AS NORMAS DAS PESQUISAS QUALITATIVAS
Exames: AS NORMAS DAS PESQUISAS QUALITATIVAS. Pesquise 862.000+ trabalhos acadêmicosPor: • 5/11/2014 • 8.330 Palavras (34 Páginas) • 408 Visualizações
Considerações introdutórias
Tendo em vista os inúmeros acontecimentos ocorridos nos últimos tempos no campo do conhecimento, entre eles a crítica à racionalidade instrumental, o perspectivismo interpretativo e o movimento da virada para a linguagem, tem-se utilizado muito na educação a abordagem das pesquisas qualitativas. Trata-se de um modo de investigação surgido com o movimento de rejeição ao modelo positivista de produção do conhecimento, que se estende desde a fenomenologia, passando pela hermenêutica, à dialética em seus diferentes desdobramentos, tendo como objetivo principal apreender os fatores não considerados pelas pesquisas de ordem hipotético-dedutivas. Podemos dizer que as pesquisas qualitativas surgem com a certificação dos limites das pesquisas quantitativas, especialmente no que se refere às ciências sociais e humanas. Não há dúvida de que elas trouxeram muitos benefícios para a educação, pois foi por seu intermédio que passamos a considerar elementos não mensurados por meios matemáticos, como a subjetividade, os valores, os contextos, os sentimentos, as diferenças e as questões sociais e culturais, entre outros.
No entanto, a ampliação do leque de perspectivas de tratamento do objeto educacional não se fez acompanhar de um necessário aprofundamento teórico. Por isso existem no ambiente acadêmico algumas suspeitas de que a pesquisa qualitativa estaria contribuindo para que a educação se tornasse empobrecida, tendo em vista a sua falta de rigorosidade nas investigações. Essa preocupação também é compartilhada por Alves-Mazzotti (1991, p. 54), quando diz que muitos estudos ditos qualitativos não passam de relatos impressionistas e superficiais que pouco contribuem para a construção do conhecimento e/ou a mudança de práticas correntes. Brito e Leonardos (2001, p. 11) consideram que o seu desenvolvimento fora do paradigma hegemônico tenha provocado nessas pesquisas um sofrimento por sua precocidade. Nessa mesma linha de raciocínio, Moraes (2001) atenta para o fato de que a educação vive um momento de recuo da teoria; Mazzotti e Oliveira (2000) dizem, apoiados em Tardy, que se trata de uma debandada epistemológica; Flickinger (1998) afirma que falta à educação um consenso em torno de um paradigma epistemológico; e Charlot (2006) enuncia que a educação vive uma crise de identidade.
Muitos são os dilemas e incertezas que têm desencadeado tais descontentamentos, mas com certeza a má condução das pesquisas qualitativas na educação aparece como um dos fatores predominantes, os quais a têm transformado por vezes mais num palco de lutas autodestrutivas do que propriamente num ambiente de saudável convívio democrático.
A contestação reside na desconfiança de que esse modelo investigativo estaria demonstrando dificuldades em ir além daquilo que seria uma mera interpretação imediatista da realidade, tornando-se mais descritora do óbvio do que investigadora científica. Agindo dessa maneira, as denominadas pesquisas qualitativas apresentam-se com um nível de cientificidade baixo, às vezes nulo. Não precisamos grandes esforços para verificar essa situação, pois ela é facilmente identificável nos arquivos de monografias, dissertações e teses das bibliotecas das universidades. Perguntamos: Esses fenômenos que minimizam a confiabilidade das pesquisas se devem a uma tendência natural de declínio em sua curva evolutiva ou existe aí um deficit cognitivo de sua compreensão? O estado de coisas vigente não resulta de uma compreensão descomprometida daquilo que de fato caracteriza historicamente as pesquisas qualitativas? Essa aproximação com o senso comum1 pode ser interpretada como uma simples decadência de sua história ou existem positividades nesse processo? Tais questionamentos estão baseados naquilo que conhecemos das abordagens qualitativas de pesquisas em seus pilares básicos, que em nenhum momento defendem a rendição ao simples caráter exploratório ou descritivo dos fatos. Até porque essa redução do conceito foi operada pela ciência moderna, a qual construiu-se contra o senso comum que considera superficial, ilusório e falso (Santos, 2006, p. 88). Não queremos dizer com isso que o senso comum deva ser abandonado, como objetivou Platão, ou a própria modernidade científica, e muito menos esconder o seu caráter conservador. Porém, mais do que isso, acreditamos que ele é também um horizonte de sentido, sendo então necessário oportunizar a ampliação da sua dimensão utópica e libertadora [...] através do diálogo com o conhecimento científico (idem, p. 99). Dado então que a sua aproximação com o senso comum não as tornaria, em princípio, improdutivas, antes pelo contrário, serve-lhes de apoio, como uma RESERVA de energias que enriquece o seu acontecer, entendemos que as pesquisas qualitativas parecem não estar realizando esse diálogo adequadamente.
Buscamos responder a essas questões de que as pesquisas qualitativas em educação não se estão desenvolvendo de forma coerente com os seus embasamentos, precisando urgentemente de um conhecimento mais aprofundado de seus objetivos, a partir de uma reflexão embasada na racionalidade comunicativa, tendo em vista a possibilidade de lidar com problemas a partir da comunicação entre os pesquisadores das diferentes perspectivas teóricas (Devechi, 2008, p. 186), ou seja, não é nossa pretensão sugerir uma verdade para o campo da pesquisa em educação, o que representaria uma aspiração por uma posição indubitável e não sujeita a qualquer tipo de revisão crítica, mas justamente reforçar a possibilidade de existência das diferentes abordagens pelo procedimento comunicativo, revertendo assim diversos problemas ocasionados pela fragmentação das investigações. É uma proposta que se coloca como uma importante intercorrência para reverter a situação dissociada das perspectivas teóricas em favor de um empenho do discurso intersubjetivo no tratamento de problemas (idem, ibidem). Até porque a perspectiva que adotamos sobre as pesquisas qualitativas é a defesa de seu caráter inevitavelmente posicionado, dada a abolição da neutralidade positivista, o que não significa compactuar com um comportamento dogmático.
