Transbordamentos: A estética das correspondências na construção do livro-objeto
Por: lucas1252010 • 30/8/2015 • Artigo • 2.794 Palavras (12 Páginas) • 162 Visualizações
Transbordamentos:
a estética das correspondências na construção do livro-objeto
Wanêssa Cristina Vieira Cruz
Wanêssa Cristina Vieira Cruz é escultora e ceramista Graduada em Artes Plásticas e Pós-Graduada em Arte e Contemporaneidade pela Escola Guignard - UEMG.
Resumo
“Transbordamentos” é uma tessitura da obra Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa, em que diversos personagens, topos geográficos e eventos inscritos sobre fragmentos de cerâmica vão se conectando por meio de laçadas e nós. A feitura dessa produção plástica possibilitou uma reflexão transdisciplinar em que arte, literatura e filosofia se articulam num constante intercruzamento, cujo jogo combinatório vai compondo outro Grande Sertão. Essa trama se fundamenta no conceito de rizoma, a partir de Deleuze e Guattari.
Palavras-chave: fragmento, tessitura,rizoma.
Transbordamentos – um olhar transdisciplinar
Inúmeras são as leituras de Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa. Conforme disse Antonio Candido,
Cada um poderá abordá-la a seu gosto, conforme o seu ofício; mas em cada aspecto aparecerá o traço fundamental do autor: a absoluta confiança na liberdade de inventar(1).
“Transbordamentos” é o tecido de uma trama. Livro não-códice remetendo à idéia de livro-rizoma a partir dos conceitos de Deleuze e Guattari.
Esta produção plástica justifica-se como um trabalho transdisciplinar, uma vez que se propõe a ser pensada como uma rede. Sua criação só foi possível devido à contribuição de diversas áreas, experiência que se concretizou devido à aproximação entre distintos campos do conhecimento: filosofia, literatura e “artes, que também é um saber” (2).
Segundo Hugo Assmann,
a transdisciplinaridade não pretende desvalorizar as competências disciplinares específicas. Ao contrário, pretende elevá-las a um patamar de conhecimentos melhorados nas áreas disciplinares, já que todas elas devem embeber-se de uma nova consciência epistemológica, admitindo que é importante que determinados conceitos fundantes possam transmigrar através (trans) das fronteiras disciplinares(3).
Olhares cruzados, olhares transdisciplinares. A tessitura do sertão possibilitando que, por meio do afrouxamento de fronteiras disciplinares, da ocupação de zonas de indefinição, dos interstícios disciplinares, as referências cruzadas, sem qualquer idéia de hierarquia, organizem-se em torno de uma tópica de atravessamentos e transbordamentos.
De sua feitura
“Transbordamentos” nasce na palma de minha mão. O gesto de amassar a argila, utilizando como molde a sua própria concavidade, sintetiza o princípio da modelagem-moldagem, no sentido de se trabalhar a partir de um molde. A argila, matéria inerte e amorfa, corporifica-se no instante em que a mão conjuga o acaso da matéria. Um simples gesto meu e ela se insere dentro do princípio das metamorfoses. No instante em que a mão toca a matéria, estrutura uma forma por meio do gesto metamórfico; o gesto multiplica as formas e expõe um conteúdo significativo.
Esta produção plástica é um trabalho de textura, que deve ser compreendido como “ato ou efeito de tecer, o tecido, a trama, a união íntima das partes de um corpo, uma contextura, a ligação ou o arranjo das partes de uma obra” (4).
Estruturalmente, o trabalho apresenta-se como uma trama em que fragmentos de cerâmica e fios se entrelaçam. A obra constrói-se por meio da reprodutibilidade do gesto e se multiplica pela ação reiterada. As unidades vão se conectando por meio de um fio e compondo uma trama. Esse fio condutor é o indício que serve de guia – o elemento responsável por sua expansão no espaço. Fragmentos conectando-se, fazendo surgir formas e criando novos significados.
Os significados vão sendo atribuídos, na medida em que a matéria vai adquirindo forma; então a matéria argila deixa de ser um fato meramente físico e passa a adquirir uma materialidade plena de significados, sendo formada e transformada pelo homem com toda a sua carga de conhecimentos e emoções(5).
Laçadas e nós
Laçada, o primeiro movimento para se dar um nó, é considerado por Ítalo Calvino como
a interseção de duas curvas (...) o ponto onde se escorre, gira ou flui ou perpassa ou se enlaça uma ponta de corda ou se corta ou se escalda o fio ou a linha ou o barbante ou o cordão, (...) a arte de fazer os nós, ponto culminante de ambas – a abstração mental e a habilidade manual - poderia ser vista como a característica humana por excelência, tanto quanto e talvez ainda mais que a linguagem(6).
Em toda essa produção plástica, a linha se fez presente. Segmento mensurável, ao percorrer um trajeto, ele vai construindo um espaço. Enquanto costura, expande-se no espaço. O fio – a linha que costura - é vínculo, é ponte. Une, sustenta o trabalho e constrói a obra. Fragmento por fragmento, em seqüência, multiplicando-se, articulando-se.
A palavra latina ars, matriz do português arte, está na raiz do verbo "articular", que denota a ação de fazer junturas entre as partes de um todo(7).
Os fragmentos, ao serem articulados, vão produzindo espaços vazios, trazendo um aspecto arejado ao trabalho. Como conseqüência desse procedimento, percebo uma conexão com aquilo que Barthes denominou de
um estado: o Raro. Rarus, em latim, significa "aquilo que apresenta intervalos, interstícios, que é espaçado, poroso, esparso"(8).
A obra é tecida segundo o princípio do Raro, isto é, do espaçamento. Esse espaço vazio foi gerado pelo acaso “(tyché) que em grego, é o acontecimento que sobrevém por acaso” (9). O espaço negativo proporcionado pelo acaso das articulações gerou uma certa transparência e me remeteu a um rizoma.
“Transbordamentos” é uma criação que ganhou vida dentro da especificidade da argila. A superfície da trama é como um território híbrido que, de acordo com Ricardo Basbaum, representa a relação entre duas trajetórias em que
enunciados e visibilidades confrontam-se num mesmo tempo e num
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