O caboclo
Por: victor_asrm • 12/11/2015 • Dissertação • 7.401 Palavras (30 Páginas) • 119 Visualizações
A Matematização das Ciências Sociais Maracajaro Mansor1 Resumo: O uso de técnicas matemáticas está crescendo na maioria das disciplinas das ciências sociais, principalmente na Economia, e os defensores da matematização geralmente tentam legitimar este processo a partir da suposta neutralidade axiológica da matemática, argumentando, sob influência positivista, que a linguagem matemática deve ser a própria linguagem da ciência. Este artigo se opõe à tal concepção, rejeitando a possibilidade de neutralidade da matemática e demonstrando que a matemática pode contribuir apenas de maneira muito limitada para a compreensão de processos históricos. Argumentamos que modelos matemáticos são incapazes de descrever a origem, o desenvolvimento ou declínio de relações sociais, sendo útil apenas como descrição de padrões quantitativos entre eventos quando as relações sociais estão estáveis. Daí resulta que, em teorias sociais matematicamente formuladas, tenha-se por objetivo desenvolver uma coleção de modelos, um para cada circunstância. As transformações sociais, mesmo as menores, ficam fora do foco das teorias assim desenvolvidas. Por último, argumentamos que o crescimento da utilização da matemática é favorecido pelo ambiente filosófico/cultural relativista e pragmático que vivemos, ainda que contra o desejo de muitos dos partidários de tais concepções filosóficas. Palavras-chave: matemática, instrumentalismo, relativismo e pragmatismo.
1 Graduado em Economia pela UFF e mestrando em Economia na USP. A Matematização das Ciências Sociais 2 Introdução O artigo está estruturado em 3 seções além desta introdução. A primeira seção apresenta a opinião dos economistas sobre o papel da matemática para explicitar como a defesa da matemática nas ciências sociais está geralmente associada a preservação dos valores positivistas na prática científica. Enquanto na filosofia da ciência o positivismo foi superado, ele permanece arraigado na prática dos cientistas. Na segunda seção, argumentaremos que modelos matemáticos, por constituírem sistemas fechados, são incapazes de descrever processos históricos, servindo apenas para, no máximo, descrever padrões de eventos que vigorem em períodos de estabilidade. A terceira e última seção é apresentada uma explicação para matematização das ciências sociais, em especial da Economia. 1. A Matematização na Economia “Sustento que todos os autores econômicos devem ser matemáticos na mesma medida em que são científicos, porque tratam de quantidades econômicas, e as relações de tais quantidades e todas as quantidades e relações de quantidades estão dentro do objeto da Matemática. Mesmo aqueles que mais veemente e claramente protestavam contra o reconhecimento de seu próprio método, continuamente revelam em sua própria linguagem o caráter quantitativo de seus raciocínios. [...]A função dos símbolos matemáticos [...] é a de guiar nossos pensamentos no escorregadio e complicado processo de raciocínio. A linguagem comum pode expressar normalmente os axiomas elementares de uma ciência, e com freqüência também os resultados finais; mas só da forma mais insatisfatória, obscura e tediosa é que nos pode conduzir através dos labirintos da inferência”. (Jevons, 1988. P. 9-10.) Apesar dos quase 150 anos da obra de Jevons, sua afirmação expressa o sentimento contemporâneo que os economistas, ao menos os do mainstream, possuem com relação ao uso da matemática em sua ciência. Essa concepção, ainda que formulada em termos diferentes, está presente em autores como Krugman (1998), Debreu (1991), Colander, Holt & Rosser (2004). Em seu artigo “Two Cheers for Formalism”, Krugman argumenta que a causa da crítica heterodoxa à formalização é a discordância com relação à teoria. A crítica ao método matemático, nesse sentido, é apenas uma tentativa de combater as idéias do mainstream econômico, não sendo sustentável enquanto crítica metodológica propriamente dita. Essa resposta de Krugman é suficiente para rebater algumas reclamações, mas não elimina a possibilidade e a necessidade da crítica. Existem também partidários do mainstream econômico que criticam a crescente tendência à formalização, em geral com o objetivo de resgatar a conhecida posição de Marshall, segundo a qual a Matemática deve servir apenas para averiguar a consistência de relações que devem ser estabelecidas intuitivamente. Na seqüência, ainda segundo a concepção de Marshall, as idéias devem ser novamente expressas