Acreditamos, assim, que a hermenêutica reconstrutiva proposta do ponto de vista da racionalidade comunicativa pode contribuir para explicitar os limites e possibilidade dos elementos que dão base aos fundamentos epistemológicos e ontológicos de cada abordagem. A partir de um horizonte comum, como lugar de fala ou possibilidade de aproximação das diversas abordagens teóricas, é possível superar as ambiguidades das discussões que acabam criando mais um clima de animosidade do que, convenientemente, de concertamento. Na medida em que compreendemos as abordagens qualitativas para além dos seus detalhamentos, portanto, a partir de enfoques fundamentadores, podemos fazer a sua associação com o mundo da vida, ultrapassando desse modo a compreensão negativa que poderia provocar a sua relação equivocada com o senso comum.
O significado das abordagens qualitativas
As abordagens qualitativas surgem na educação como consequência das críticas às abordagens quantitativas, em que tudo era explicado pelo uso de medidas, de procedimentos estatísticos, de testes padronizados e codificados por sistemas numéricos. Nessas abordagens, a finalidade da investigação (educativa) consistia, como nas ciências naturais, em ascender ao conhecimento de regularidades que, funcionando como leis, poderiam aplicar-se à prática (educativa) com o objetivo de melhorar a eficácia dela. Elas defendem, assim, a neutralidade do pesquisador diante dos fatos e da unidade do método, ou seja, propõem o transporte dos princípios e regularidades das ciências da natureza para o interior das ciências humanas. Além disso, preconizam que o tipo de conhecimento correto é o conhecimento científico provado, desmerecendo qualquer outro tipo de conhecimento como pré ou anticientífico. Cândida Moraes (1997, p. 79) constata, inclusive, que cada ciência passou então a criar sua própria metodologia com base nesse referencial. Resumidamente, segundo esse estudo, as principais características do método empírico-quantitativo são: busca os fatos ou as causas, prestando pouca atenção aos estudos subjetivos ou interativos; é objetivo, excluindo os valores, orientado à comprovação; é reducionista, inferencial, hipotético e dedutivo; almeja resultados que podem ser generalizados, utilizando metodologia estatística; é fragmentado, aleatório e não leva em consideração o contexto; em síntese, é considerado um método escondido atrás de dados metodologicamente exatos.
As pesquisas qualitativas aparecem para dar conta do lado não perceptível e não captável apenas por equações, médias e estatísticas; emergem para mostrar que o procedimento fundamentado apenas na matemática era insuficiente para pensar a formação do sujeito social que se relaciona com os outros e com o mundo. Na perspectiva de Alves-Mazzotti (1991, p. 55), essa transição se torna mais clara, pois, segundo sua avaliação, enquanto os positivistas buscam independência entre sujeito e objeto e neutralidade no processo de investigação, para os qualitativos conhecedor e conhecido estão sempre em interação. A ideia, então, de que o conhecimento educacional é resultado da descoberta medida do objeto de estudos e de que o sujeito era apenas o elemento de sua representação na realidade torna-se insustentável.
As pesquisas qualitativas surgem, portanto, como forma de evitar o tecnicismo e o reducionismo lógico-formal nas investigações educacionais em favor da recuperação da subjetividade. O diferencial das pesquisas qualitativas está relacionado com a inclusão da subjetividade; não é possível pensá-las sem a participação do sujeito. São qualitativas porque o conhecimento não é indiferente; porque não existe relato ou descrição da realidade que não se refira a um sujeito. Ainda de acordo com Cândida Moraes (1997), as pesquisas qualitativas contribuíram para o surgimento do novo paradigma da educação, cujas principais ideias são: integração do qualitativo ao quantificável; totalidade indivisa; visão sistêmica, ecológica, interativa e indeterminada; defesa da reintegração do sujeito e do conhecimento em processo; a percepção das conexões e do significado do contexto; conhecimento em rede e a educação como um sistema aberto.
A seguir, pretendemos identificar diferentes tipos de abordagens qualitativas, procurando tratar, por questões de delimitação teórica e didática, apenas daquelas que parecem ter maior vitalidade na educação atual: as fenomenológico-hermenêuticas (na linha de Husserl, Heidegger e Gadamer), as crítico-dialéticas (seguindo Karl Marx, Lukács e A. Gramsci) e as hermenêutico-reconstrutivistas (de Apel, Habermas e Honneth). É claro que qualquer tentativa de síntese ou de classificação envolvendo a produção de autores tão complexos como esses e respectivas correntes teóricas, as quais se entrecruzam muitas vezes, é sempre suscetível da acusação de arbitrariedade. De outra maneira, nossa intenção é apenas apresentar algumas balizas que auxiliem a compreender e explicitar seus supostos epistemológicos e ontológicos do ponto de vista de uma racionalidade comunicativa.
Características das diferentes abordagens qualitativas
Nas abordagens fenomenológico-hermenêuticas, o sujeito aparece como intérprete do objeto. As pesquisas buscam desvendar ou decodificar subjetivamente os pressupostos implícitos nos textos, nos discursos e nas comunicações. Elas levam à consciência a posição do sujeito que interpreta, oferecendo o significado pela manifestação dos textos em seus contextos históricos. Segundo Hermann (2003, p. 16), tais abordagens tematizam a compreensão da experiência humana no mundo, que desde já se dá interpretado. Elas instauram o sentido que surge no próprio diálogo do intérprete com o mundo. É desse modo que Gamboa (1995, p. 94) compreende que
[...] o processo exige o comando do intérprete que assume a subjetividade fundante do sentido, a interpretação (hermenêutica) dos fenômenos, recuperando os significados, o sentido ou vários sentidos (polissemia) dentro de seus contextos de significação (horizontes de compreensão).
O sujeito é sempre confrontado com o objeto, ele o interpreta no sentido do contexto, buscando compreendê-lo a partir do momento histórico em que o mesmo ocorre. A fenomenologia husserliana, por exemplo, procurou deixar claro que nós só temos acesso ao mundo objetivo através das nossas vivências. A investigação sobre o mundo tende sempre a se voltar para sua índole enquanto vivido, isto é, ao mundo pessoal das experiências, e não a um ente neutro independentemente do sujeito que poderia ser acessado como tal.
