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A Verdade E As Formas Jurídicas - Michel Foucalt

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Por:   •  11/4/2014  •  3.340 Palavras (14 Páginas)  •  421 Visualizações

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Conferência I

Pareceu-me que entre as práticas sociais em que a análise histórica permite localizar a emergência de novas formas de subjetividade, as práticas jurídicas, ou mais precisamente, as práticas judiciárias, estão entre as mais importantes.

A hipótese que gostaria de propor é que, no fundo, há duas histórias da verdade. A primeira é uma espécie de história interna da verdade, a história de uma verdade que se corrige a partir de seus próprios princípios de regulação: é a história da verdade tal como se faz na ou a partir da história das ciências.

Por outro lado, parece-me que existem, na sociedade, ou pelo menos, em nossas sociedades, vários outros lugares onde a verdade se forma, onde um certo número de regras de jogo são definidas - regras de jogo a partir das quais vemos nascer certas formas de subjetividade, certos domínios de objeto, certos tipos de saber - e por conseguinte podemos, a partir daí, fazer uma história externa, exterior, da verdade.

As práticas judiciárias - a maneira pela qual, entre os homens, se arbitram os danos e as responsabilidades, o modo pelo qual, na história do Ocidente, se concebeu e se definiu a maneira como os homens podiam ser julgados em função dos erros que haviam cometido, a maneira como se impôs a determinados indivíduos a reparação de algumas de suas ações e a punição de outras, todas essas regras ou, se quiserem, todas essas práticas regulares, é claro, mas também modificadas sem cessar através da história - me parecem uma das formas pelas quais nossa sociedade definiu tipos de subjetividade, formas de saber e, por conseguinte, relações entre o homem e a verdade que merecem ser estudadas.

Eis aí a visão geral do tema que pretendo desenvolver: as formas jurídicas e, por conseguinte, sua evolução no campo do direito penal como lugar de origem de um determinado número de formas de verdade. Tentarei mostrar-lhes como certas formas de verdade podem ser definidas a partir da prática penal. Pois o que chamamos de inquérito (enquête) - inquérito tal como é e como foi praticado pelos filósofos de século XV ao século XVIII, e também por cientistas, fossem eles geógrafos, botânicos, zoólogos, economistas - é uma forma bem característica da verdade em nossas sociedades.

Ora, onde encontramos a origem do inquérito? Nós a encontramos em uma prática política e administrativa de que irei falar-lhes, mas a encontramos também em prática judiciária. E foi no meio da Idade Média que o inquérito apareceu como forma de pesquisa da verdade no interior da ordem jurídica. Foi para saber exatamente quem fez o quê, em que condições e em que momento, que o Ocidente elaborou as complexas técnicas do inquérito que puderam, em seguida, ser utilizadas na ordem científica e na ordem da reflexão filosófica.

Da mesma forma, no século XIX também se inventaram, a partir de problemas jurídicos, judiciários, penais, formas de análise bem curiosas que chamaria de exame (examen) e não mais de inquérito. Tais formas de análise deram origem à Sociologia, à Psicologia, à Psicopatologia, à Criminologia, à Psicanálise. Tentarei mostrar-lhes como, ao procurarmos a origem destas formas, vemos que elas nasceram em ligação direta com a formação de um certo número de controles políticos e sociais no momento da formação da sociedade capitalista, no final do século XIX.

Conferência II

Falo agora da história de Édipo, analisando o saber e ponto de emergência do inquérito.

A tragédia de Édipo é fundamentalmente o primeiro testemunho que temos das práticas judiciárias gregas. Como todo mundo sabe, trata-se de uma história em que pessoas - um soberano, um povo - ignorando uma certa verdade, conseguem, por uma série de técnicas de que falaremos, descobrir uma verdade que coloca em questão a própria soberania do soberano. A tragédia de Édipo é, portando, a história de uma pesquisa da verdade; é um procedimento de pesquisa da verdade que obedece exatamente às práticas judiciárias gregas dessa época. Por esta razão o primeiro problema que se coloca é o de saber o que era na Grécia arcaica a pesquisa judiciária da verdade.

O primeiro testemunho que temos da pesquisa da verdade no procedimento judiciário grego remonta à Ilíada. Trata-se da história da contestação entre Antíloco e Menelau durante os jogos que se realizaram na ocasião da morte de Pátroclo.

Entre esses jogos houve uma corrida de carros, que, como de costume, se desenrolava em um circuito com ida e volta, passando por um marco que era preciso contornar o mais próximo possível. Os organizadores dos jogos tinham colocado neste lugar alguém que deveria ser o responsável pela regularidade da corrida que Homero, sem o nomear pessoalmente, diz ser uma testemunha (aquele que está lá para ver). A corrida se desenrola e os dois primeiros que estão na frente no momento da curva são Antíloco e Menelau. Ocorre uma irregularidade e quando Antíloco chega primeiro, Menelau introduz uma contestação e diz ao juiz ou júri que deve dar o prêmio, que Antíloco cometeu uma irregularidade. Contestação, litígio, como estabelecer a verdade?

Curiosamente, nesse texto de Homero, não se faz apelo àquele que viu, à famosa testemunha que estava junto ao marco e que deveria atestar o que aconteceu. Não se convoca o seu testemunho e nenhuma pergunta lhe é feita. Há somente contestação entre os adversários Menelau e Antíloco. Esta se desenvolve da seguinte maneira:

Depois da acusação de Menelau - “tu cometeste uma irregularidade” - e da defesa de Antíloco - “eu não cometi irregularidade” - Menelau lança um desafio: “Põe tua mão direita na testa do teu cavalo; segura com a mão esquerda teu chicote e jura diante de Zeus que não cometeste irregularidade”. Nesse momento, Antíloco, diante deste desafio que é uma prova, ele renuncia à prova, renuncia a jurar e reconhece assim que cometeu irregularidade.

Eis uma maneira singular de produzir a verdade, de estabelecer a verdade jurídica: não se passa pela testemunha, mas por uma espécie de jogo, de prova, de desafio lançado por um adversário ao outro. Um lança um desafio, o outro deve aceitar o risco ou a ele renunciar. Se por acaso tivesse aceito o risco, se tivesse realmente jurado, imediatamente a responsabilidade do que iria acontecer, a descoberta final da verdade seria transposta aos deuses. E seria Zeus, punindo o falso juramento, se fosse o caso, que teria com seu raio manifestado a verdade.

Eis a velha e bastante arcaica prática da prova da verdade em que esta é estabelecida judiciariamente não por uma constatação, uma testemunha, um inquérito

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