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Rubem Alves Filosofia da Ciência

Por:   •  14/2/2017  •  Artigo  •  7.486 Palavras (30 Páginas)  •  1.591 Visualizações

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Rubem Alves

Filosofia da Ciência

INTRODUÇÃO AO JOGO E SUAS REGRAS

Editora Brasiliense

1981


Nota do escaneador:

Este texto foi escaneado, corrigido e editado tendo como referência a edição de 1981. A numeração indicada no texto foi revista inclusive tendo como referência a edição de 2002 feita pela Editora Loyola. Aparentemente o autor desejou seguir uma numeração onde determinada seqüência não foi ou não devia ser seguida. Por exemplo, no Capítulo 2, salta-se de A.1 para E.1 e no Capítulo 11, salta-se o C.1.


Se um dançarino desse saltos muito altos, poderíamos admirá-lo. Mas se ele tentasse dar a impressão de poder voar, o riso seria seu merecido castigo, mesmo se ele fosse capaz, na verdade, de saltar mais alto que qualquer outro dançarino. Saltos são atos de seres essencialmente terrestres, que respeitam a força gravitacional da Terra, pois que o salto é algo momentâneo. Mas o vôo nos faz lembrar os seres emancipados das condições telúricas, um privilégio reservado para as criaturas aladas...”

Kierkegaard

(...) e sereis como Deus, conhecendo o bem e o mal.

Moto da comunidade científica, segundo mural do Massachusetts Institute of Technology


Para o Sérgio e o Marcos.

Que a ciência lhes seja alegre,

como empinar papagaios.


Sumário

Capítulo 1

O Senso Comum e a Ciência (I)

Capítulo 2

O Senso Comum e a Ciência (II)

Capítulo 3

Em Busca de Ordem

Capítulo 4

Modelos e Receitas

Capítulo 5

Decifrando Mensagens Cifradas

Capítulo 6

Pescadores e Anzóis

Capítulo 7

A Aposta

Capítulo 8

A Construção dos Fatos

Capítulo 9

A Imaginação

Capítulo 10

As Credenciais da Ciência

Capítulo 11

Verdade e Bondade


Capítulo I

O SENSO COMUM E A CIÊNCIA (I)

A ciência nada mais é que o senso comum refinado e disciplinado.

G. Myrdal

A.1 O que é que as pessoas comuns pensam quando as palavras ciência ou cientista são mencionadas? Faça você mesmo um exercício. Feche os olhos e veja que imagens vêm à sua mente.

A.2 As imagens mais comuns são as seguintes:

  • o gênio louco, que inventa coisas fantásticas;
  • o tipo excêntrico, ex-cêntrico, fora do centro, manso, distraído;
  • o indivíduo que pensa o tempo todo sobre fórmulas incompreensíveis ao comum dos mortais;
  • alguém que fala com autoridade, que sabe sobre que está falando, a quem os outros devem ouvir e ... obedecer.

A.3 Veja as imagens da ciência e do cientista que aparecem na televisão. Os agentes de propaganda não são bobos. Se eles usam tais imagens é porque eles sabem que elas são eficientes para desencadear decisões e comportamentos. É o que foi dito antes: cientista tem autoridade, sabe sobre o que está falando e os outros devem ouvi-lo e obedecê-lo. Daí que imagem de ciência e cientista pode e é usada para ajudar a vender cigarro. Veja, por exemplo, os novos tipos de cigarro, produzidos cientificamente. E os laboratórios, microscópios e cientistas de aventais imaculadamente brancos enchem os olhos e a cabeça dos telespectadores. E há cientistas que anunciam pasta de dente, remédios para caspa, varizes, e assim por diante.

A.4 O cientista virou um mito. E todo mito é perigoso, porque ele induz o comportamento e inibe o pensamento. Este é um dos resultados engraçados (e trágicos) da ciência. Se existe uma classe especializada em pensar de maneira correta (os cientistas), os outros indivíduos são liberados da obrigação de pensar e podem simplesmente fazer o que os cientistas mandam. Quando o médico lhe dá uma receita você faz perguntas? Sabe como os medicamentos funcionam? Será que você se pergunta se o médico sabe como os medicamentos funcionam? Ele manda, a gente compra e toma. Não pensamos. Obedecemos. Não precisamos pensar, porque acreditamos que há indivíduos especializados e competentes em pensar. Pagamos para que ele pense por nós. E depois ainda dizem por aí que vivemos em uma civilização científica... O que eu disse dos médicos você pode aplicar a tudo. Os economistas tomam decisões e temos de obedecer. Os engenheiros e urbanistas dizem como devem ser as nossas cidades, e assim acontece. Dizem que o álcool será a solução para que nossos automóveis continuem a trafegar, e a agricultura se altera para que a palavra dos técnicos se cumpra. Afinal de contas, para que serve a nossa cabeça? Ainda podemos pensar? Adianta pensar?

B.1 Antes de mais nada é necessário acabar com o mito de que o cientista é uma pessoa que pensa melhor do que as outras. O fato de uma pessoa ser muito boa para jogar xadrez não significa que ela seja mais inteligente do que os não-jogadores. Você pode ser um especialista em resolver quebra-cabeças. Isto não o torna mais capacitado na arte de pensar. Tocar piano (como tocar qualquer instrumento) é extremamente complicado. O pianista tem de dominar uma série de técnicas distintas oitavas, sextas, terças, trinados, legatos, staccatos e coordená-las, para que a execução ocorra de forma integrada e equilibrada. Imagine um pianista que resolva especializar-se (note bem esta palavra, um dos semideuses, mitos, ídolos da ciência!) na técnica dos trinados apenas. O que vai acontecer é que ele será capaz de fazer trinados como ninguém só que ele não será capaz de executar nenhuma música. Cientistas são como pianistas que resolveram especializar-se numa técnica só. Imagine as várias divisões da ciência física, química, biologia, psicologia, sociologia como técnicas especializadas. No início pensava-se que tais especializações produziriam, miraculosamente, uma sinfonia. Isto não ocorreu. O que ocorre, freqüentemente, é que cada músico é surdo para o que os outros estão tocando. Físicos não entendem os sociólogos, que não sabem traduzir as afirmações dos biólogos, que por sua vez não compreendem a linguagem da economia, e assim por diante.

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