Ainda de acordo com Hermann (2003, p. 16), tal abordagem se opõe ao mito do objetivismo, isto é, à crença em uma verdade objetiva que corresponde a uma realidade também objetiva, trazendo a perspectiva de interpretar, da produção de sentido e da impossibilidade de separar o sujeito do mundo objetivado. Dessa maneira, a crítica à existência do mundo objetivo, independentemente de nossas vivências, não vai desembocar na abolição de posicionamentos dos diversos sujeitos envolvidos na discussão. Pelo contrário, para essas pesquisas há um reforço da perspectiva do sujeito inevitavelmente envolvido com um mundo visto como inacabado, e por isso o conhecimento é dinâmico e em processo de decodificação constante. É assim que Gadamer propõe a compreensão da hermenêutica num processo de diferenciação entre o método (científico) e a verdade, ou seja, ele não acredita na via metodológica estabelecida com passos previamente estipulados, como no caso do procedimento científico. Ele destaca a liberdade e a responsabilidade individual na interpretação dos supostos implícitos nos discursos. Os significados são apreendidos pelo sujeito; este é quem tem a obrigação de compreender da melhor forma possível o objeto da investigação. Podemos dizer que o compromisso da hermenêutica é com a subjetividade linguística capaz de discernimento entre o certo e o errado, o bom e o mau, a partir daquilo que a sua relação com o objeto suposto, em seu contexto histórico, oferece. Conhecer, nessa perspectiva, é compreender a partir da experiência linguística em um determinado contexto de acontecimento, portanto.
Se não é objetivo das abordagens fenomenológico-hermenêuticas alcançar um saber seguro por meio de métodos científicos, isso não significa que elas não busquem a verdade. Para Gadamer, segundo a apreciação de Stein (1987, p. 113), o que é compreendido na compreensão é verdade, a qual ultrapassa a esfera do conhecimento metódico. Tanto na perspectiva de Gadamer, quanto na de Heidegger, temos a hermenêutica como recuperação de sentido; dessa forma, o sujeito alcança a significação pela ocupação de um lugar determinado na história, ou seja, não se trata de um método científico no sentido moderno, mas de um caminho do pensamento afundado na dinâmica histórica. O intérprete não pode escapar da história, pois esta é a condição da verdade. A hermenêutica preocupa-se, nesse universo de discussão, com a alteridade que está na linguagem e nas tradições. É o outro, diferente e estranho, que causa o phatos, o assombro que leva à curiosidade do compreender. O limite do compreender hermenêutico é dado por aquilo que se deixa observar sob determinada perspectiva, aquilo que é visível a partir de um determinado ponto, sendo a experiência linguística a possibilitadora do reconhecimento do real.
As investigações, nessas abordagens, utilizam, entre outras, metodologias e técnicas de pesquisa como questionário, entrevista, observação participante, narração, história de vida, estudo de caso, etnografia, pesquisa participante e pesquisa-ação. Na pesquisa-ação, por exemplo,
[...] trata-se, por excelência, de reconhecer o pleno emprego das forças subjetivas – como afirma Edgar Morin a propósito de seu próprio método de pesquisa (a simpatia, a convivibilidade, o viver com) –, isto é, estar o mais possível dentro dos efeitos de emergência e de auto-organização da complexidade do mundo. (Barbier, 2002, p. 86)
A tarefa é, portanto, vivenciar, pela interpretação, os significados possíveis estabelecidos no diálogo com o mundo.
Nas abordagens crítico-dialéticas, o sujeito aparece como elemento que se contrapõe ao objeto e vice-versa. As pesquisas dessas abordagens desenvolvem-se por um caráter conflitivo, manifestam interesse transformador da realidade. Cabe ao sujeito perceber a contradição com o objeto, num primeiro momento, no sentido de alcançar uma síntese posterior entre um e outro. O mundo é visto nos seus aspectos de interesses antagônicos e em construção. Faz parte dessas abordagens uma práxis transformadora dos homens como agentes históricos, mas essa práxis deve ser científica e historicamente embasada. Sobre esses aspectos da dialética, escreve Bottomore (1988, p. 104):
[...] a dialética de Marx é científica porque explica as contradições do pensamento e as crises da vida socioeconômica em termos das relações essenciais, contraditórias e particulares que as geram (dialética ontológica). E a dialética de Marx é histórica porque a mesma tem raízes nas – e é (condicionalmente) um agente das – mudanças nas relações e circunstâncias que descreve (dialética relacional).
Os significados resultam da superação dos conflitos entre o sujeito e o objeto, estando o caráter crítico na relação entre eles. Apreendem não só o contexto, mas o conjunto, a coletividade, o todo. Podemos dizer que tais abordagens resgatam o caráter relacional entre o todo e a parte no processo de produção do conhecimento.
Uma pesquisa crítico-dialética requer do pesquisador uma postura histórico-social em relação ao objeto investigado. O pesquisador desenvolve uma relação dinâmica, em que tanto ele como o próprio objeto podem sofrer transformação ao longo do processo de investigação. O conhecimento é resultado da contradição entre o pesquisador e o objeto pesquisado (sociedade), na medida em que essa relação pode ser mediada pelas categorias da reificação ou alienação e da ideologia. É assim que ela se destaca pelo dinamismo da práxis transformadora dos sujeitos históricos que percebem a influência da reificação em suas vidas, ou seja, o fato de uma relação entre pessoas tomar o caráter de uma coisa (Lukács, 2003, p. 194). A partir de um princípio de movimento, o sujeito e o objeto modificam-se e complementam-se. A síntese é considerada a superação de níveis de um mesmo processo em que é admitida a contradição entre os opostos e a passagem de um para ou outro (Gamboa, 1995, p.108). Trata-se de uma relação dinâmica em que não há prioridade entre o sujeito e o mundo; ambos são participantes de um único processo, sendo o conhecimento a síntese resultante do todo. Tal abordagem associa a origem objetiva do conhecimento das ciências empírico-analíticas com a interpretação fenomenológica-hermenêutica, pretendendo a superação de ambas. Ela considera, desse modo, o movimento transformador como elemento epistemológico fundamental para encetar a passagem em direção a um nível mais qualificado de interpretação da realidade, na medida em que desvela nesse processo os significados político-sociais e ideológicos. Tratando dessa abordagem, Gamboa (1991, p. 101) diz que
[...] a produção científica é uma construção que serve de mediação entre o homem e a natureza, uma forma desenvolvida da relação ativa entre o sujeito e o objeto, na qual o homem, como sujeito, veicula a teoria e a prática, o pensar e agir, num processo cognitivo-transformador da natureza.
