno. Convém destacar que o quê o paciente fala é apenas um dos elementos a ser utilizado na verificação do fenômeno, mas o fenômeno não é nem pode ser sustentado na fala do paciente. A pessoa diz o que consegue, o que pode, o que “acha” que está acontecendo, mas ela não tem as condições teóricas e metodológicas necessárias para demarcar seu problema. Além disso muitas vezes o paciente pode ocultar, usar de mentira, de má-fé, entre outros subterfúgios. O importante é que o psicoterapeuta tenha segurança do que está acontecendo com seu paciente na realidade objetiva, ou seja, na sua vida concreta de relações. Por isso a observação rigorosa do fenômeno é tão fundamental. Com esses elementos é preciso ir à Teoria para, com ela, esclarecer o problema psicológico da pessoa e, com esses elementos, definir o objeto e demarcar o problema a ser solucionado.
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Modelo 6 27
O psicoterapeuta tem diante de si uma pessoa de carne e osso, com sofrimentos reais, com riscos reais, ele não tem diante de si uma ‘cobaia’, assim, deve iniciar a sessão psicoterapêutica sabendo o que vai fazer em cada caso específico. Porém, quem dita o que deve ser feito é o próprio fenômeno. Uma pessoa com Depressão vai exigir uma intervenção diferente da de uma pessoa com Síndrome do Pânico, é o fenômeno que exige esta ou aquela intervenção. Isso não significa que o psicólogo ‘inventa’ o que fazer em cada caso: o que dá a base para a intervenção nos diferentes casos é a Teoria e o Método Científicos, porém cada caso exigirá técnicas e intervenções específicas cuidadosamente planejadas e com previsão de resultados. Deste modo, o trabalho psicoterapêutico deve ser sempre planejado, o psicólogo, quando trabalha cientificamente, entra na sessão psicoterapêutica sabendo o que fazer. Assim como todas as outras disciplinas científicas, a psicologia deve trabalhar para resolver problemas: seu objetivo será buscar solução para os sofrimentos psicológicos enfrentados pelas pessoas. O padecimento do paciente, para o psicoterapeuta, é um problema por resolver e o psicólogo precisa dar a resposta técnica e científica para tal problema.
27 In NUCA, disponível em <http://www.nuca.org.br> Subsídios Científicos / Modelos Científicos. Acesso em: 06 abr, 2006.
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5 DEMARCAÇÕES IMPORTANTES
Para entender a dificuldade que a Civilização Ocidental ainda na atualidade tem em compreender a ciência, é necessário detalhar alguns equívocos que a envolvem, pois estes criam obstáculos concretos na vida das pessoas, confundem a compreensão correta da ciência e, conseqüentemente, da realidade objetiva em toda sua complexidade ou simplicidade.
Dentre os vários equívocos criados, destacam-se dois em especial: o engano dos sentidos e a confusão entre ciência e estatística.
5.1 ENGANO DOS SENTIDOS
Como já exposto, desde que a ciência surge há uma forte reação contrária a ela. Pouco após a publicação dos estudos de Galileu Galilei, Renée Descartes (1596-1650) publica o “Discurso do Método”, tratado que buscava colocar a ciência sob o jugo da metafísica. Descartes resgata a filosofia platônica ao propalar que o homem não poderia confiar nos sentidos, pois estes seriam enganosos. Segundo ele, poderia-se duvidar de tudo, a única verdade indubitável seria o fato de duvidar e de pensar.
Para Descartes, não era pela observação das ocorrências que se chegaria à ‘verdade’, pois o homem, um ser imperfeito, jamais poderia ter uma idéia clara e distinta do mundo, apenas Deus tal capacidade. Erige, então, um método pautado na dúvida e baseado nas idéias, não na realidade objetiva, nem na experimentação. Com isso, estabeleceu as bases do ‘Iluminismo’28 e do ‘Racionalismo Moderno’, que concebiam o conhecimento como uma ‘iluminação’ que aconteceria na cabeça de alguns seletos iluminados.