em linguagem textual, deixando-se a matemática de lado. Desta forma a matemática teria um papel bastante limitado na ciência econômica. Krugman, ao contrário, defende que a formalização serve também como uma importante fonte de idéias. A partir do desenvolvimento matemático, pode-se não só tornar rigorosas as idéias iniciais, como também ter novos insights suscitados pela A Matematização das Ciências Sociais 3 própria elaboração formal2 . Krugman poderia ter afirmado ainda que tais insights, por decorrerem diretamente do contato do economista com a matemática, tendem a ter maior consistência lógica que as relações intuídas de outra forma. Assim, a matemática, nessa perspectiva, é simultaneamente uma boa fonte de idéias e o método de testar sua consistência. Daí Krugman conclui que: “Most of the topics on which economists hold views that are both different from "common sense" and unambiguously closer to the truth than popular beliefs involve some form of adding-up constraint, indirect chain of causation, feedback effect, etc.. Why can economists keep such things straight when even highly intelligent non-economists cannot? Because they have used mathematical models to help focus and form their intuition.” (Krugman, 1998, 1834). (negrito adicionado) Segue-se daí que também as novas idéias, se querem se constituir como teorias alternativas consistentes, devem utilizar a matemática tanto para desenvolver sua consistência, quanto para demonstrá-la aos demais economistas. Krugman ilustra essa afirmação com o desenvolvimento das “novas teorias de comércio internacional”: “Trade theory is again a case in point. By the late 1970s there had been decades of discontent with conventional trade theory - discontent often manifested by complaints that conventional theory neglected increasing returns and imperfect competition. Many manifestos denouncing the conventional views had been published. Yet in all that literature of discontent it is hard to find any clear, let alone useful ideas. Only when the "new trade theory" began to emerge, driven by mathematical models that both embodied and shaped intuition, did compelling new ways of looking at international trade actually take shape.” (Krugman, 1998, p. 1835). Conclui-se, então, na visão de Krugman, que uma condição para a circulação de novas teorias é a sua expressão matemática. Enquanto as idéias não forem expressas com a transparência proporcionada pela matemática, elas estarão fadadas às margens da ciência. Somente quando apresentadas com a linguagem da ciência é que poderão se tornar candidatas a teorias de fronteira. Trata-se, de fato, de uma característica contemporânea da Economia. Colander, Holt & Rosser (2004), por exemplo, indicam que o mainstream reconhece como contribuições genuinamente científicas todas as idéias que sejam embasadas em modelos matemáticos. Novas idéias são aceitas desde que estejam metodologicamente adaptadas. Metodologias alternativas (i.e., não formalizadas) são rejeitadas. Krugman é, ele mesmo, um economista que ilustra bem a idéia aqui exposta. Apesar de não ser adepto da Teoria Neoclássica, ele alcançou o Nobel de Economia em 2008 exatamente por desenvolver matematicamente, com a Nova Teoria do Comércio Internacional, idéias que se originaram na heterodoxia. 2 Lisboa afirma, respondendo aos críticos da matematização, que “... a análise formalizada não tem como objetivo apenas demonstrar a consistência interna de algum argumento verbal ou generalizar exemplos. Do meu ponto de vista, a formalização explicita a necessidade de hipóteses que podem passar despercebidas pela análise verbal, aponta dificuldades conceituais imprevistas e sugere problemas em aberto”. (Lisboa, 1998, p. 116). Todas estas vantagens adicionais apontadas por Lisboa descrevem a maneira pela qual a formalização revela as hipóteses necessárias para obter o resultado desejado em um modelo e a maneira segundo a qual são criados novos “insights”. A Matematização das Ciências Sociais 4 Para dar ênfase à contraposição entre aceitação de novas idéias e rejeição de metodologias alternativas, Colander, Holt & Rosser (2004) definem ortodoxia como Teoria Neoclássica, e mainstream como elite da profissão: “Mainstream economics consists of the ideas that the elite in the profession finds acceptable, where by elite we mean the leading economists in the top graduate schools. It is not a term describing a historically determined school, but is instead a term describing the beliefs that are seen by the top schools and institutions in the