A pesquisa é vista como prática social que apreende as determinações econômicas, sociais e políticas, sendo a possibilidade de desvelar as contradições a causa responsável pelas mudanças sociais. Sendo assim, a atitude do pesquisador dialético não é a de um sujeito cognoscente que simplesmente examina objetos, mas de um sujeito que age objetiva e praticamente a partir das condições que o rodeiam. Assim como as abordagens fenomenológico-hermenêuticas, elas se utilizam de diversos dispositivos metodológicos e de técnicas como questionário, entrevista, narração, história de vida, pesquisa participante e etnográfica e da pesquisa-ação.
As abordagens hermenêutico-reconstrutivistas surgem no campo da educação no sentido de transcender os problemas apontados pelas críticas realizadas às abordagens anteriores. Elas parecem emergir no sentido de dar conta das contestações às abordagens fenomenológico-hermenêuticas no que se refere à atribuição dos significados ao intérprete, sem possibilidade de crítica ou validação externa; e às abordagens crítico-dialéticas no que se refere à contenção na leitura crítica da realidade social, não oferecendo possibilidade de solução aos problemas práticos enfrentados pela educação, a não ser na configuração de uma nova visão de sociedade. As abordagens hermenêutico-reconstrutivistas colocam-se como uma espécie de síntese de elementos positivos das precedentes, aproveitando os aspectos críticos e evolutivos das dialéticas e a preocupação com as categorias contexto, mundo da vida e compreensão das fenomenológico-hermenêuticas; é por esse motivo que alguns autores a consideram como hermenêutica crítica. Para elas, o sujeito é comunicativo e objetiva o consenso. Os significados resultam dos acordos construídos pragmaticamente por uma comunidade de argumentação, estando o caráter crítico na aceitação ou não das pretensões de validade do declarante. As pesquisas dessas abordagens desenvolvem-se pelo descentramento do sujeito, na medida em que o ego precisa agora se justificar para um alter. O outro passa a ser, assim, a categoria central das pesquisas, e por isso essas investigações surgem como reação à hermenêutica tradicional (que vai de Schleiermacher, Dilthey e Heidegger até chegar ao próprio Gadamer), dado que esta havia subsumido o outro na tradição. De outra maneira, ela é fiel nesse ponto aos pressupostos da crítica por meios comunicativos, como consciência aguda de negação da alteridade, sejam minorias exploradas, movimentos sociais, povos que lutam pela sua independência e os diferentes.
Sendo assim, enquanto a hermenêutica tradicional identifica a tradição com o conhecimento, limitando as possibilidades do compreender, ela propõe uma hermenêutica que se utiliza do processo de reflexão crítica. Compreende igualmente que a hermenêutica não deve ficar presa na substancialidade que o texto determina, e sim constatar e romper com as possíveis determinações por processos reflexivos. Nesse sentido, Habermas (2004, p. 100) diz que a atitude reflexiva com relação aos proferimentos próprios efetua-se segundo o modelo da atitude que outros participantes assumem com relação à validade problemática de seus proferimentos. A tradição só garante, então, continuidade de um ponto de vista crítico, isto é, depois de passar pelo crivo do intérprete situado no contexto histórico atual. Os indivíduos passam então a entender a comunicação por esse caminho, não mais por intermédio do jogo de linguagem construído de forma solitária ou monológica, mas pelo seguimento de pretensões de validade que devem ser aceitas no discurso. Outra diferença em relação à hermenêutica tradicional está no fato de que as abordagens reconstrutivistas não dispensam a questão do método nas ciências humanas, mas apostam na sua recolocação no processo intersubjetivo. É nesse sentido a observação de Stein (1987, p. 114), quando refere que Habermas, embora reconhecendo [...] o alcance da hermenêutica, teme que sua autossuficiência ontológica (herança heideggeriana do pensamento de Gadamer) a afaste do debate relevante com as questões do método nas ciências.
Essa abordagem também se contrapõe às concepções crítico-dialéticas, na medida em que estas compreendem o processo histórico como resultado de forças sociais e econômicas e a evolução social independentemente, muitas vezes, da aprendizagem dos sujeitos envolvidos no processo. Habermas, por exemplo, propõe a instância da aprendizagem crítica como limite tanto do compreender hermenêutico quanto do dialético, incorporando as contribuições da pragmática formal da linguagem. Isso significa dizer, conforme argumenta Oliveira (1996, p. 13),
[...] que a pergunta pelas condições de possibilidades do conhecimento confiável, que caracterizou toda a Filosofia moderna, se transformou na pergunta pelas condições de possibilidade de sentenças intersubjetivamente válidas a respeito do mundo. [...] A linguagem é o espaço de expressividade do mundo, a instância de articulação de sua inteligibilidade.
Assim, o giro da linguagem é entendido nessas pesquisas como uma virada da discussão em direção ao outro, como saída da centralidade do si mesmo ou da autoconsciência de si absolutizada no sistema hegeliano. A tese do reconhecimento do outro (Honneth, 2003) passa a ser o vetor em todas as instâncias pesquisadas. E isso ocorre porque o pesquisador deve ter como pressuposto a análise das crenças pela aceitação pública, como voz a ser levada em consideração em todas as decisões da vida pública. Tais abordagens apanham não só o contexto, mas uma ideia de universalidade, ou seja, o conhecimento é acordado diante dos interesses gerais, porém sempre suscetível de falibilidade.
Há um télos presente na linguagem que garante a comunicação através da instância performativa voltada ao entendimento mútuo. A racionalidade comunicativa remonta à experiência de gerar consenso, sem coações; consenso em que diversos participantes superam a subjetividade inicial de seus respectivos pontos de vista e, graças a uma comunidade de convicções racionalmente motivada, asseguram a unidade do mundo objetivo e a intersubjetividade do contexto em que desenvolvem suas vidas.