O conhecimento, desta forma, aconteceria nas idéias e não seria obtido pelos sentidos. Com isto Descartes ‘descartou’ toda realidade e a ciência, jogando-as para dentro de um saco sem fundo chamado ‘mente’ ou ‘razão’. Tentou, ainda, colocar a possibilidade de conhecer e transformar o mundo em dúvida, já que não era mais possível negar as verdades objetivas produzidas pela ciência. Tal compreensão platônico-cartesiana acompanha o homem até a atualidade, embasando falsificações como a denominada ‘Ilusão de ótica’. Muitos desenhos e pinturas são utilizados como exemplos capciosos para comprovar tal discurso. Esta mesma lógica é usada ardilosamente para desqualificar as constatações empíricas, ao
28 “Chamamos de Iluminismo o movimento cultural que se desenvolveu na Inglaterra, Holanda e França, nos séculos XVII e XVIII. Nessa época, o desenvolvimento intelectual, que vinha ocorrendo desde o Renascimento, deu origem a idéias de liberdade política e econômica, defendidas pela burguesia. Os filósofos e economistas que difundiam essas idéias julgavam-se propagadores da luz e do conhecimento, sendo, por isso, chamados de iluministas.” In SABER HISTÓRIA, disponível em: <http://www.saberhistoria.hpg.ig.com.br/nova_pagina_31.htm>. Acesso em: 19 fev, 2006. [Artigo: FILHO, Milton B. B. História Moderna e Contemporânea. São Paulo: Scipione,1993].
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utilizando-se de comprovações científicas para esta desqualificação, com objetivo de fortalecer o discurso de ‘engano dos sentidos’.
Por exemplo, qualquer pessoa pode perceber o Sol nascer e se pôr, ou seja, pode ver o Sol girando em torno da Terra. Isto é uma observação empírica. Por outro lado, está comprovado cientificamente que é a Terra quem gira em torno do Sol, não o inverso. Como isso é possível? Então os sentidos de todas as pessoas estão enganados? Não há engano algum: a percepção que se tem do Sol girando ao redor da Terra é um fato concreto, verdadeiro. E a constatação de que a Terra gira em torno do Sol também é verdadeira. Não há percepções contraditórias, a diversidade não é de percepções, mas de esclarecimentos: aparece somente ao plano do conhecimento.
Modelo 7 29
Foram as observações empíricas que permitiram ao homem a construção de calendários precisos, de mensuração do dia e da noite e do passar dos anos, das bússolas, dos relógios entre tantos outros instrumentos e conhecimentos valiosos para a humanidade. A ciência, diferentemente, elucida fenômenos para neles intervir com controle de resultados, ela não objetiva desqualificar as observações empíricas, nem tem fundamento tal desqualificação,
29 In NUCA, disponível em <http://www.nuca.org.br> Subsídios Científicos / Modelos Científicos. Acesso em: 06 abr, 2006.
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pois não existe contradição entre conhecimento científico e conhecimento empírico. Não há um mundo que o homem percebe e vive e um mundo que a ciência investiga, há um mundo só. O homem não vive ‘nas sombras’, vive ao sol, toma banho de chuva, as estrelas estão no céu e o chão está embaixo de seus pés.
Da mesma forma que a humanidade tem dificuldade em conviver com vários tipos de conhecimentos, ela se esbarra na dificuldade de conviver com vários sistemas de racionalidades. Ao se colocar a ‘verdade científica’ como verdade absoluta, desconsiderando a ‘verdade empírica’, comete-se o equívoco do cientificismo e legitima-se o discurso do ‘engano dos sentidos’, caindo assim no cartesianismo e platonismo: se o que o homem percebe o engana e a ciência é a dona da verdade, o mundo fica novamente posto em dúvida e o cientista passa a ser o novo ‘iluminado’.
Se há, por um lado, o interesse político, econômico e ideológico na manutenção destes equívocos, há também, por outro, o interesse de muitas pessoas em usar esta confusão para não encararem sua situação singular, seja por não a suportarem, seja por não verem saída para ela ou por escolherem não alterá-la. Elas preferem ancorar-se em crenças ou mistificações, que lhe caem como um ‘sapato torto para um pé aleijado’ a superar seus impasses e problemas. Tais demarcações são necessárias, especialmente no trabalho em psicoterapia. O psicoterapeuta deve estar preparado para encontrar pessoas que terão sérias dificuldades em entender como os problemas psicológicos podem ser resolvidos cientificamente, como a realidade objetiva pode ser conhecida, como se pode ter segurança na percepção e na realidade, desdobramentos deste mistifório milenar que visa encobrir o avanço da ciência.
5.2 CIÊNCIA E ESTATÍSTICA
Outra confusão que se faz comumente é entre ‘ciência’ e ‘estatística’30. Como dito anteriormente, as Teorias e Leis Científicas estão baseadas nas regularidades dos fenômenos e estas regularidades não são obtidas por meio de estatísticas, mas da observação rigorosa do fenômeno. A ciência é experimetal, sempre que as condições de possibilidade de ocorrência do fenômeno acontecerem, o fenômeno se repete. Ao jogar sal num copo de água, o resultado será água salgada e não doce, não há exceção, não há margem de erro, é certo, preciso e é
30 “O que modernamente se conhece como Ciências Estatísticas, ou simplesmente Estatística, é um conjunto de técnicas e métodos de pesquisa que entre outros tópicos envolve o planejamento do experimento a ser realizado, a coleta qualificada dos dados, a inferência, o processamento, a análise e a disseminação das informações. (...) A Estatística tem por objetivo fornecer métodos e técnicas para lidarmos, racionalmente, com situações sujeitas a incertezas”. In: ESCOLA NACIONAL DE CIÊNCIAS ESTATÍSTICAS, diposnível em: <http://www.ence.ibge.gov.br/estatistica/default.asp>. Acesso em: 15 fev, 2006.
