Quem Tem Medo Do Readymade?
Artigo: Quem Tem Medo Do Readymade?. Pesquise 862.000+ trabalhos acadêmicosPor: Soniaborges • 8/6/2012 • 2.247 Palavras (9 Páginas) • 760 Visualizações
Quem tem medo do ready-made? Psicanálise, interpretação e arte contemporânea
Sonia Borges
Tomei como referência para desenvolver este trabalho, a surpreendente definição da interpretação analítica proposta por Lacan, em 1974, em Roma, na conferência A terceira. Diante de uma grande platéia, para assombro de todos, ao desenvolver o tema da interpretação do sintoma, Lacan (1974/2005, p.58) faz a seguinte afirmação: “A interpretação deve se sempre o ready-made, Marcel Duchamp, que ao menos vocês ouçam disso alguma coisa, o essencial que há no jogo de palavras, é isso que a nossa interpretação deve visar para não ser aquela que alimenta o sentido do sintoma”. Com esta provocação, Lacan não só radicaliza a sua crítica à concepção hermenêutica de interpretação, como ratifica a ideia do equívoco como o seu paradigma: tal qual o ready-made, a interpretação deve apontar para os limites da representação ou da linguagem, para o impossível de se dizer a coisa, para o real.
Mas, o que é o ready-made, modelo para a interpretação? Segundo Pierre Cabane (2008), um dos mais importantes críticos da obra de Duchamp, este objeto-arte pode ser pensado como “uma janela para alguma outra coisa”. Não seria esta a função da interpretação?
Lacan diz de passagem que, embora o relacionem principalmente aos surrealistas, considera-se próximo do dadaísmo. O dadaísmo nasceu por volta de 1916 e congregou artistas plásticos, poetas e músicos que se rebelavam contra as ideias burguesas existenciais e estéticas então vigentes. Para isto, tinham como arma criações artísticas que veiculavam suas ideias pela via da ironia, da piada, do trocadilho.
Na esteira deste movimento, Marcel Duchamp, o artista mais discutido do século XX, inventou os ready-mades que, conforme Breton (1934,p.42), são “objetos manufaturados promovidos à dignidade de objetos de arte”
O mictório, ou “Fonte”, título que já produz equívoco, a Roda de bicicleta, o “Porta garrafa”, o pé “Tortura-Morte”, assim como muitas outras de suas criações, quando expostos em um dos principais museus de Nova York, provocaram uma subversão no campo das artes, cuja repercussão se estende até hoje, inclusive no que tange à crítica de arte. Isto certamente se deve à prodigiosa repercussão de seus efeitos coerentes com os objetivos do dadaísmo, a saber, a crítica ao que Duchamp chamou de “arte retiniana”, ou arte representacional, arte produzida conforme o modelo, então vigente, fundado na aliança entre arte, representação e racionalismo.
É esta subversão provocada por Duchamp no campo das artes o que é alvo de certa crítica que preconiza que suas obras, e a arte contemporânea de um modo geral, nem mesmo devam ser reconhecidas como arte. Duchamp, talvez pela radicalização de seu trabalho, vem sendo o mais atingido. No Brasil, intelectuais reconhecidos como Ferreira Goulart e Afonso Romano de Sant´Ana, entre outros, tecem constantes críticas a essa arte, mostrando verdadeira indignação frente ao trabalho de Duchamp e de outros artistas, mobilizados, talvez, pelo amplo movimento e sucesso, inclusive internacional, da arte contemporânea brasileira. Em seu livro Desconstruir Duchamp, Afonso Romano (2003, 116) afirma: “Passou-se a aceitar como arte tudo aquilo que o artista apresenta como obra de arte. Passou a valer a assinatura, a intenção. Daí o silogismo perverso: se tudo é arte, então nada é arte”. Como se pode observar, é justamente o que preconizavam os dadaístas, o que está no foco dessas críticas: o seu rompimento com a ideia clássica de arte como representação, que se expressa muito bem no dito de um deles - Richard Huelsenbek -: “O bom é que não se consegue, e provavelmente não se deve entender o Dádá”. (Densey,A.,p.157)
A posição apaixonada destes críticos não viria da velha resistência ao desconforto inegável que a falta dos significados estáveis nos traz? O que estaria em questão não seria a busca ansiosa pela explicação que mata a riqueza polissêmica e ambígua de nossas representações, palavras e imagens, quando direcionadas a um significado unívoco?
Com a referência ao ready-made, na Terceira, Lacan recomenda que o analista interprete “jogando com as palavras” de uma forma provocativa, capaz despertar o que o uso corrente do discurso ordinário adormece, evitando-se, assim, “engordar” o sintoma com significados. (p.94) Trata-se, em última análise, de ir além do deciframento dos significantes primordiais que instituíram o sujeito, retendo-o na posição de sofrimento. Deciframento que, no entanto, não está descartado na direção das análises, como procedimento que leva o sujeito a aceder a tais significantes que mostram a sua alienação ao dito, ou à demanda do Outro. Em A direção do tratamento e os princípios de seu poder, Lacan (1958/2005, p.640), afirma: “é de uma fala que suspenda a marca que o sujeito recebe do seu dito, e apenas dela, que poderia ser obtida a absolvição que devolveria seu desejo”.
Assim sendo, pode-se perguntar: o que se faz, então, numa análise, decifra-se, ou se cria a partir do que já está ali? As duas coisas, pode-se certamente responder. Decifrando-se, tem-se os efeitos de desalienação que, justamente, abrem as possibilidades para o processo criativo que se pode experimentar no trabalho analítico além do deciframento. Além do deciframento, porque esse é o ponto em que o significante não mais representa o sujeito para outro significante, mas o apresenta pela via de uma modalidade pulsional, a letra. Ponto ignorado pela ciência, já que para se fazer exige a transgressão de que só o fazer poético é capaz. O poético, que tomamos aqui no sentido grego do termo que, em uma de suas acepções, remete à criação, àquilo que se opõe a theoria enquanto contemplação, e à práxis como ação.
É com a poesia que Lacan, sobretudo a partir de 70, esclarece o que é o ato analítico, ressaltando que “a língua é fruto de uma maturação, de um amadurecimento de alguma coisa que se cristaliza no uso; já a poesia releva de uma violência feita a este uso” (Lacan, 1976-1977/2005, lição de 15/03/1977). A poesia, assim como toda arte, subsiste dessa violência que provoca na língua e, consequentemente, na cultura, transmutando o impossível em contingência. Quando Lacan recomenda que a interpretação produzida pelo ato analítico tenha efeito de equívoco, assim como o ready-made o tem sobre os espectadores nos museus, e até sobre os críticos, aponta para o seu necessário efeito de transgressão, travessia,
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