A Vingança De Sangue E A Díade Tradição-Renovação Cultural: Uma Análise Do Filme Abril Despedaçado À Luz Da Psicologia Social
Por: Aimberê Timbal • 22/11/2023 • Ensaio • 3.250 Palavras (13 Páginas) • 65 Visualizações
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RORAIMA
CENTRO DE EDUCAÇÃO – CEDUC
PSICOLOGIA
AIMBERÊ TIMBAL DE FREITAS RIBEIRO
VINGANÇA DE SANGUE E A DÍADE TRADIÇÃO-RENOVAÇÃO CULTURAL: UMA ANÁLISE DO FILME ABRIL DESPEDAÇADO À LUZ DA PSICOLOGIA SOCIAL
BOA VISTA – RR
2023
VINGANÇA DE SANGUE E A DÍADE TRADIÇÃO-RENOVAÇÃO CULTURAL: UMA ANÁLISE DO FILME ABRIL DESPEDAÇADO À LUZ DA PSICOLOGIA SOCIAL
Aimberê Timbal de Freitas Ribeiro
Por meio do filme Abril despedaçado, de Walter Salles, e das contribuições da Psicologia Social, o presente ensaio busca compreender os fenômenos envolvidos na díade tradição-renovação da vingança de sangue. Tal tradição, como se constatou, é comum a diversas culturas na história da humanidade, ganhando particularidade na obra de Salles, ao ser retratada através de uma guerra de famílias por terras no interior do nordeste, no início do século XX. Para tal análise recorreu-se às teorias e conceitos da Psicologia Social bem como à pesquisa bibliográfica acerca da obra audiovisual e do livro homônimo ao qual se baseou. De forma que a compreensão dos elementos sócio-culturais da tradição bem como os resultantes processos subjetivos de interiorização e transcendência da mesma, observados nos personagens, pudesse trazer luz aos fenômenos cotidianos, além tela.
Abril Despedaçado é um filme de 2001, dirigido por Walter Salles, uma adaptação livre do romance homônimo de Ismail Kadaré. As duas histórias, segundo Luz e Bussab (2004), repetiram-se inúmeras vezes nos registros da humanidade e tratam de um elemento comum a diversas culturas: os crimes de sangue. Segundo as autoras, tanto Tonho, no Nordeste brasileiro, como Gjorg, nos montes malditos do Norte da Albânia, são personagens do mesmo drama, destinados a vingar o sangue do parente morto e a ser assassinados, na sequência, pela família oponente. São partes de um ciclo infindável, geração após geração, em que os homens se matam por vingança, numa espécie de guerra privada com seus códigos e valores determinados.
Muitos são os povos, segundo Lima (2008), que têm impressos em suas histórias marcas dos crimes de sangue. De fato, antes de registros históricos, há relatos de mitos de vários lugares do mundo, de várias épocas, que contam histórias de vingança, estando tal tradição presente em importantes tradições culturais da história humana. Assim, segundo Brandão (1991), a crença na transmissão da falta, na solidariedade familiar e na hereditariedade do castigo é uma das mais enraizadas no espírito dos homens, sendo encontrada desde o Rig Veda até o Nordeste brasileiro, sob aspectos e nomes diversos. (apud LIMA, 2008) De forma que, até os dias de hoje, segundo Luz e Bussab (2004), duradouras brigas de família são ainda relativamente comuns em zonas rurais no Brasil.
Tanto o escritor quanto o cineasta articulam, em suas obras, tradições imemoriais de caráter universal às realidades histórico-sociais de seus respectivos países. De forma que, Kadaré aproveita-se desse tema para criar a sua tragédia erigida sob um longo ciclo de sangue situado nas montanhas albanesas. Enquanto Walter Salles traz o ciclo de sangue para o sertão brasileiro do período da decadência do ciclo da cana-de-açúcar, período marcado também por brigas de famílias que ocorriam de forma intensa no Nordeste. (LIMA, 2008)
Segundo Luís de Aguiar (1980) em Lutas de Família no Brasil, “a evolução das organizações sociais humanas parece ter-se feito de modo que a comunidade de sangue precedeu a comunidade de território” (p. 3, apud LUZ e BUSSAB, 2004; grifo meu). Isso quer dizer que: muito antes de toda a complexa estrutura social que se organiza em torno da ideia de cidade ter-se estabelecido, havia outro núcleo social, a família, cuja formação foi autossuficiente e deu as diretrizes básicas para o surgimento daquela.
No caso da formação da sociedade brasileira, esta supremacia do laço de sangue familiar associada a existência precária de um poder estatal supra familiar com autoridade e força suficientes para administrar a justiça, dificultada por nossa vasta extensão territorial, são, segundo Luz e Bussab (2004), determinantes para a instalação e a manutenção do dever da vendeta: uma espécie de justiça paralela, em que se apresenta uma solidariedade com os parentes de sangue, na medida em que expressa violência ao externo. De forma que: “Uma mera ofensa pessoal, um mal-entendido, até para não falar dos casos mais graves de disputas de terra, ou ainda o envolvimento com questões políticas, podem funcionar como estopins que desencadeiam nos clãs envolvidos verdadeira guerra privada.” (p. 212).
A Família Breves é um modelo de comunidade de sangue, sendo possível observar no filme diversos elementos que sustentam essa afirmação. Um destes é o caráter de autossuficiência da mesma: apesar da proximidade territorial com a família Ferreira, os Breves tentam viver de forma isolada do mundo. A família se organiza de forma tal a garantir o funcionamento e a existência da mesma a partir da colaboração e do apoio entre os membros. A metáfora de engrenagem da bolandeira que para quando um dos bois cai ao chão de cansaço, mostra que todos ali são essenciais para a sobrevivência da mesma. (FREITAS et al, 2016)
Uma das marcas da comunidade e, no caso da obra, a família como uma representante da comunidade de sangue, é a tradição: o conjunto de valores e hábitos típicos de um grupo que são passados transgeracionalmente (OBERG, 2018). Esta se encontra vinculada ao que a Psicologia Social denomina de Representação Social, que tendo como base a memória das gerações antecedentes – seus hábitos, sua história e seus valores – visa, através da linguagem, constituir a geração mais nova, formando a identidade, articulando processos de preconceito, e configurando o pensar e agir da mesma. (LANE, 1989) A tradição está vinculada, no caso da obra de Walter Salles, aos valores e costumes que permeiam as famílias Breves e Ferreira e que, ao serem passadas de geração para geração, garantem uma continuidade da forma de agir e pensar nos membros da família. O que dá continuidade a entre outras coisas: ao ciclo de vingança de sangue.
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