A Espontaneidade obrigatória da expressão de sentimentos: a estrutura social das emoções
Por: vantos • 5/2/2018 • Ensaio • 2.301 Palavras (10 Páginas) • 162 Visualizações
A “espontaneidade obrigatória” da expressão de sentimentos: a estrutura social das emoções
Vinicius S. Barriga[1]
Os sentimentos são tidos pelo ocidente, como sinônimo de espontaneidade, isto é, a externalização do que há de mais espontâneo em si, uma expressão da imanência de um estado corpóreo, manifestações demasiadamente humanas[2] que são intensamente romantizadas, adoradas e, máxime, universalizadas. Em termos científicos, as emoções são concebidas como manifestações de um estado psicobiológico dos indivíduos, cuja solo originário não é senão a constituição psicológica e fisiológica do organismo individual humano. Afinal, o quão estranho seria pensarmos, em moldes ocidentais, na expressão obrigatória e impositiva dos sentimentos? Não seria isto doentio, absurdo e malicioso?
Entrementes, a generalização dos sentimentos é potencializada pela faculdade antropomórfica humana, onde há a extensão de sentimentos humanos para seres ou objetos inumanos, ora, não é isto, em demasia, comum? Pessoas constantemente atribuem a tão cara faculdade de amar a animais movidos puramente a instintos ou juram enxergar amor onde há somente instintos sexuais e agressivos. “Amor”, eis uma noção caríssima ao mundo moderno, o mais puro dos sentimentos, por vezes confundido com a própria humanidade, a própria essencialidade cosmogônica, a base de toda moral ocidental, afinal, não é o Deus cristão o próprio amor? Não devemos Amar a Deus acima de todas as coisas? Não é repetido incessantemente que o Amor é o antidoto por excelência dos males? Um olhar perspicaz e analítico logo constatará que a espontaneidade de tais sentimentos entre os “modernos” trata-se basicamente de formalismo, mentira social, afinal, não se justifica assassinatos, abusos, violência em nome do Amor? Este não é um sentimento tido como “espontâneo” mas que acorrenta os indivíduos à abnegação de si em prol do símbolo, sentimento, do ídolo que é o amor? Afinal, o próprio cristo não foi crucificado em nome do amor? Não é por amar demasiadamente os homens que o Deus Cristão, o sustentáculo da moral ocidental, criou o inferno? Lugar para onde vão todos aqueles que não o amam? Cabe-nos uma pergunta: onde está espontaneidade de tal sentimento?
Portanto, a constituição da problemática figura-se na hipótese de que há uma obrigatoriedade socialmente legitimada e culturalmente escamoteada nas expressões sentimentais entre os ditos “civilizados”, onde tais manifestações sentimentais possuem uma incomensurável magnitude, em uma perspectiva estrutural, para a continuidade das relações sociais e a vitalidade da coesão social das comunidades humanas, destarte, faz-se necessário recorrermos as formulações intelectivas da Antropologia, a saber, de Marcel Mauss[3] e Radcliffe-Brown[4], a fim de buscarmos paradigmas sociais não-ocidentais para pensarmos e elucidarmos , a problemática proposta.
A expressão obrigatória dos sentimentos
No seu Ensaio sobre a dádiva[5], Marcel Mauss aborda questões referentes a espontaneidade quando descreve “[...] as trocas e os contratos que se fazem sob forma de presentes, em teoria voluntários, na verdade obrigatoriamente dados e retribuídos” e complementa “[...] Elas assumiram quase sempre a forma do regalo, do presente oferecido generosamente, mesmo quando neste gesto que acompanha a transação, há somente ficção, formalismo e mentira social” (Mauss, 2003)[6] é notório este cinismo imanente no paradoxo das relações obrigatoriamente tidas como espontâneas e generosas, onde chega-se ao ápice no chamado potlatch onde o caráter agonístico é proeminente, um aspecto, em aparência, puro e desinteressado que, em si mesmo, há puro interesse. Perceber-se-á nestas trocas o caráter socialmente harmônico que, em verdade, há pura competitividade, a espontaneidade socialmente admirada que possui atrás de si a mais concisa obrigatoriedade. Eis o paradoxo da dadiva.
Em seu texto “A expressão obrigatória dos sentimentos”[7], de 1921, quatro anos antes da publicação do seu “Ensaio sobre a dádiva”, Mauss já havia apontado este caráter espontâneo, e no entanto, imperativo, ao propor que o hábito obrigatório e moral das lagrimas, muito difundido entre os nativos da Austrália e Polinésia, correspondem à outras inúmeras expressões de sentimentos, neste aspecto M.Mauss dirá:
“[...] Não só o choro, mas toda uma série de expressões de sentimentos não são fenômenos exclusivamente psicológicos ou fisiológicos, mas sim fenômenos sociais, marcados por manifestações não-espontâneas e da mais perfeita obrigação.”(MAUSS, 1979)[8]
Limitando-se ao rito funerário M.Mauss, corrobora com as demonstrações de Durkheim[9] que apontam que o luto não é uma expressão espontânea de emoções individuais, mas imperativos sociais, de caráter coletivo, este é grandemente marcado por cerimônias públicas que possuem regras próprias e fazem parte do ritual da vendetta e da determinação de responsabilidades, pondo em ação sentimentos e emoções construídos socialmente, o que permite, entrever a própria coletividade em interação.(MAUSS,1979) Onde não são fixados somente os tempos e condições da expressão coletiva dos sentimentos, mas também os agentes da expressão.(MAUSS,1979, p.150)
Todas essas expressões coletivas, simultâneas, de valor moral e de força obrigatória dos sentimentos do indivíduo e do grupo, formam para Mauss (1979, p.153) uma linguagem, pois só podem ser compreendidas porque todo o grupo as entende, e uma ação simbólica. Manifesta-se a si, exprimindo aos outros, por conta dos outros, cuja expressão, essencialmente simbólica, possui em si mesma, a espontaneidade e a obrigatoriedade aos moldes do paradoxo da dadiva. Destarte, o foco fundamental de Mauss é demonstrar a obrigatoriedade destas expressões sentimentalistas, o que é elementar para a hipótese aqui levantada, elucidar-nos-emos a seguir as implicações destas expressões na estrutura social e sua respectiva função.
A estrutura social das emoções
Conforme as proposições de M.Mauss, evidenciando o caráter social e imperativo das expressões sentimentais, perceber-se-á que estamos lidando com a construção social dos sentimentos, em termos axiomáticos, a proposição precedente supõe o meio que estabelece as condições necessárias para a constituição e continuidade da supracitada construção, este meio não pode ser outro senão o que Malinowski denomina de os imponderáveis da vida real[10], isto é, a vida no seu real aspecto, as vivências humanas em seu solo originário, ou seja, o aspecto relacional da constituição daquilo que entre os ocidentais é designado por realidade, ora, para Radcliffe-Brown a própria realidade pressupõe uma estrutura que lhe dê as condições necessárias de existência e de manutenção, propiciando-lhe a continuidade. Cabe aqui introduzirmos a noção de estrutura social, objeto por excelência da antropologia social pensada por Radcliffe-Brown.
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