profession as intellectually sound and worth working on.” (Colander, Holt & Rosser, 2004, p. 5). Deste modo, Krugman é tido, por Colander, Holt & Rosser, como economista heterodoxo que compõe o mainstream. Como “ortodoxia” e “mainstream” são termos recorrentemente intercambiáveis, com ambos podendo se referir à “elite da profissão”, este trabalho não adota tal divisão conceitual. Além disso, Colander, Holt & Rosser não analisam o movimento das concepções que rejeitam a metodologia do mainstream, revelando-se interessados apenas nos aspectos internos à corrente principal. Lawson (2006), diferentemente de Colander, Holt & Rosser, está interessado exatamente em identificar a natureza da economia heterodoxa, e por isso conceitua ortodoxia – ou mainstream – pela sua adesão ao método dedutivo-formalista. Seguindo o raciocínio de Lawson, concluímos que a heterodoxia se define exatamente pela rejeição do reducionismo metodológico existente no mainstream/ortodoxia. “Note-se que isso não leva à rejeição de toda modelização dedutivo-matemática, mas é a rejeição da insistência de que todos nós devemos utilizá-la sempre e em toda parte” (Lawson, 2006, p. 10). Esta conceituação proposta por Lawson será adotada ao longo deste trabalho. Os economistas ortodoxos geralmente concebem a história da matemática na economia como resultado da tendência natural dessa disciplina a desenvolver seu caráter científico. Tal concepção está intimamente relacionada, ou pelo menos é influenciada pelos valores positivistas de uma ciência neutra (livre de metafísica). Não pretendo acusar os defensores da formalização de não reconhecerem a inevitável relação entre ciência e valores, relação esta que não é rejeitada por nenhuma teoria filosófica contemporânea relevante. Mas o reconhecimento da impossibilidade de separar fatos e valores não elimina nos cientistas o desejo/valor de que o conhecimento deva ser produzido de forma tão isenta de valores quanto possível. De acordo com o senso comum da ciência, por assim dizer, o cientista deve proceder sem fazer julgamentos, deixando que a própria análise lhe indique o rumo adequado das idéias. Apesar da falência da tentativa de separar fatos e valores, a idéia de que tais valores são nefastos para a ciência se preserva na prática científica cotidiana. A busca da isenção de valores não é, entretanto, o único propósito positivista que se preserva apesar da admissão da impossibilidade de alcançá-lo. Este ideal de isenção axiológica geralmente desdobra-se na defesa de que a observação dos fatos – a evidência empírica – deve constituir o principal motor da ciência. A premissa de tal princípio é que os fatos constituem verdades absolutas, independentes dos valores dos cientistas. Mas as mesmas demonstrações da impossibilidade de produzir conhecimento livre de valores também constataram que não existe fato que não seja interpretado. Dentro da discussão epistemológica, são bastante conhecidas as posições de teóricos como Kuhn, Lakatos e Feyerabend que demonstram que os assim ditos “fatos” – que constituiriam, segundo a concepção convencional, os objetos de estudo de sujeitos científicos completamente deles apartados – são, em realidade, teórico-dependentes. A interpretação dos fatos é sempre um recorte desde uma perspectiva, adotada pelo A Matematização das Ciências Sociais 5 cientista a partir de sua formação e de suas idéias, o que é indissociável de seus valores porque são exatamente os valores que orientam sua perspectiva. Esta preservação de ideais positivistas apesar da impossibilidade de que a ciência alcance tais ideais contribui para a exaltação acrítica da matemática. Quando, no Círculo de Viena, se objetivava construir uma linguagem estritamente lógica com objetivo de livrá-la de valores, a matemática sempre foi uma referência, o maior exemplo de linguagem lógica onde não estariam presentes os escorregadios jogos de semântica das linguagens comuns. Acreditava-se que a matemática era um sistema autoconsistente fundando sobre um conjunto restrito de axiomas auto-evidentes, não havendo, portanto, qualquer espaço para incursões metafísicas. O Teorema de Gödel, entretanto, demonstrou que nem mesmo uma teoria matemática pode ter sua consistência demonstrada dentro de seu próprio sistema axiomático. Seria de esperar que, depois desse teorema, a utilização da matemática fosse pensada criticamente em cada caso, sendo avaliadas suas vantagens e suas limitações. Mas também aqui o ideal positivista se preservou apesar de impossível. A matemática continua em expansão