O Operário Kantiano
Por: Tony Galvão • 7/3/2019 • Ensaio • 2.296 Palavras (10 Páginas) • 150 Visualizações
O operário kantiano
Introdução
Neste escrito procuramos discutir se o referencial ético Kantiano – o homem como um fim em si mesmo, um “escolhedor de si” - sobrevive ao mundo do trabalho. Tomamos como objeto de análise o trabalho em sua forma moderna e adotamos uma perspectiva crítica em relação às teorias organizacionais.
Servir-nos-á de guia uma personagem, Adroaldo, um filho de uma família pequeno-burguesa de um subúrbio do Recife que como tantos de nós cresceu ouvindo um renitente conselho de seu velho pai: “meu filho, estude com afinco para que no futuro consigas um bom emprego e, com esforço no trabalho, terás uma boa vida”.
Adroaldo teve sorte. Seu pai era apaixonado por literatura e filosofia e gostava de compartilhar com o filho as idéias que dos livros lhe brotavam. O pirralho ouvia as histórias do pai e pensava: “como pode alguém agir assim? O que leva alguém a agir dessa forma?”. Fazia a análise psicológica das personagens. Perscrutava sobre sua consciência moral. Sem saber.
Quando adolescente, Adroaldo quis beber nas primas fontes. Leu Machado e ficou abasbacado: Será que não há uma resposta óbvia pra nada neste mundo? Capitu traiu ou não traiu Bentinho[1]? Simão Bacamarte era mesmo “a bastilha da razão” ou um coitado alienista louco[2]? Descobriria mais tarde que a ética do universo Machadiano era relativista. Que o relativismo é uma doutrina inaugurada pelo filósofo sofista grego Protágoras há uns 2400 anos quando disse: “À maneira como as coisas parecem para mim, assim elas existem para mim. À maneira como as coisas parecem para ti, assim elas existem para ti”. Não existe verdade absoluta: o homem é a medida de todas as coisas (homo-mensura) e tudo é relativo. Adroaldo estudou lógica e descobriu que a doutrina relativista encerra uma autocontradição: Tudo é relativo, exceto a verdade absoluta de que tudo é relativo.
Nosso herói achava que, a fim de sobrevivermos, devemos admitir a existência de Verdades Universais: as leis humanas, as leis da natureza, as leis morais (particulares a cada sociedade) que regem as interações sociais. Convenceu-se de que o relativismo ficava muito bem na literatura, mas não seria um esteio confiável para as relações humanas reais.
Lembrou de seu pai ter falado alumbrado na saga de “Os Irmãos Karamazovi”[3], romance de Dostoievski considerado por Freud “a maior obra da história”. Leu. Conheceu a angústia niilista de Ivã, atormentado entre a razão atéia e o coração suplicante por um objeto de fé. O hedonismo egoísta e cego de Dimítri Karamazovi, o remorso que lancina. O altruísmo compassivo e místico de Alieksiéi. E a consciência atormentando a todos eles. A consciência: a remordida do imo-senso.[4]
Pensou que o medo do remorso poderia ser um bom guia para as ações humanas. Faça-se, então, aquilo de que não se possa arrepender. Mas, um dia leu Nietzsche e obnubilou-se. Será verdade? O remorso e a culpa cristã aproximam o homem do macaco e o afastam do ideal do super-homem? Apassivam? “Nenhum pastor, é só um rebanho! Todos querem o mesmo, todos são iguais: o que pensa de outro modo tende a ir para o manicômio”.[5] Foi ainda mais longe em suas reflexões: o que pode vir a me causar remorso pode não causar a ti: recaímos no relativismo.
Adroaldo encontra Kant
A mente de Adroaldo ansiava por uma perspectiva ética, um modelo de ação que, baseado na razão, pudesse justificar nosso agir no mundo através de um princípio, uma regra um imperativo universal que valesse para todos. Já sabia que não era utilitarista. Não admitia a idéia de que um ato pudesse ser julgado apenas por seu resultado ou por sua utilidade. No extremo uma tal doutrina justificaria o assassínio de uma fração da população de um país por um tirano, se a parte sobrevivente passasse a viver melhor que antes. As mortes teriam sido úteis, os que sobraram estariam felizes: ter-se-ia alcançado o bem-comum. Não, não podia ser assim. Queria mais. Queria algo dirigido não ao conteúdo do ato, à materialidade do ato; queria algo que apontasse para a sua origem, a vontade mesma do homem. Convenceu-se, então, de que só a vontade humana poderia merecer os qualificativos morais de bom ou mal. O que vale é a intenção.
Foi já com este espírito pré-moldado que adroaldo encontrou Kant. Pororocou. Tudo o que procurava estava ali. Em suas críticas, o filósofo alemão respondia fundamentadamente a todas as indagações daquele jovem. Da forma como ele queria ouvir: a razão era a única coisa inquestionavelmente comum a todos os homens e, portanto, era ela que devia ser a base para a ética; Uma moral racional é aquela que todos os seres racionais podem aceitar, sendo dever de todos agir segundo a razão; Que todo ato voluntário se apresenta à razão na forma de um mandamento, um imperativo; que este imperativo é categórico, incondicionado. Age-se por dever, não por necessidade, recompensa ou medo de ser castigado.
E Kant fez mais por Adroaldo. Deu-lhe uma lei moral universal: “age de maneira que possas querer que o motivo que te levou a agir seja uma lei universal”; mostrou-lhe que o primeiro fundamento da consciência moral é a liberdade da vontade. Se a vontade não for livre, então não há motivos para aplaudir nem censurar o ato praticado; Introduziu-o no reino das finalidades, um reino no qual seres idênticos porque racionais, se autodeterminam, escolhem como querem ser. Mas, ao mesmo tempo, querem agir conforme princípios que os demais aceitem. E a moral torna-se o resultado de um acordo entre seres racionais.[6] Nesse reino, todos os seres humanos têm uma dignidade, e não um preço, e por isso são fins em si mesmos. Adroaldo podia mesmo pensar numa placa colocada no pórtico do castelo do rei: Tratar as pessoas com respeito é tratá-las como fins em si mesmas. Era lá que queria morar.
O desencanto
Tal como Hércules, nosso herói também teve de trabalhar. Por necessidade. Tinha de sustentar a si e aos seus pais já idosos e de débil saúde. Confrontou-se com a idéia Kantiana de liberdade. Pensou: “se trabalho por necessidade, minha vontade não é livre. O grau de liberdade deve ser determinado não pela simples possibilidade de escolha (a escolha entre um ou outro emprego), mas pelo que pode ser escolhido pelo indivíduo. Não tenho o direito de escolher não trabalhar. Sou constrangido a trabalhar sob pena de impingir a mim e a minha família os sofrimentos da fome e da completa carência material”. Titubeou. Mas concluiu que a liberdade, neste caso, comprometeria a sobrevivência da espécie. Afinal, se universalizarmos a máxima todos somos livres e, portanto, podemos todos deixar de trabalhar, a humanidade correria o risco de extinção. Confortou-se e foi cuidar de arranjar emprego.
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