Assim como Habermas, Apel pressupõe a investigação como uma tarefa essencialmente reflexiva, em que sujeitos dotados de competências linguísticas e comunicativas objetivam alcançar o consenso sobre algo no mundo. Os intérpretes comunicativos precisam ter consigo o contexto da investigação como um saber comum, apreendendo as validades a partir da aceitabilidade dos enunciados argumentativos. É nesse espírito que Apel (2000, p. 384) afirma que o pré-entendimento linguístico do mundo deveria partir do acordo mútuo quanto ao sentido, como conquista de uma comunidade de comunicação. Tal antecipação é o que permitirá a formação crítica do consenso que oferece validades. Já para Habermas (1987, p. 88), trata-se de um horizonte de processo de entendimento, com o qual os participantes concordam ou discordam sobre algo num único mundo objetivo, num mundo social comum a eles ou em um mundo sempre subjetivo.
A hermenêutica reconstrutiva busca ir além dos propósitos da hermenêutica tradicional, porque busca não só compreender, mas validar as ações linguísticas diante do mundo comum a todos. Ainda segundo Habermas (idem, p. 94), compreender uma manifestação simbólica significa saber sob que condições sua pretensão de validade poderia ser aceita. É nesse caminho que segue também a reflexão de Honneth, na medida em que tenta retomar as contribuições da teoria do reconhecimento, de Hegel, no contexto de predomínio do pensamento científico. Segundo o testemunho de Mattos (2006, p. 87),
[...] como Honneth se propõe a desenvolver uma sociologia do reconhecimento, faz-se necessário comprovar empiricamente como ocorre o processo de reconhecimento em suas diferentes dimensões, o que Hegel só fez abstrata e metafisicamente. A intenção de Honneth é desenvolver uma perspectiva aberta às modernas ciências empíricas, notadamente, à sociologia.
Assim, a interpretação nesse outro momento não pode ficar presa ao texto como simples aplicação do sentido, como se fazia na exegese dogmática dos textos clássicos, mas deve apreender a conexão entre compreensão e validade. Diz Habermas (idem, p. 95) nesse sentido que uma mera aplicação fica devendo a correspondência dialógica, porque uma pretensão só pode ser reconhecida como pretensão de validade num discurso. Pois uma pretensão de validade contém a afirmação de que algo é digno de ser reconhecido. É por isso que essa abordagem se caracteriza pelo descentramento do sujeito justificado diante do outro, o qual tem a tarefa de aceitar ou não as pretensões de validade do discurso. O pesquisador pauta o seu agir segundo o pressuposto de análise das crenças pela aceitação pública, sendo o seu télos o acordo racionalmente motivado. O particularismo da abertura linguística associa-se à validade universal permitida pelo consenso.
Essa perspectiva permite repensar o conhecimento a partir do processo de busca do entendimento mútuo, no qual pretensões de validades são reconhecidas intersubjetivamente, sendo o mundo objetivo entendido como suposição, à qual os sujeitos linguísticos se referem ao se comunicar e ao estabelecer relações práticas com algo no próprio mundo. O mundo objetivo é visto aqui como referência para tudo que nele poderia ser encontrado. Habermas (2004, p. 86) diz a esse respeito que, como Humboldt já o vira, é inerente à conversação uma referência objetiva, na qual se estabelece uma conexão interna entre o sentido e a verdade possível do que se diz. Trata-se de uma forma de impedir a compreensão intencionalista do significado, apanhando a validade universal necessária às ações do mesmo mundo. Em síntese, o pesquisador assumir-se-ia como sujeito reflexivo-comunicativo que busca o entendimento no mundo que é habitado por todos.
Sendo essa uma abordagem emergente, ela encontra ainda muitas dificuldades para se fazer valer no contexto da educação, principalmente a resistência a compreender a realidade pelo viés da linguagem e a ideia de que o consenso poderia reviver o terror racionalista do conceito. Além disso, o próprio Axel Honneth, discípulo direto de Habermas, tem feito recentemente sérias críticas a toda a trajetória da teoria crítica, acusando-a de um deficit sociológico, o que põe em dúvida um pensamento que nem chegou a se firmar. Por isso, essa abordagem se encontra diluída em várias metodologias e técnicas de pesquisa e não está, portanto, formatada de todo, por conseguinte, necessitando-se consolidar. Em princípio, elas poderiam ser as mesmas das abordagens fenomenológico-hermenêuticas e das crítico-dialéticas; o que muda seria o tratamento dos dados, o qual objetivaria, sempre, a validade diante do outro e do todo maior.
Assim sendo, a diferença entre uma abordagem qualitativa e outra está na posição do sujeito e na compreensão do objeto. Para a abordagem fenomenológico-hermenêutica, o sujeito está no centro da relação sujeito-objeto, ou seja, ela propõe uma redescoberta do sujeito diante da ilusão da objetividade preconizada pelo positivismo, sendo o objeto uma qualificação do processo de interpretação. Para as abordagens crítico-dialéticas, não existe centralização, o sujeito e o objeto possuem o mesmo peso de importância para o conhecimento, sendo o objeto um elemento ontológico. Já para as abordagens hermenêutico-reconstrutivas, a centralização está nas relações entre os sujeitos (sujeito-sujeito), sendo o objeto uma suposição acordada sobre o mundo objetivo.
A ausência de rigorosidade nas pesquisas qualitativas
Como dissemos antes, as pesquisas qualitativas têm sido objeto de muitas discussões do campo educacional, já que ele se tem demonstrado cada vez mais carente de análise, preso por vezes a interpretações imediatistas e superficiais. Tais pesquisas parecem estar distantes da legitimidade que exige uma pesquisa acadêmica, o que tem desencadeado o empobrecimento da educação, sendo percebido e denunciado por diferentes autores da área.
Gatti (2007, p. 29) diz que o problema da falta de rigorosidade da pesquisa qualitativa pode estar na compreensão de que ela é contrária à PESQUISA QUANTITATIVA; é nesse sentido o seu comentário:
[...] é preciso considerar que os conceitos de quantidade e qualidade não são totalmente dissociados, na medida em que de um lado a quantidade é uma interpretação, uma tradução, um significado atribuído à grandeza com que um fenômeno se manifesta (portanto, é uma qualificação dessa grandeza), e de outro ela precisa ser interpretada qualitativamente, pois, sem relação a algum referencial, não tem significação em si.
