Livro Senhora
Trabalho Escolar: Livro Senhora. Pesquise 862.000+ trabalhos acadêmicosPor: joao_meneghel • 21/5/2014 • 10.485 Palavras (42 Páginas) • 519 Visualizações
Primeira Parte
O PREÇO
I
Há anos raiou no céu fluminense uma nova estrela.
Desde o momento de sua ascensão ninguém lhe disputou o cetro; foi proclamada a rainha dos salões.
Tornou-se deusa dos bailes; a musa dos poetas e o ídolo dos noivos em disponibilidade.
Era rica e famosa.
Duas opulências, que se realçavam como a flor em vaso de alabastro; dois esplendores que se refletem, como o raio de sol no prisma do diamante.
Quem não se recorda de Aurélia Camargo, que atravessou o firmamento da corte como brilhante meteoro, e apagou-se de repente no meio do deslumbramento que produzira seu fulgor?
Tinha ela dezoito anos quando apareceu a primeira vez na sociedade. Não a conheciam; e logo buscaram todos com avidez informações acerca da grande novidade do dia.
Dizia-se muita coisa que não repetirei agora, pois a seu tempo saberemos a verdade, sem os comentos malévolos de que usam vestí-la os noveleiros.
Aurélia era órfã; tinha em sua companhia uma velha parenta, viúva, D. Firmina Mascarenhas, que sempre a acompanhava na sociedade.
Mas essa parenta não passava de mãe de encomenda, para condescender com os escrúpulos da sociedade brasileira, que naquele tempo não tinha admitido ainda certa emancipação feminina.
Guardando com a viúva as deferências devidas à idade, a moça não declinava um instante do firme propósito de governar sua casa e dirigir suas ações como entendesse.
Constava também que Aurélia tinha um tutor; mas essa entidade era desconhecida, a julgar pelo caráter da pupila, não devia exercer maior influência em sua vontade, do que a velha parenta.
A convicção geral era que o futuro da moça dependia exclusivamente de suas inclinações ou de seu capricho; e por isso todas as adorações se iam prostrar aos próprios pés do ídolo.
Assaltada por uma turba de pretendentes que a disputavam como o prêmio da vitória, Aurélia, com a sagacidade admirável em sua idade, avaliou da situação difícil em que se achava, e os perigos que a ameaçavam.
Daí provinha talvez a expressão cheia de desdém e um certo ar provocador, que eriçavam a sua beleza aliás tão correta e cinzelada para a meiga e serena expansão d'alma.
Se o lindo semblante não se impregnasse constantemente, ainda nos momentos de cisma e distração, dessa tinta de sarcasmo, ninguém veria nela a verdadeira fisionomia de Aurélia, e sim uma máscara de alguma profunda decepção.
Como acreditar que a natureza houvesse traçado linhas tão puras e límpidas daquele perfil para quebrar-lhes a harmonia com o riso de uma pungente ironia?
Os olhos grandes e rasgados, Deus não os aveludaria com a mais inefável ternura, se os destinasse para vibrar chispas de escárnio.
Para que a perfeição estatuária do talhe de sílfide, se em vez de arfar ao suave influxo do amor, ele devia ser agitado pelos assomos do desprezo?
Na sala, cercada de adoradores, no meio das esplêndidas reverberações de sua beleza, Aurélia bem longe de inebriar-se da adoração produzida por sua formosura, e do culto que lhe rendiam, ao contrário parecia unicamente possuída de uma indignação por essa turba vil e abjeta.
Não era um triunfo que ela julgasse digno de si, a torpe humilhação dessa gente ante a sua riqueza. Era um desafio, que lançava ao mundo; orgulhosa de esmagá-lo sob a planta, como um réptil venenoso.
E o mundo é assim feito; que foi o fulgor satânico da beleza dessa mulher a sua maior sedução. Na acerba veemência da alma revolta, pressentiam-se abismos de paixão; e entrevia-se que procelas de volúpia havia de ter o amor da virgem bacante.
Se o sinistro vislumbre se apagasse de súbito, deixando a formosa estátua na penumbra suave da candura e inocência, o anjo casto e puro que havia naquela, como há em todas as moças, talvez passasse despercebido pelo turbilhão.
As revoltas mais impetuosas de Aurélia eram justamente contra a riqueza que lhe servia de trono, e sem a qual nunca por certo, apesar de suas prendas, receberia como rainha desdenhosa a vassalagem que lhe rendiam.
Por isso mesmo considerava ela o outro um vil metal que rebaixava os homens; e no íntimo sentia-se profundamente humilhada pensando que para toda essa gente que a cercava, ela, a sua pessoa, não merecia uma só das bajulações que tributavam a cada um de seus milhões de cruzeiros.
Nunca da pena de algum Chatterton desconhecido saíram mais cruciantes apóstrofes contra o dinheiro, do que vibrava muitas vezes o lábio perfumado dessa feiticeira menina, no seio de sua opulência.
Um traço basta para desenhá-la sob esta face.
Convencida de que todos os seus inúmeros apaixonados, sem exceção de um, a pretendiam unicamente pela riqueza, Aurélia reagia contra essa afronta, aplicando a esses indivíduos o mesmo estalão.
Assim costumava ela indicar o merecimento relativo de cada um dos pretendentes, dando-lhes certo valor monetário. Em linguagem financeira, Aurélia cotava os seus adoradores pelo preço que razoavelmente poderiam obter no mercado matrimonial.
Uma noite, no Cassino, a Lísia Soares, que fazia-se íntima com ela, e desejava ardentemente vê-la casada, dirigiu-lhe um gracejo acerca do Alfredo Moreira, rapaz elegante que chegara recentemente da Europa.
- É um moço muito distinto, respondeu Aurélia sorrindo; vale bem como noivo cem mil cruzeiros; mas eu tenho dinheiro para pagar um marido de maior preço, Lísia; não me contento com esse.
Riam-se todos destes ditos de Aurélia e os lançavam à conta de gracinhas de moça espirituosa; porém a maior parte das senhoras, sobretudo aquelas que tinham filhas moças, não cansavam de criticar esses modos desenvoltos, impróprios de meninas bem educadas.
Os adoradores de Aurélia sabiam, pois ela não fazia mistério, do preço de sua cotação no rol da moça; e longe de se agastarem com a franqueza, divertiam-se com o jogo que muitas vezes resultava do ágio de suas ações naquela empresa nupcial.
Dava-se isto quando qualquer dos apaixonados tinha a felicidade de fazer alguma coisa a contento da moça e satisfazer-lhe as fantasias; porque nesse caso ela elevava-lhe a cotação, assim como abaixava a daquele que a contrariava ou incorria em seu desagrado.
Muito devia a cobiça embrutecer esses homens, ou cegá-los de paixão, para não verem o frio escárneo
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