supostamente por seu rigor e por dar menos margens à especulação discursiva. Além disso, teorias matematicamente formuladas são, em princípio, mais fáceis de se aplicar estatisticamente, sendo, por isso, mais apropriadas para a concepção na qual a observação dos fatos empíricos é o principal papel da ciência. A defesa de que a matemática deve ser implementada por ser a linguagem por excelência da ciência é apenas mais um ideal que se preserva apesar do reconhecimento, por qualquer filosofia da ciência relevante, da impossibilidade de que a ciência alcance tais ideais positivistas: “apesar de teoricamente demolido pelas críticas, parece que sua longa hegemonia fez decantar uma espécie de consciência prática positivista difícil de erradicar.” (Duayer, Medeiros e Painceira, 2001, p. 751) Como a isenção de valores, embora admitidamente impossível, segue como um valor da ciência, o cientista deve proceder de maneira a evitar julgamentos. Analogamente, os fatos, embora só sejam fatos porque selecionados, mensurados e interpretados como tais, devem ser analisados de maneira isenta. Além disso, é melhor que o encadeamento lógico desde as premissas até as conclusões seja feito com o auxílio da matemática. Isto porque as regras matemáticas garantiriam a consistência lógica das idéias. Temos, assim, três contradições flagrantes: i) Admite-se que a presença de valores na ciência é inevitável, mas a isenção de valores segue como um dos mais fortes valores científicos da atualidade – muitas vezes sem que se perceba que isto é um valor. ii) Admite-se que a presença de valores nos fatos é inevitável – ou seja, fatos são sempre teórico-dependentes3 – mas a máxima de “deixar os fatos falarem” não perde a validade na prática da ciência. iii) Admite-se que a presença de valores na linguagem é inevitável4 , mas a matemática continua sendo defendida por, supostamente, constituir 3 “Os fatos a que a teoria se refere e a que se tenciona que ela corresponda somente podem ser falados usando-se os conceitos da própria teoria. Os fatos não nos são acessíveis, nem neles se pode falar, independentemente de nossas teorias”. (Chalmers, 2001, p. 198). 4 O que explica o fracasso de todas as tentativas de construir uma linguagem estritamente lógica (i.e., livre de metafísica) para a ciência. A Matematização das Ciências Sociais 6 uma linguagem isenta. Além disso, a matemática é defendida por sua capacidade de distinguir idéias encadeadas consistentemente de construções teóricas infundadas5 . Estas três contradições sempre têm, de um lado, a admissão de que a ciência não poderá ser aquilo que o positivismo, particularmente o Círculo de Viena, pretendia, e, de outro lado, a preservação do desejo de livrar a ciência dos valores, ou seja, o desejo de que a ciência seja aquilo que não pode ser. Debreu, na conclusão de seu artigo de 1991, anteriormente referido, expressa exatamente esta combinação de reconhecimento de que a ciência é incapaz de ser axiologicamente neutra com a orientação de que se deve buscar a isenção: “In their endeavors to make their field into a science, economists must renounce a favorite mode of thinking – wishful thinking; they must be impartial spectators of a play in which they are the actors. While they attempt to keep that inhuman stance, they are pressed to give immediate answers to societal questions of immense complexity and thereby to abandon the exacting slowness of the step-by-step scientific approach” (Debreu, 1991, p. 6) Imbuídos deste valor (isenção axiológica), aqueles que acreditam que a ciência social tem progredido, acreditam nisso porque identificam na história da ciência elementos que, supostamente, indicam o avanço da ciência rumo à isenção de valores. Os otimistas, neste sentido, têm razões para acreditar que a ciência tem se aproximado da inalcançável isenção. Na Economia, a matematização é um dos principais elementos em que se apegam os economistas para concluírem que essa disciplina progride exatamente no sentido exposto. A matematização, para esses economistas, decorre exatamente dessa tendência natural, desejável e inevitável de que a Economia consolide seu caráter científico. A crença na neutralidade da matemática tem como conseqüência a crença de que esse é um instrumento compatível com toda elaboração teórica logicamente consistente. Deste modo, a matemática, por si só, não favorece nenhuma escola de pensamento específica. Se alguma escola de pensamento é desfavorecida pelo processo, isso se deve tão somente à sua falta de cientificidade. A adoção da matemática na economia teria, então, apenas o desejável efeito de contribuir para a consistência das teorias que compõem a Economia, ajudando de maneira inequívoca para o progresso da ciência. 