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Por:   •  9/11/2014  •  4.627 Palavras (19 Páginas)  •  261 Visualizações

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ÉTICA E TRABALHO NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA

Lílian do Valle*

Apesar de todas as tentativas em sentido contrário, realizadas sobretudo a partir da Modernidade, é impossível negar que toda reflexão sobre as relações entre ética e trabalho se assenta, a rigor, sob um paradoxo, estabelecido pela estrita separação entre esses dois domínios. Em virtude dessa necessária, porém abrupta entrada na matéria, temo no entanto que a incompreensão inicial, longe de despertar a curiosidade, suscite no leitor a desconfiança e o desinteresse, senão pela filosofia, ao menos pelo texto que, no encerramento desta coletânea, ela inspira. Assim sendo, devo prevenir-me e, para fazê-lo, vou permitir-me um desvio pelo território tão eminentemente filosófico das definições, antes de dar a vislumbrar o cenário contemporâneo em que, enfim, as relações entre ética e trabalho deverão ser examinadas.

Tomemos, pois, esse desvio, não para retardar a discussão, mas para evitar que ela incida sobre o campo da moral – da discussão, normativa ou simplesmente interrogativa, sobre os bons costumes, sobre o código de conduta, sobre o comportamento julgado adequado em ambiente de trabalho.

Seja, pois, por um lado, a ética, como reflexão sobre os princípios – ou, o que vem a dar exatamente no mesmo, sobre os fins últimos, sobre as finalidades do agir humano, sobre o próprio sentido da existência individual e coletiva; seja ainda, por outro lado, o trabalho, como atividade que é meio para produção de alguma coisa, que está relacionada a um fazer eficaz, a uma ação apropriada e conforme a fins que são exteriores à atividade.

Apresentada como reflexão, a ética diz respeito à decisão, que incumbe a cada indivíduo e a cada sociedade, de julgar, escolher e instituir em sua própria existência os princípios, os valores que deverão guiar suas relações com o mundo, com as coisas, com os outros homens, submetendo-os a permanente questionamento. As decisões relativas ao trabalho dependem, quanto a elas, do que se poderia chamar, numa acepção bastante ampla, de técnica: escolha dos saberes a serem convocados, dos instrumentos, dos procedimentos, das ações a serem empregados na consecução do resultado final. Será forçoso constatar que assim definidos os dois termos, não existe uma ética do trabalho, embora possam (e devam!) existir formas éticas de se investir a atividade do trabalho. Mas, nesse caso, essas formas deverão estar continuamente submetidas ao exercício da auto-reflexão e do questionamento constante.

É com tal atitude que o presente artigo se propõe a contribuir.

O trabalho como significação imaginária social

Muito embora sob o termo genérico de «humanidade» possamos reconhecer uma série de características biológicas, funcionais, psíquicas, comuns a todos os humanos, é sempre de maneiras muito diferentes que essas determinações são incorporadas, trabalhadas e retrabalhadas pelas diversas culturas e momentos históricos, sob a forma de costumes, de representações, de formas de encarar o mundo, de definir sua existência e, no caso que nos interessa aqui, de organizar e valorar as atividades humanas. Assim, cada sociedade, cada época, institui aquilo que C. Castoriadis denominava seus «tipos antropológicos» próprios. O modo de ser e de agir dos antigos babilônios não é o mesmo dos revolucionários franceses de fins do século XVIII; as formas de trabalhar, de raciocinar, de sentir, de desejar, de fazer planos, de se afetar, de temer de um tupi-guarani, há quinhentos anos, em nada se assemelhava àquelas do português navegador, ou dos brasileiros e brasileiras atuais.

Encarnando-se em «tipos antropológicos» específicos, os indivíduos formados e socializados em e por uma sociedade específica, dão existência e realidade às significações que cada sociedade institui para si, que a fazem ser como tal sociedade, e não uma outra:

Toda sociedade cria seu próprio mundo, criando, precisamente, as significações que lhe são específicas… O papel dessas significações imaginárias sociais, sua «função» – para empregar o termo sem qualquer conotação funcionalista – é tripla. São elas que estruturam as representações do mundo em geral, sem as quais não pode existir ser humano. Essas estruturas são, a cada vez, específicas: nosso mundo não é o mundo grego antigo, e as árvores que vemos por estas janelas não abrigam, cada uma delas, uma ninfa, é simplesmente madeira, é esta a construção do mundo moderno. Em segundo lugar, elas designam as finalidades da ação, elas impõem o que deve ser feito, ou não deve ser feito: deve-se adorar a Deus, ou então é deve-se acumular as forças produtivas – ainda que nenhuma lei natural ou biológica, nem mesmo psíquica, diga que se deve adorar Deus ou acumular as forças produtivas. E, em terceiro lugar – ponto, sem dúvida, mais difícil de abordar – elas estabelecem os tipos de afetos característicos de uma sociedade. (…) Mas, entre as significações instituídas por cada sociedade, a mais importante é, sem dúvida, a que concerne à própria sociedade. [1]

São precisamente essas significações imaginárias sociais que fornecem, de maneira mais ou menos explícita, e de acordo com o grau de autonomia da sociedade, sentido para as atividades humanas. Ora, a reflexão ética começa, exatamente, quando os sentidos para a existência que nos são fornecidos pela sociedade passam a ser objeto de nosso questionamento consciente e contínuo. Por isso, a relação que buscamos, entre ética e trabalho, nos impõe o questionamento dos sentidos que são associados a essa atividade e da centralidade que lhe foi concedida por toda a sociedade ocidental contemporânea.

Centralidade do trabalho industrial

Foi apenas há relativamente pouco tempo, na história, que aquilo que denominamos de trabalho foi erigido à condição de valor central da existência. É claro que as diferentes sociedades sempre tiveram que lidar com as necessidades relativas à sua sobrevivência, que foram a cada vez instituídas, organizadas e orientadas de acordo com cada cultura específica; é claro também que nenhuma sociedade sobreviveria se não fosse capaz de atribuir significado às atividades que visavam a garantir, exatamente, sua continuidade. Assim, era à própria vida, considerada valor máximo, que o trabalho devia seu reduzido sentido. No entanto, de modo geral, a idéia de que se pudesse passar

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