Não vamos, nos limites deste artigo, oferecer um tratamento teórico suficiente para a chamada falsa dicotomia estabelecida na educação entre as abordagens qualitativas e quantitativas, pois existe bibliografia bem abalizada sobre o assunto (Santos Filho & Gamboa, 1995; Gatti, 2007; Alves-Mazzotti, 1991). Nosso propósito é apenas discutir a hipótese de compreensão, concordando com o diagnóstico desses autores, de que o surgimento das abordagens qualitativas na educação não significa um encontro com a qualidade e um abandono do quantitativo, mas um acréscimo mediado pela reflexão de um elemento a outro. Concordamos com alguns argumentos de que o não entendimento da associação das abordagens qualitativas com as quantitativas é o que tem permitido o desenvolvimento de pesquisas carentes de cientificidade. Porém, ao contrário do que se pensa, muitas vezes o quantitativo está presente nas pesquisas qualitativas, com maior ou menor intensidade, constituindo um importante elemento para as pesquisas científicas. Segundo Alves-Mazzotti (1991, p. 54), a pesquisa qualitativa tem o inconveniente de sugerir uma falsa oposição entre qualitativo e quantitativo, a qual deve, de início, ser descartada: a questão é de ênfase e não de exclusividade. Tal é o motivo pelo qual buscamos esclarecimento. No entanto, acreditamos que o problema maior esteja no deficit de compreensão do que significa a pesquisa qualitativa em seus embasamentos teóricos.
Ora, uma pesquisa qualitativa em educação não pode ser dependente das inspirações intuitivas e espontâneas, deve necessariamente apreender um caminho metodológico que garanta a legitimidade do processo. Para a escolha correta do TIPO DE PESQUISA, métodos e instrumentos ou técnicas de pesquisa, é necessário apreender uma concepção teórica que ofereça visão de conhecimento, de história, de homem e de mundo. Afinal, o pesquisador qualitativo precisa planejar seu estudo de modo a obter credibilidade, transferibilidade, consistência e confirmabilidade (idem, p. 61). Tais exigências garantirão a rigorosidade enquanto pesquisa científica. Procuramos mostrar que os problemas oriundos da falta de rigorosidade das pesquisas desenvolvidas na educação não estão nas abordagens qualitativas, mas na apropriação descuidada dessas abordagens. Parece existir aí um esquecimento do objeto, como perda do conteúdo da crítica, ou seja, do chamado exame crítico da sociedade em geral, dos seus aspectos econômicos, políticos, ideológicos, como se fosse possível realizar pesquisas científicas da realidade vazia. É um modo do esquecimento de fazer a crítica daquilo que Adorno declarava como responsável pela perda do processo de individuação do sujeito, produzindo irracionalidades e comportamentos de massa. Ou então poderia ser um afastamento daquilo que significava, mesmo para Habermas, o elemento fundamental de questionamento à racionalidade ocidental, na medida em que ela se fechou num monismo metodológico impróprio e esqueceu de dialogar com o mundo da vida. Em consequência, as pesquisas têm caído, em alguns casos, na banalização e são conduzidas com precariedade, porque não há um seguimento das abordagens no seu sentido fundamental. A título de correção dessas distorções, observam-se, por vezes, algumas posturas que se voltam contra a esfera das discussões de fundamentação das investigações. Porém, de nosso ponto de vista, não são as abordagens qualitativas as responsáveis pela desqualificação das pesquisas na educação, mas sim justamente a impropriedade com que tais abordagens são utilizadas.
Se existe algum problema com as pesquisas qualitativas, não está na participação da subjetividade ou intersubjetividade, mas sim no esquecimento do seu diálogo com o objeto pelos pesquisadores, atitude que, como vimos, é contrária àquilo a que as abordagens qualitativas se propõem. Se for isso mesmo que acontece, compreendemos a razão da vulgarização das pesquisas qualitativas como oportunidade de recuperá-las.
Revendo equívocos das abordagens qualitativas
Defendemos até o presente que a ausência de rigorosidade científica das pesquisas qualitativas surge não em consequência das abordagens qualitativas em si mesmas, e sim do seu emprego indevido. É isso que acontece, por exemplo, com a abordagem da hermenêutica tradicional em algumas de suas formas de apropriação. Há um preconceito sobre a ciência que aparece subjacente a essas apropriações, as quais acusam o paradigma objetificador da cientificidade moderna de conduzir a educação ao reducionismo científico, na medida em que fixa sentidos previamente e induz à crença de que o uso de um bom método conduziria à verdade. Nesse sentido, ele promove muito mais a diminuição da estatura do trabalho pedagógico do que uma ampliação de horizontes. A nosso ver, essas críticas são devedoras do modelo de ciência hegemônico no século XIX, que não estão afinadas aos novos desenvolvimentos da ciência dos séculos XX e XXI (Merrel, 2008; Santos, 1989, 2006). Em realidade, a crítica de Gadamer a tal paradigma pode ser entendida também como um questionamento ao apego e à aceitação não às verdades científicas em si próprias, mas àquelas que, confiando excessivamente nas medidas estatísticas (crítica ao quantitativo), pretendem abolir a instância da compreensão hermenêutica (qualitativo). Caso contrário, ele próprio não teria afirmado que a certeza proporcionada pelos métodos científicos não é suficiente para garantir a verdade. Isso vale sobretudo para ciências do espírito, mas de modo algum significa diminuição de sua cientificidade (Gadamer, 2007, p. 631).
Se existe, então, essa incompreensão dos pesquisadores acerca da base necessária para uma pesquisa qualitativa, esclarecemos a seguir alguns pontos fundamentais, em forma de proposições, na tentativa justamente de evitar o encurtamento de sua experiência no campo educativo. Elas são enunciadas mais a título de provocação da reflexão, sendo expostas de forma bastante embrionária, o que certamente exigirá desenvolvimento maior em outros trabalhos.
1) A pesquisa qualitativa não é contrária à pesquisa quantitativa, pois não se trata de posições antagônicas, mas desiguais e complementares. Comentário: O que muda nas abordagens qualitativas em relação às quantitativas é o modo de perceber o objeto, que deixa de ser o centro, para se lhe apreender a subjetividade ou intersubjetividade.
