O (RE)ENCONTRO
Por: marciaf • 27/3/2017 • Dissertação • 2.222 Palavras (9 Páginas) • 219 Visualizações
“Os manuais escolares fazem suceder os Tempos Modernos à Idade Média na data da descoberta da América por Cristóvão Colombo em 1492.”[1] Tal facto assenta no conceito moderno de que o todo não é uma soma de partes, mas uma abstracção que interpenetra as partes umas nas outras. A “descoberta” da América (ou melhor, a sua apropriação) representa o início desta mudança idiossincrática europeia: o encontro com o totalmente estranho para o integrar, não sem complexificação, numa ideologia pré concebida[2] que por, sua vez, fundamenta a “identidade” do Homem moderno[3] - o estranho aproxima e distancia simultaneamente, tal como uma invenção[4] de um Estrangeiro visto segundo os valores do eu. Este, o Homem, descobre-se imerso numa totalidade, ao passo que até ali formava uma parte sem todo. O “mundo torna-se pequeno”, no dizer do próprio Colombo. No fundo, a partir da apropriação europeia da América, foi o Homem que foi descoberto, por que re-inventado.[5]
No entanto, a descoberta do eu no outro foi impulsionada pela ânsia de conquistar o outro em mim em nome do Deus da vitória – em nome do Cristianismo. Para tal, a sede de ouro é uma sede de vitória e de propagação da fé cristã: “Colombo procurava tanto o Jardim do Éden” (chegou a confundi-lo com os Açores) como o Eldourado; legitimava a sua procura do ouro a partir do desejo de reconquistar Jerusalém”[6]. A Europa cristã seria o centro segundo o qual a civilização mundial assentava e cujos extremos seriam o novo e o velho mundo, uma síntese totalizante entre os extremos eu e outro, passado e futuro numa trajectória acíclica; as riquezas serviam para a difusão dessa fé - a europeia: “a falta de dinheiro e o desejo de impor o verdadeiro Deus não se opõem; existe entre ambas uma relação de subordinação: o primeiro é o meio, o outro o fim. (…) Colombo – qual D. Quixote avant la lettre – desejava partir em cruzada e libertar Jerusalém! Só que tal ideia é extravagante na sua época e como, por outro lado, ele não tem dinheiro, ninguém lhe dá ouvidos.”[7] Desta forma, o ouro seria (apenas) o estímulo necessário para enfrentar o desconhecido eivado de lendas aterrorizantes com vista para a edificação do novo mundo que a América incitava, bem como um meio que constituísse Colombo como uma autoridade moral para empreender a cruzada. Esta obsessão reconquistadora / religiosa que o leva a descobrir, por interposta descoberta, a Modernidade revela, no entanto, a sua mentalidade medieval, aliada à sua fronêsis aristotélica da natureza[8], cuja experiência concreta apenas ilustra a verdade que já sabe, isto é, o horizonte moderno do ideal exterior e absoluto da religião cristã, pois “qualquer coisa terrestre é apenas um meio para alcançar a realização desse ideal”.[9] A ambiguidade é patente, fruto, também, da mudança civilizacional que Colombo inaugura e percorre: ver, deleitosamente, o mais possível da natureza por Cristo que o faz inventar aquilo que ainda não viu.[10]
Ademais, esta subordinação do natural / humano[11] à finalidade da motivação divina determina toda a hermenêutica de Colombo[12]: a força da sua fé é que lhe permite encontrar o que procura – o Paraíso terrestre, o Jardim do Éden – e, para tal toda a sua observação e experiência é condicionada moralmente e a priori na indiscutibilidade desta sua convicção. Aliás, o mundo é uma manifestação de sinais que evidenciam, sem margem para dúvidas, a comprovação da autoridade bíblica apoiada na literalidade nos Padres da Igreja. Por outras palavras, Colombo interpretava os sinais da natureza em função dos seus interesses; não o interessava a verdade moderna, mas tão só confirmar os seus desejos numa verdade pré-científica, porque pré-concebida, fundada na autoridade, mesmo que tenha que, para fundamentar as suas convicções, substituir umas lendas por outras. Por isso, recusa verificar através da experiência a determinação do resultado que deseja e sabe alcançar: deseja tanto que tudo o que vê confirma o que deseja. Neste sentido, Colombo é o evangelizador / colonizador, ou seja, o instrumento de Deus e portador de Cristo (Cristobal – Christum Ferens; Colombo - repovoador) que abriu as portas dos mares para Cristo passar e entrar no desconhecido para que este, o desconhecido – o outro, aprenda o evangelho e se torne definitivamente eu na cidade gloriosa dos céus: a colónia, qual Igreja cristã e Estado feliz.
Por outro lado, a relação superlativa de Colombo com a natureza manifesta-se sob três eixos essenciais: pragmática quando está em causa a ciência da navegação[13]; finalista quando lhe é dito algo que ele já sabe[14]; espanto e submissão que delonga-se numa fronêsis intransitiva.[15]
Todavia, se a natureza impõe-se a Colombo de forma que ele próprio vai ajustando as suas convicções na proporção da beleza que se lhe manifesta, os Índios são, no melhor dos casos, parte integrante da paisagem, são “associações directas entre sequências sonoras e segmentos do mundo. Daí que a descrição dos índios possa ser apresentada na sequência de explicações acerca das raízes ou dos cães. A sua condescendência em relação aos habitantes naturais está marcada pela percepção europeia da sua generosidade e credulidade[16], mas também há autoritarismo evidenciado no acto de nomear, que é uma tomada de posse de coisas, ignorando a sua língua e os seus sinais[17]. De resto, numa nova ultrapassagem da contingência individual pela ideologia, a semiótica dos Índios teria de ser semelhante à dos espanhóis dado que a diversidade linguística não existiria. A língua é natural[18], por isso o eu acredita poder comunicar com o outro através de similitudes fonéticas com a língua mãe e natural, as latinas. Consequentemente, só é ouvido o que já se conhece ou deseja conhecer numa trajectória modelar. Assimila-se a língua do estrangeiro numa tentativa de anulação da diferença.
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