Carnavais, malandros e heróis - Ensaio
Por: Samantha de Souza Corrêa • 8/11/2017 • Ensaio • 1.214 Palavras (5 Páginas) • 416 Visualizações
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
DSP - DEPARTAMENTO DE SEGURANÇA PÚBLICA
Disciplina: Oficina de Texto I
Profº - Gabriel Tardelli
Aluna: Samantha de Souza Corrêa
Matrícula: 216102097
Você sabe com quem está falando ?
"O homem é um cadaver adiado". Esta é a definição do ser humano do poeta Fernando Pessoa. O homo sapiens é uma das três milhões de espécies que existem no planeta Terra, que é um planeta, entre outros nove, que gira em torno do Sol, que é uma estrela entre mais de duzentas bilhões em uma galáxia chamada Via Láctea, que é uma galáxia entre outras cem bilhões de galáxias existente no universo, que é só um entre outros milhões. E ainda tem um indivíduo, no meio de toda essa física quântica, que se acha no direito de perguntar se "você sabe com quem está falando".
A famosa "carteirada" é só uma das milhares de características do jeitinho brasileiro. Não que seja algo exclusivamente da nossa cultura, mas no Brasil a carteirada deixou de ser algo exclusivo das camadas sociais mais altas, uma vez que mesmo os subordinados utilizam esta expressão tomando para si a projeção social de seu chefe. Neste contexto, os empregados dos figurões usam o ritual: "Você sabe com quem está falando ? Eu sou motorista do Senador Fulano de Tal" como uma capa para sua própria posição social. Entre outros exemplos, os filhos de pessoas socialmente notáveis também usam este ritual: "Você sabe com quem está falando ? Sou filho de Fulano de Tal !". Seguindo esta lógica, o uso desta expressão por meio de projeção social em certas circunstâncias como se fosse o próprio superior é, na maioria dos casos, uma forma de inferiorizar um indivíduo que seria igual.
O antropólogo Roberto Damatta, em seu livro Carnavais, malandros e heróis (1936) dedica um capítulo inteiro a este assunto. Segundo Damatta, "Todos têm o direito de se utilizar do 'sabe com quem está falando?", e mais, sempre haverá alguém no sistema pronto a recebê-lo (porque é inferior) e pronto a utilizá-lo (porque é superior)" (p. 195). O escritor enxerga o uso da expressão como
"[...] um instrumento de uma sociedade em que as relações pessoais formam um núcleo daquilo que chamamos de "moralidade" (ou "esfera moral"), e tem um enorme peso no jogo vivo do sistema, sempre ocupando os espaços que as leis do Estado e da economia não penetram." (p. 195)
Existem as variantes para esta expressão, tais como "Quem você pensa que é?", "Ponha-se no seu lugar !", "Vê se te enxerga !", "Recolha-se à sua insignificância !", dentro outras várias formas de tentar exercer, em muitos casos, uma falsa hierarquia. O uso destas expressões tem como intuito intimidar o interlocutor, e quando usadas as formas interrogativas, remetem a um inquérito judicial, quando há suspeita de algum crime ou culpa. O que faz com que este literalmente "se recolha à sua insignificância" por medo de estar cometendo alguma "gafe" moral.
Quando se ouve falar no "jeitinho brasileiro", quando a internet diz que "o brasileiro precisa ser estudado", é por conta de situações como as que envolvem o "Você sabe com quem está falando ?". Nos Estados Unidos por exemplo, o uso desta expresão também é feito, porém de forma inversa. Os americanos dizem "Who do you think you are ?" (Quem você pensa que é ?), nos casos dos indivíduos que querem se aproveitar de qualquer situação para obterem vantagens. Neste exemplo, a pergunta aparece no sentido inverso para situar o homem como um igual, e não como superior, além do uso do verbo "to think" (pensar) demonstrar a ideia de que este indivíduo se vê em um patamar superior de maneira fantasiosa. Esta expressão é utilizada como forma de trazê-lo à realidade. Diante disto, podemos observar a a relação entre as duas expressões: no Brasil, o "Sabe com quem está falando?" é usado como fórmula de distanciamento, de superiorização de um indivíduo em relação a outros, enquanto o "Who do you think you are ?" é utilizada de forma inversamente proporcional, com a intenção de igualar os indivíduos.
A prática do "Você sabe com quem está falando ?" é tão antiga, que é utilizada desde a época do Brasil colônia. Certo filho de um ex-desembargador da Bahia, de nome Manoel da Costa Bonicho, foi nomeado para Relação com sua carta de referência em branco. No dia de sua apresentação, ele apenas disse que era filho do Senhor Manoel da Costa Bonicho, desembargador de agravos da Casa de Suplicação da Coroa. Para um bom entendedor, bastou esta informação para que o rapaz fosse admitido em um dos cargos mais cobiçados da época, mesmo sem nenhuma experiência. Embora muito menos usada no passado, devido à consciência da hierarquia por parte da população nos tempos mais antigos.
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