Análise Fílmica do Documentário Estamira (2005), de Marcos Prado
Por: Luciphy • 6/7/2015 • Ensaio • 5.604 Palavras (23 Páginas) • 636 Visualizações
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
Análise Fílmica do Documentário Estamira (2005), de Marcos Prado
Trabalho de conclusão da disciplina O cinema documental em questão: a constituição das sociedades enquanto imagem
Sueli In Cien Lao
Nº USP: 6836427 - Noturno
Professor: Paulo Menezes
São Paulo, 2014
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INTRODUÇÃO
ESTAMIRA (2005) conta a história de uma mulher de 63 anos que sofre de distúrbios mentais e vive e trabalha há mais de 20 anos no Aterro Sanitário de Jardim Gramacho, um local renegado pela sociedade, que recebe diariamente mais de oito mil toneladas de lixo produzido no Rio de Janeiro. Com um discurso eloquente, filosófico e poético, a personagem central levanta de forma íntima questões de interesse global, como o destino do lixo produzido pelos habitantes de uma metrópole e os subterfúgios que a mente humana encontra para superar uma realidade insuportável de ser vivida[1].
No documentário, o diretor Marcos Prado explora a condição da protagonista por meio do acompanhamento de sua rotina de trabalho em um grande depósito de lixo no bairro Jardim Gramacho no Rio de Janeiro, o filme apresenta ao espectador imagens e entrevistas que foram extraídas a partir da vida cotidiana de Estamira e de seu círculo relacional. De modo geral, Estamira se locomove do barraco ao aterro e vice-versa e se relaciona cotidianamente com seus amigos e familiares, nestes locais de relação e atuação a protagonista sobrevive, discursa, reflete, revela, atua.
Ao espectador torna-se nítida a dureza do cotidiano pobre, insalubre e perigoso nos quais é possível atestar a impossibilidade do desenvolvimento da vida humana em choque com as condições que os locais e quadros representam e impõem. Esta sensação é transmitida pelo jogo de imagens selecionadas para ilustrar o local, tanto quanto a trilha sonora – composta por uma música cortante e cantada de modo chorado (um choro de desesperado, desamparado).
Assim, o espectador é introduzido ao caminho trilhado e o mundo vivido de Estamira. Logo de início apresenta-se a condição limite da vida; tal condição estará em questão durante todo o filme, e aos poucos ganhará densidade psicológica e emocional, de acordo com a forma no qual é conduzida a narrativa. O filme começa com uma música repetitiva (berimbau) mostrando imagens em preto e branco de um barraco do qual se tem a impressão de ser bastante humilde, de um lugar inorgânico, em que qualquer vida humana subsiste, agravada pela idade avançada (fixada nitidamente e pela primeira vez, na câmera fechada apenas nos olhos de Estamira, em que é possível observar as marcas de expressões da idade); na imensidão do caminho que leva ao aterro em relação ao individuo que caminha só por uma estrada cortada por enormes caminhões.
Na introdução, no qual é retratado o trajeto de Estamira, a partir da chegada ao lixão e consequentemente, as primeiras imagens em cores procedidas do letreiro indicando o título, podemos notar o início da exploração do plano das cores e da nitidez, da câmera fechada no rosto e nas partes do corpo de Estamira. Esta alternância de aspectos fotográficos em cores e em preto e branco que acontecerá durante todo o desenvolvimento do filme é uma das características fundamentais da linguagem escolhida pelo diretor para compor o conjunto das estratégias narrativas, que desenvolveremos mais adiante.
O relato pessoal se desenvolve no filme de maneira profundamente reflexiva. Sobre si, seu passado, seu papel no mundo, sua relação com mundo da natureza e da sociedade a partir de um conjunto de conceitos desenvolvidos por meio da experiência pessoal e local, o que acaba por criar uma espécie de discurso único, isolado, que parte da experiência de Estamira enquanto indivíduo, mas que, ao mesmo tempo, em relação ao seu conteúdo e significado, tem potencialidade de elevação da compreensão de formas gerais da vida social.
A estrutura narrativa é construída basicamente por meio da relação entre estes dois elementos acima apontados, ou seja, dos modos de montagem cinematográficos: conteúdos da imagem; captação e montagem sonora; ângulos de câmera. E por outro lado a potencialidade discursiva da protagonista. Deste modo o diretor coloca Estamira no centro da história a partir de uma reconstrução social, histórica, emocional e psicológica de sua vida. Nestes momentos o filme demonstra a sua capacidade de construir uma condição particular, por meio da representificação documentária[2] apresentando sua expressividade da protagonista em relação direta com o mundo. A expressividade humana no filme
“não nos proporciona os pensamentos do homem, como o fez o romance durante muito tempo; dá-nos a sua conduta ou o seu comportamento, e nos oferece diretamente esse modo peculiar de estar no mundo, de lidar com as coisas e com os seus semelhantes, que permanece para nós, visível nos gestos, no olhar, na mímica, definido com cada pessoa que conhecemos” (Merleau-Ponty, 1983, p. 116).
Uma problemática particular perceptível no decorrer do filme é que Estamira estabelece uma relação radical com o presente, assumindo a tarefa de relevar a verdade do mundo por meio da negação dos discursos institucionais da religião cristã e da psiquiatria e assumindo um discurso que se estrutura em classificações e conceitos que se produzem por meio da experiência pessoal, imaginação e percepção imediata, este se caracterizando por elementos seculares e radicalmente humanistas. O “eu” de Estamira é um “eu” que resiste e que se auto-afirma de modo intransigente diante das formas de violência ao corpo e/ou das práticas normatizadoras; além da afirmação da vida diante de todas as impossibilidades localmente impostas: miséria, insalubridade, etc.
A construção fílmica desta personagem é extremamente concentrada nas relações locais e pessoas imediatas, cotidianas, ou seja, da repetição e da dureza desta repetição. Deste modo a narrativa trabalha não apenas para apresentar e construir peculiaridades da protagonista como para criar questões sobre como ela se tornou o que é. Isto faz com que o diretor trabalhe por meio de entrevistas – e com todas as técnicas que fazem alusão a esta: confissão, depoimento, terapia, etc. – para revelar aspectos constituintes do seu “eu” presente.
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