2. Processo histórico, sistemas abertos e sistemas fechados. A busca pela formalização, que é por si só, um valor, relega para segundo plano a investigação da dinâmica histórica que gera cada caso particular que é objeto de modelagem matemátical. Ainda que se admita, e de fato parece razoável, que os modelos conseguem expressar relações circunstanciais de maneira útil6 , uma ciência inteiramente voltada para a formalização, a despeito de toda sua utilidade instrumental, 5 Apesar de Gödel ter demonstrado que qualquer sistema axiomático suficiente para incluir a aritmética dos números naturais não pode demonstrar sequer a sua própria consistência. 6 “Naturalmente, é aceitável admitir que linguagem formal é mais eficaz e conveniente do ponto de vista da adequação empírica e da eficácia prática da teoria”. (Duayer, Medeiros e Painceira, 2001, p. 750). A Matematização das Ciências Sociais 7 contribui pouco para a compreensão do contexto mais amplo em que se insere a circunstância na qual ela se mostra útil. a) O conceito ‘Processo histórico’ Entende-se por “processo” a gênese, o desenvolvimento, apogeu e o declínio das relações. Para entender o Sistema Bretton Woods, por exemplo, podemos adotar duas perspectivas radicalmente distintas. Quando se tem por objetivo a compreensão de seu processo, ou seja, as condições estruturais que o originaram e o consolidaram até as condições que promoveram seu fim, é necessário considerar tanto os determinantes econômicos que derivavam da forma de operação dos mecanismos de mercado anteriormente ao seu estabelecimento, quanto as condições geopolíticas resultantes da Segunda Guerra Mundial. Os acordos de Bretton Woods promoveram alterações no funcionamento do mercado, estabelecendo outro padrão de relação entre eventos tais como inflação, taxa de juros e desemprego. Admitindo-se que a década de 1950 tenha se constituído como um período de estabilidade das instituições estabelecidas na época e, com isso, de estabilidade também das relações econômicas estruturais, então um modelo fechado (matemático) poderia capturar as relações entre as referidas variáveis. Mas mesmo neste período de estabilidade ocorreriam desenvolvimentos que – ainda que não afetassem imediatamente as instituições, a estrutura econômica e o padrão de eventos – posteriormente levariam a novas transformações na regulação da economia. Depois, no começo da década de 1970, quando se rompe o Sistema definido em Bretton Woods, as modificações na regulação da economia alteram o padrão de relação entre eventos, configurando um período de instabilidade que seguirá ainda por muitos anos. Tanto a gênese quanto o desenvolvimento e o declínio destas relações, por se tratar de fenômenos sociais abertos, cujo desenvolvimento histórico significou a efetivação de apenas uma das alternativas possíveis, não pode ser adequadamente descrito por modelos matemáticos, que são fechados. A possibilidade de sucesso de modelos matemáticos se restringe, portanto, a períodos de estabilidade, nos quais os eventos que se expressam como variáveis matemáticas possuam um padrão de ocorrência comparável a um sistema fechado. Os modelos bem sucedidos são aqueles que descrevem adequadamente o período de estabilidade, no qual os mecanismos sociais operam de maneira relativamente estável. A tautologia do último período se justifica pela necessidade de explicitar que os modelos, mesmo os bem sucedidos, não servem para compreender os processos histórico-sociais, de modo que uma ciência social que se limita a elaborar modelos algébricos, como a Economia, não explica a gênese, o desenvolvimento e o possível declínio de seu objeto de estudo (em cada contexto específico). b) Sistemas fechados VS. sistemas abertos “Por dedutivismo pretendo simplesmente designar a coleção de teorias (de ciência, explicação, progresso científico, etc.) que é erigida sobre a concepção de leis enquanto regularidade de eventos conjugada com os mencionados princípios [confirmação, corroboração, falsificação e teste] de avaliação da teoria”. (Lawson, 1997, p.17) Para qualquer das versões do que Lawson chama de dedutivismo explicar significa deduzir uma afirmação de um conjunto de hipóteses, axiomas etc. e de uma lei geral. Esta lei é do tipo “se ‘x’, então ‘y’”, ou “dadas as condições ‘x’, então ocorrerá “y’” (xÆy). Daí decorre que o evento “y” sempre