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O Fulgor de Canudos

Por:   •  11/9/2018  •  Resenha  •  7.725 Palavras (31 Páginas)  •  127 Visualizações

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O fulgor de Canudos

Silvia Beatriz Adoue

Naquela terra eles plantam
Mandioca, milho e feijão
Criam carneiros e bodes
Que agüentam o sol do sertão
Trabalhando, a comunidade
Reparte em igualdade
A safra do mutirão

Zé Antônio[1]

De 1893 a 1897, no sertão de Bahia, erigiu-se uma cidade com 30 mil almas. Dedicada à agricultura e à criação de carneiros e cabras, o resultado da produção social era distribuído segundo a necessidade de cada um. A cidade foi destruída e seus moradores exterminados após quatro campanhas militares. Mas o fulgor de Canudos ilumina nosso presente com traços de possibilidades futuras.

Muito foi discutido a propósito das condições históricas específicas que favoreceram esta experiência. Costuma-se esgrimir essas especificidades como argumento contra aqueles que vemos em Canudos fulgores de porvir. Vou descrever o contexto em que aquela cidade foi levantada no meio do sertão e relatar sua crônica. A singularidade desta épica, no entanto, assinala, na minha opinião, outra conclusão: traços das relações humanas que floresceram em Canudos, sob o sol impiedoso e sobre uma terra castigada pela ameaça anual da seca, são uma aspiração bem mais universal.

A “procissão dos milagres”

Depois da conquista, a colônia portuguesa fornecia ao mercado mundial insumos e produtos semi-manufacturados em grande escala. A “procissão dos milagres”[2] em direção a Europa foi alimentada pelo fluxo do tráfico de escravos durante séculos, mas nunca tão intenso como no período de 1822 a 1850. E, de todos os “milagrosos “ produtos do trabalho escravo, o açúcar foi aquele que permaneceu com um fluxo mais duradouro por todos os séculos que durou a dominação portuguesa e depois da independência. Mas houve períodos de intensa extração de madeira de pau Brasil e ouro. E a produção de açúcar, especialmente no nordeste da colônia, se combinou com a de algodão. O café começou a ser produzido na região sudeste a partir da primeira metade do século XVIII.

Nos estados do nordeste, as fazendas de cana, grosso modo, combinavam o cultivo de cana e a usina de produção de açúcar com a criação de rebanhos, para depender o menos possível da compra de alimentos para seus trabalhadores. A carne seca e a farinha de mandioca eram produzidas na própria fazenda ou na região. Se para a produção de açúcar se explorava trabalho escravo, para a pecuária isso não era possível. O vaqueiro era um trabalhador livre, já que lidar com gado é um ofício, e não uma atividade puramente mecânica e repetitiva, exige liberdade de iniciativa e de deslocamento territorial que não combina com a escravidão. O vaqueiro estava associado ao progresso do rebanho por uma série de compromissos. O patrão cedia um terreno para estabelecer rancho e para fazer um roçado para a própria alimentação e da família, e também lhe cedia uma cria por um número de parições combinado de antemão entre as duas partes. Era comum o fazendeiro apadrinhar os filhos do vaqueiro e que este fizesse parte do pequeno exército que o patrão mobilizava durante conflitos de terras com outros proprietários.

Essas relações gozaram de grande estabilidade por séculos. O que não quer dizer que não houve resistências. Havia constantes fugas de escravos que se constituíam em quilombos.

Houve no século XIX, oito longos períodos de seca na região, em grande medida, resultantes do monocultivo extensivo da cana de açúcar. Essa sucessão de secas vinha desde o século XVIII, e foi inaugurada com a grande seca de 1723 a 1727, apenas igualada em duração com a de 1890 até 1894. O deslocamento da população à procura de água e meios de vida na segunda metade do século XIX foi gigantesco. Que podia dirigia-se para estados do sul, para o litoral ou para a Amazônia, atraído pela exploração da borracha. Quem permanecia na região, penava pelos caminhos.

A partir da proibição do tráfico de escravos em 1850, a obtenção e reprodução de mão de obra tornou-se muito cara para a economia da cana de açúcar. A Lei de Terras de 1850 preservava ao mesmo tempo a concentração da propriedade em poucas mãos, para que os proprietários dispusessem de trabalhadores “livres” de meios de produção, e assim evitar que o fluxo de mercadorias para exportação se detivesse. A “procissão dos milagres” continuou, só que aumentou a produção de café nos estados do sul em detrimento da produção de açúcar e algodão no nordeste. O café passou de representar  18,4% das exportações na década de 1820 a 64,5% na última década do século XIX. O açúcar passou, no mesmo período, de 30,1% a 6% das exportações brasileiras. E o algodão passou de 20,5% a 2,7%, ainda que contou com um aumento excepcional na década de 1860, coincidindo com a guerra civil norteamericana. A indústria têxtil inglesa precisava de algodão e as exportações brasileiras desse produto subiram tanto nesse período que representaram 18,3% do total de exportações. Mas a tendência gera desde a independência foi de deslocamento territorial da produção de exportação do nordeste para o sudeste.

Todas estas transformações estavam em consonância com o ajuste da economia que vinha do período colonial às novas formas e à nova velocidade que adquiria a reprodução do capital nos países centrais.

Beatos, beatas, conselheiros, santos e bandidos

Do céu veio a luz
Que Jesus Cristo mandou;
Santo Antônio Aparecido
Dos castigos nos livrou!

Quem ouviu e não aprendeu
Quem souber e não ensinar
No dia do Juízo
A sua alma penará.

Anónimo recogido por Silvio Romero[3]

A seca e todos esses processos econômicos fizeram que, não poucas vezes, os proprietários de terra praticamente abandonassem suas fazendas, as quais ficavam aos cuidados dos capatazes e vaqueiros durante anos. Mas, sem meios de sobrevivência, até eles iam embora. Muitos dos jagunços que integravam os pequenos exércitos mobilizados pelos proprietários de terras para dirimir suas pendências lançaram-se para o cangaço. Assim, serviam aos proprietários com relativa autonomia. Alguns foram bandidos populares, como Jesuíno Brilhante, que durante a seca de 1877 a 1879 atacava os comboios e distribuíam mantimentos entre os retirantes.

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