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possível predizer seu resultado. A estatística, diferentemente da ciência, parte de fatos isolados, tem portanto uma base empírica, mas trabalha tais dados de forma a recortar uma amostragem, que será o ‘universo estatístico’ e dali concluirá acerca de uma dada ‘população’. Em resumo:
Tabela 1 – Algumas diferenças entre Ciência e Estatística.
Ciência
Estatística
• Leis científicas são irrevogáveis e produzidas através da observação do fenômeno;
• Leis estatísticas dependem do momento;
• Leis científicas possibilitam verificar a dinâmica evolutiva dos fenômenos;
• Leis estatísticas possibilitam verificar tendências (propensão de um certo fato num dado momento);
• A verificação científica parte do fenômeno;
• A verificação estatística parte de amostras;
• É exata e precisa;
• Possuem margem de erro;
• Possibilita a predição e controle de resultados.
• Possibilita a previsão de resultados.
Convém demarcar que a estatística é um instrumento que produz estudos importantes, relevantes, corretos, rigorosos, mas, não por isso, científicos. Porquanto a estatística é muito usada pela ciência, a exemplo, as tecnologias de última geração que se valem de estatísticas sofisticadas em suas pesquisas. Ou na abertura de novos campos de pesquisa científica, como exemplo, o “peculiar caso das ‘prostitutas de Nairóbi’”31, em que as amostras estatísticas revelaram um grupo de prostitutas africanans que eram imunes ao vírus do HIV, mesmo tendo contato constante com portadores do vírus. Assim, é inegável a contribuição da estatística para a ciência e para o desenvolvimento científico, mas tratam-se de duas coisas distintas: ciência é ciência, estatística é estatística. Tal demarcação é importante por que há muitos ‘discursos’ que se utilizam de estatísticas como forma de comprovar sua ‘cientificidade’, principalmente na Psicologia.
31 SENADO FEDERAL, disponível em: <http://www.senado.gov.br/web/senador/tiaovian/online/TIAOnline/2003/fevereiro2003/24022003.htm> Acesso em: 19 fev, 2006.
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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo desta exposição buscou-se demarcar o que é ciência, como a ciência é uma racionalidade entre outras, como ela constituiu-se historicamente e como ela é produzida, bem como, quais as dificuldades que a Civilização Ocidental encontra para compreendê-la, até os dias de hoje.
Muitos equívocos e confusões foram criados para não permitir ao homem a compreensão adequada da Racionalidade Científica, como o conveniente equívoco do ‘engano dos sentidos’, que visa desqualificar as percepções empíricas, pois parte da concepção cartesiana e platônica de que há dois mundos, o mundo que vemos é o “mundo das sombras” e o “mundo real” não é alcançado pelos sentidos, mas pelas “idéias” ou “iluminações”. Tal discurso serve tanto para a manutenção do atual ‘estado das coisas’, como para algumas pessoas não encararem a realidade, muitas vezes insuportável ou conveniente.
Outro equívoco destacado é a confusão feita entre ‘ciência e estatística’, que visa travestir como ‘científico’ estudos empíricos ou discursos metafísicos. É preciso considerar a relevância da estatística como instrumento para o avanço técnico-científico, porém, ela pode ser utilizada por qualquer racionalidade, não sendo instrumento exclusivo da ciência, e muito menos, ‘sinônimo’ de ciência. É preciso ter claro todo este complexo contexto para trabalhar cientificamente, especialmente na Psicologia, área tão fértil para misticismos e confusões de todos os tipos.
O Século XX, face as evoluções teóricas e tecnológicas da ciência, foi determinante para sua consolidação, porém a luta contra a Racionalidade Científica também ganhou mais força e mais aliados. Com os estudos de Karl Marx e Friederich Engels acerca da sociedade capitalista inglesa, ficaram expostas cientificamente as engrenagens que sustentavam o capitalismo, pautada na exploração da força de trabalho, que transforma homens em mercadorias e, com isso, desmistificaram a justificativa das desigualdades sociais e econômicas sustentadas na meritocracia, na aristocracia, na elite, na noção de dom, de karma, de pagamento de pecado, entre outros, ou seja, em explicações metafísicas. Marx e Engels demonstraram que há pobres por haver ricos que se apropriam dos b
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