sucede o evento “x”, e sempre que o evento “x” estiver presente, então “y” ocorrerá. Sendo “x” e “y” eventos que, por A Matematização das Ciências Sociais 8 suposição teórica, sempre aparecem juntos, podemos dizer que esta é uma lei definida em termos de conjunção constante de eventos ou regularidade empírica. Podemos utilizar um exemplo de Lawson para ilustrar o método dedutivista. Suponha que um automóvel, após uma noite de inverno europeu, apresente gelo em seu radiador. Podemos chamar este evento de “y”, e se quisermos explicá-lo, devemos procurar as condições “x” que o antecederam, incluindo uma lei geral. Uma possível explicação seria: Condições iniciais: Æ O carro tinha água no dia anterior. Æ O radiador não apresenta vazamento. Æ A temperatura caiu abaixo de 0°C. Lei geral: Æ A água congela a 0°C. Conclusão: Æ O radiador tinha gelo pela manhã. (Lawson, 1997, p.18) Em outras palavras, explicar um fenômeno consiste em indicar a existência das condições necessárias para a atuação de uma determinada lei empírica. O método utilizado para previsões também funciona do mesmo modo. Avalia-se se estão presentes as condições em que a teoria afirma a validade de uma determinada lei. Seguindo com o exemplo, se quisermos prever a existência, ou não, de gelo no radiador do carro no dia seguinte, basta identificar se estão presentes ou não as condições de operação da lei (de congelamento da água a 0°C). Neste trabalho não pretendemos discutir a validade de concepções assim formuladas, e por este motivo não faremos qualquer consideração sobre as diferentes concepções que Lawson qualifica como dedutivista. Nosso interesse aqui é apenas indicar que, para todas as concepções que puderem ser qualificadas como “dedutivistas”, podemos definir leis como conjunção constante de eventos. Isso não elimina a possibilidade de que sejam feitas exigências qualitativas para fazer de uma conjunção constante de eventos uma lei compreendida pela ciência. Conjunção Constante de Eventos significa simultaneidade ou correlação total entre os eventos supostos associados. Sempre que solto uma pedra, a lei da gravidade a faz cair até o solo, e sempre que ela cai é por que foi solta (sob a atuação da lei da gravidade). Isto significa que os eventos “soltar uma pedra” e “cair até o solo” sempre ocorrem juntos, ou seja, apresentam conjunção constante. Nas concepções dedutivistas, teoria científica é apenas uma identificação sistemática da ocorrência deste tipo de regularidade empírica. Se substituímos a pedra por uma folha de papel, a insuficiência de tal tipo de concepção se torna patente. Cada vez que se solta uma folha ela possui uma queda diferente, em velocidade diferente com diferente ponto de “repouso”. Neste caso, a lei da gravidade não atua sozinha, mas em associação assíncrona, entre outras coisas, com a aerodinâmica. Se ampliarmos nosso exemplo permitindo a tomada de qualquer objeto para o experimento, então teremos que considerar ainda a atuação de campos elétricos, magnéticos, a condição térmica etc. Poderia-se argumentar que tal concepção de lei não é incompatível com a existência de instabilidade estrutural, uma vez que se reconhece que as leis nunca operam de forma pura na realidade (i.e. fora dos modelos). Mas queremos chamar atenção para o fato de que a legalidade está definida em termos de eventos, mais ainda, em termos de conexões padronizadas de eventos. É por causa desta concepção de leis que se acredita que os modelos formais sejam o instrumento mais adequado para a A Matematização das Ciências Sociais 9 definição de leis. Isso por que leis derivadas de modelos matemáticos são leis quantitativas bem definidas entre variáveis igualmente bem definidas. A validade desta lei pode ser defendida a partir da utilização de métodos estatísticos ou mesmo da argumentação histórica, mas o conceito de lei – para estas concepções – não fica em nada alterado por causa disso. Mas as leis obtidas pela ciência só são válidas quando elas operam realmente. Dito de outro modo: a realidade possui legalidades, e uma lei científica – se válida – é apenas uma constatação da operação desta lei. A crença na validade de uma lei pressupõe um paradigma (ontologia) que inclua esta lei, e a crença na validade de um tipo de lei também pressupõe uma ontologia (paradigma) na qual as legalidades reais são concebidas como sendo do tipo de lei que se acredita7 . Neste ponto o argumento é totalmente tautológico, mas necessário para justificar a afirmação de que a concepção de leis enquanto conjunção constante de