2) A crítica que se faz ao quantitativo nas pesquisas qualitativas é em relação ao uso do quantitativo puro, não à participação do quantitativo no qualitativo. Comentário: É esse acréscimo que lhe possibilitaria a leitura a partir de outro ponto de vista, e não a partir de si mesmo apenas. O quantitativo, embora com intensidades diferentes, está presente nas abordagens qualitativas. Na hermenêutica tradicional, em que Gadamer dispensa a questão do método nas investigações, o quantitativo puro aparece como objeto de saída, rejeitado. Vejamos, então, como fica a manifestação do quantitativo nas abordagens qualitativas da pesquisa em educação: a) nas abordagens fenomenológico-hermenêuticas, o quantitativo aparece como mais uma qualidade do fenômeno. A pesquisa se identifica como qualitativa, mas o quantitativo não deixa de estar presente como qualidade do objeto; b) nas abordagens crítico-dialéticas, o quantitativo aparece na contradição com o qualitativo e vice-versa. São reconhecidas como pesquisas quantitativo/qualitativas, em que o significado é dependente da síntese entre ambas; c) nas abordagens hermenêutico-reconstrutivistas, o quantitativo aparece como condição para o consenso, ou seja, como conjunto de informações acordadas sobre o mundo comum a todos. A abordagem aparece como qualitativa, mas tem como condição um acordo prévio sobre o mundo objetivo.
3) É necessário ter claro que a descentralização do eixo de gravidade do objeto não significa que ele deva ser abandonado, pois esse é um elemento fundamental ao entendimento do mundo. Comentário: Caso contrário, poderemos incorrer no equívoco de apoiar a emergência de uma subjetividade delirante. Tanto nas abordagens crítico-dialéticas como nas abordagens fenomenológico-hermenêuticas ou nas hermenêutico-reconstrutivas, o objeto aparece de uma forma ou de outra no processo de investigação. O que é preciso saber é diferenciar os modos de tratamento do objeto para as diferentes abordagens. Se a pesquisa for crítico-dialética, o objeto é ontológico; se a pesquisa é de índole fenomenológico-hermenêutica, o objeto é continuamente interpretado dentro do contexto; e se a pesquisa for hermenêutico-reconstrutiva, o objeto aparece como locus de validade dos acordos sobre o mundo objetivo. Tanto nas abordagens fenomenológico-hermenêuticas quanto nas hermenêutico-reconstrutivas, o sujeito tem mais força que o objeto no processo de significação, o que não quer dizer ou indicar, como dissemos antes, o apagamento de sua existência. E ainda, nas abordagens crítico-dialéticas, o sujeito só se compreende em relação ao objeto, não existe uma separação desses elementos.
4) Reafirmamos a necessidade imprescindível de ter precisão no conhecimento dos aspectos teóricos, técnicos e metodológicos de cada abordagem. Comentário: Nesse ponto, ressaltamos a importância de prestar atenção na abordagem que está sendo empregada, coerente com os TIPOS DE PESQUISAS e as técnicas de coletas de dados, porque esses últimos elementos devem percorrer um caminho de acordo com a fundamentação a que a pesquisa se propõe. Se realizarmos uma pesquisa qualitativa guiada por uma abordagem fenomenológico-hermenêutica, devemos apreender a interpretação como um acordo o mais próximo possível do objeto, o que não significa descrevê-lo de forma imediatista, desconsiderando os fatores mais detalhados do estudo. De acordo com Gadamer (idem, p. 356),
[...] quem busca compreender está exposto a erros de opiniões prévias que não se confirmam nas próprias coisas. Elaborar os projetos corretos e adequados às coisas, que como projetos são antecipações que só podem ser confirmadas nas coisas, tal é a tarefa constante da compreensão.
Isso significa que, embora a pesquisa se desenvolva por interpretações, deve assumir a responsabilidade de uma explicitação clara do objeto da compreensão. É nesse mesmo sentido que Heidegger (2006, p. 77) chama fenomenológico a tudo que pertence à maneira de demonstração e explicação que constitui a conceituação exigida pela presente investigação.
Se empreendermos uma pesquisa qualitativa orientada numa intenção crítico-dialética, devemos considerar o sentido contraditório que essa abordagem se propõe, apreendendo o conhecimento pela síntese do conflito entre o sujeito e o objeto, ou entre o qualitativo e o quantitativo. Para Gamboa (1995, p. 104), nessa abordagem o sujeito adquire dimensão histórico-social e estabelece uma relação dinâmica com um objeto que se constrói com o instrumental teórico-metodológico presente no momento da relação. A qualificação e quantificação, embora contraditórias num primeiro momento, são processos conexos e articulados na construção do conhecimento; elas se transformam e se complementam mutuamente.
Se levarmos adiante uma pesquisa qualitativa de acordo com a orientação hermenêutico-reconstrutivista, devemos apanhar o conhecimento pelo consenso permitido pelas considerações prévias do mesmo mundo objetivo. Em vez do eu hermenêutico dominado pela linguagem, devemos apreender o nós hermenêutico de uma comunidade de sujeitos que se comunicam entre si. A investigação deveria acontecer pela intersubjetividade permitida pela confiança na possibilidade de um acordo. Ela deve perceber que a compreensão ocorre mediante a reflexão intersubjetiva dos problemas oriundos do mesmo mundo objetivo.
Sendo assim, acreditamos que, seguindo essas prerrogativas gerais, poderemos diminuir consideravelmente a possibilidade de que as pesquisas qualitativas sejam reconhecidas, na educação, pela forma prosaica com que vêm sendo interpretadas. Esperamos ter deixado claro que o problema da falta de rigorosidade científica das pesquisas qualitativas não está na concepção de pesquisa propriamente dita, menos ainda numa simples decadência natural de seu acontecer. De maneira bem diferente, entendemos que existe um deficit de compreensão que propicia a assimilação dessas abordagens de modo nem sempre adequado às suas exigências de base.
Aspectos conclusivos
Não há dúvida de que a pesquisa qualitativa é fundamental para a educação. Ela apresenta um vínculo com as preocupações características do pensamento crítico, componente necessário às práticas emancipatórias. Para tanto, é necessário o conhecimento e a utilização adequada das suas abordagens. Na medida em que percebemos o sentido das abordagens qualitativas com base na análise de suas configurações, apreendendo a dimensão relacional entre o sujeito e o objeto, e as concepções de mundo a que se alicerçam, poderemos auxiliar no processo de recuperação da sua credibilidade e confiabilidade na educação. A dívida com a evolução do saber da área passa, enfim, a ser saldada com a investigação atenciosa de dados reais, sem o perigo de redução ao objetivismo ou ao subjetivismo, pois ambos (subjetivo e objetivo), como vimos, são elementos necessários às práticas de pesquisa bem-sucedidas. As abordagens qualitativas têm importância para a educação na medida em que mostram a insuficiência das abordagens quantitativas no sentido puro e que o domínio do objeto é, desde sempre, dependente da incorporação da subjetividade ou do acordo intersubjetivo, sendo esses elementos historicamente modificáveis.
O problema mais evidente está não somente na tentativa de transição do quantitativo para o qualitativo. É certo que a cobrança do sistema é concentrada, de modo geral, na sobrevalorização do aspecto quantitativo. E os pesquisadores querem-se contrapor a isso levantando dados qualitativos de uma subjetividade particularizada. Talvez aqui se faça sentir a necessidade de um qualitativo como conversação, comunicação, acordos. E ainda a necessidade de um qualitativo que tenha como télos o consenso e, como referência e resistência, o mundo comum a todos. Afinal, as condições utópicas já são encontráveis nas situações fáticas de uso da linguagem cotidiana. A linguagem natural possui um télos do entendimento que concede a possibilidade de antecipação da imagem do consenso. É a antecipação de formas de vida não fracassadas (Trevisan, 2000, p. 263). A demanda de tratamento das questões da educação a partir do universo da linguagem, da comunicação ou da busca do entendimento mútuo é própria de um senso comum esclarecido (Santos, 1989, p. 41). É nessa dimensão que se faz valer a positividade da aproximação das pesquisas qualitativas com o senso comum, uma vez que se pode assim criar as condições para a emergência de uma ciência prudente (idem, ibidem). Nesse sentido, posicionamo-nos criticamente em relação a abordagens que tendem a valorizar o esforço no sentido contrário, ao abalizar a relatividade e a absoluta incongruência entre os diversos discursos. Sem dúvida isso cria um campo minado, que faz com que aqueles que se arrisquem a percorrê-lo fiquem sujeitos a permanentes reveses.
A proposta deste artigo é ampliar o leque da reflexão sobre as pesquisas qualitativas na educação, em seus diferentes desdobramentos. Em meio a um distanciamento crescente das perspectivas teóricas no tratamento dos problemas educacionais, essa sugestão se coloca como alternativa para assegurar, na diversidade de abordagens, o aprimoramento teórico-metodológico necessário a uma educação bem-sucedida. Ela poderia contribuir, desse modo, para instaurar, num ambiente sobrecarregado de conflitos, o giro em direção à busca de determinados acordos ou consensos, como ocorreu, por exemplo, quando da incorporação do quantitativo. É isso que possibilita a superação de posturas epistemológicas e/ou políticas reducionistas ou marcadamente divergentes, que a distanciam de uma visão normativa enquanto a aproximam do status quo instituído.
Nesse sentido, o trabalho alinha-se à ótica que percebe os avanços das pesquisas qualitativas, mas confronta-se com os seus desencaminhamentos, apostando na possibilidade de validar saberes a partir da ideia de um consenso minimamente atingível. Como alternativa favorável à democracia, o agir orientado ao entendimento poderia atuar no desenvolvimento de estruturas para a educação conquistar um ethos cada vez mais universal, no qual as diferentes perspectivas teóricas poderão, enfim, dialogar, sem que isso implique o abandono de seus locus específicos.
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Recebido em agosto de 2008
Aprovado em dezembro de 2009
CATIA PICCOLO VIERO DEVECHI, doutora em educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), é professora do Departamento de Teoria e Fundamentos da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB). Publicações recentes: A racionalidade comunicativa de Habermas e a possibilidade contemporânea de crítica e de objetividade nas pesquisas em educação (Anais... 32ª ANPEd, 2009. 1 CD-ROM); A educação entre verdade e justificação (Anais... 29ª ANPEd, 2006. 1 CD-ROM); Habermas & educação (Aprender, Caderno de Filosofia e Psicologia da Educação, v. 4, n. 7, p. 227-230, 2006). Pesquisa em andamento: A hermenêutica de Habermas na pesquisa em educação. E-mail: catiaviero@yahoo.com.br
AMARILDO LUIZ TREVISAN, doutor em educação pela Universidade Federal Rio Grande do Sul, é professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Publicações recentes: Formação ou reificação: a educação entre o mesmo e o outro (Anais... 32ª ANPEd, 2006. 1 CD-ROM); em coautoria com BARCELOS, Valdo H. A universidade ontem e amanhã – Da cópia acadêmica à invenção intercultural (Utopìa y Praxis Latinoamericana, v. 14, n. 45, p. 127-139, jun. 2009); Estetização da política vs. formação da opinião pública: uma aporia da razão comunicacional? (Educação, ano XXX, v. 62, n. 2, p. 299-312, maio/ago. 2007). Pesquisa em andamento; Formação no contemporâneo: racionalidade discursiva e estetização do mundo da vida, financiada pelo CNPq. E-mail: amarildoluiz@terra.com.br
1 Entendemos o conceito de senso comum na linha do que propõe Boaventura de Sousa Santos (1989, p. 34 ss.), quando argumenta que a ciência moderna se instituiu contra o senso comum porque o considerava como algo falso e ilusório. Porém essa posição não é compartilhada pelas ciências humanas, pois nem todas elas (como é o caso da fenomenologia) romperam com o senso comum. Mesmo as que promoveram a primeira ruptura epistemológica não são unânimes, e algumas consideram a sua positividade e outras a sua negatividade. Entretanto, o sociólogo português concebe-o a partir da dupla ruptura epistemológica, isto é, admitindo a necessidade de um trabalho de transformação tanto de um quanto de outro, tornando assim o senso comum esclarecido e a ciência prudente.
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