eventos pressupõe uma ontologia em que somente os eventos e suas relações possuem legalidades compreensíveis. Ainda em outros termos, o entendimento de que lei é uma relação entre eventos implica a existência de uma ontologia em que somente os eventos e suas relações podem ser cientificamente investigados. Para provar esta implicação, basta indicar que a admissão de que exista alguma legalidade entre aspectos ou coisas que não são eventos tornaria discutível (se não absurda) a concepção de leis em termos de conjunções constantes. A regularidade de eventos é, portanto, uma característica fundamental para todas as concepções que compreendam leis em termos de conjunção constante de eventos. Toda a construção teórica com base neste método pressupõe que a realidade é plena de regularidades, ou seja, sempre que uma determinada circunstância se apresenta, então sempre segue um mesmo evento em sua conseqüência. Não faz diferença se a dedução com base nestas circunstâncias é probabilística. Neste caso, as possibilidades são pré- definidas, as chances de cada resultado são fixas e o resultado final é mera conseqüência aleatória que respeita as probabilidades pré-estabelecidas. É assim que funcionam os modelos probabilísticos, mas não parece ser assim que as coisas acontecem no mundo real, quando, por exemplo, consideramos a ação humana. Uma escolha expressa em termos probabilísticos não é uma escolha, pois, entre outros problemas, elimina a possibilidade de construção de novas alternativas, antes inexistentes, o que é algo característico da ação humana. Devemos acrescentar ainda que modelos probabilísticos supõem que tudo de relevante que acontece na realidade se encontra no nível dos eventos. Dada a ocorrência de “x”, então “y” com probabilidade 1/3 e “w” com probabilidade 2/3. Também neste caso são desconsideradas a existência de estruturas, mecanismos, leis, tendências etc. (Lawson, 1997, p.24) A fonte da suposição de que a ciência se caracteriza pela busca de conjunções constantes de eventos é o fato de que, nas ciências naturais, é comum a prática de experiência, onde se criam condições especiais em que uma regularidade empírica se manifesta. Se voltarmos ao exemplo de abandonar um objeto à ação da gravidade, poderemos constatar, sem dificuldade, que é possível criar condições especiais em que a folha sempre cai do mesmo modo, e mais ainda, cai exatamente como uma pedra de 7 Aqui utilizamos propositadamente os termos “ontologia” e “paradigma” de forma intercalada para indicar que a admissão de que a metafísica é parte constituinte do conhecimento científico significa imediatamente a admissão de que toda teoria é inevitavelmente relacionada com uma visão de mundo, uma malha de crenças, uma ontologia. Não nos interessa aqui as diversas e importantes sutilezas de cada termo, mas a conclusão de que não é possível produzir conhecimento axiologicamente neutro. A preferência por “...termos como paradigma, programas de pesquisa científica, jogos de linguagem, phrase régimes, formas de vida, esquemas conceituais, entre outros, caracterizam uma variedade de doutrinas que, não obstante suas diferenças, convergem em um ponto fundamental: a defesa do relativismo ontológico.” (Duayer, 2003, p. 2) A Matematização das Ciências Sociais 10 mesma massa. O que se realiza num empreendimento deste tipo é o isolamento do mecanismo de interesse, no caso a lei da gravidade, daqueles outros elementos que não interessam no momento, por exemplo, a aerodinâmica. Nestas circunstâncias, em que somente a gravidade está presente, a regularidade empírica se manifesta: dado um corpo de massa “n” abandonado à “m” metros, então ele chegará ao piso em tantos segundos. Em outras palavras, dadas as condições “x”, então se segue “y”, ou seja, vale a conjunção constante de eventos. Devido ao sucesso das ciências naturais e de seus experimentos, passou-se a utilizar a busca de regularidade empírica como modelo para todas as ciências, em particular para a Economia. Como já foi discutido, mesmo a realidade natural não é plena de regularidades. O objetivo de um experimento não é a descoberta de uma conjunção constante de eventos, mas sim o isolamento de um mecanismo de interesse para compreender seu funcionamento. No caso da gravidade, o experimento serve para identificar a intensidade com que esta lei atua, para assim entender o que acontece na realidade fora do experimento, onde as regularidades empíricas raramente se manifestam. Isso significa, naturalmente, que a conjunção constante de eventos é produzida pelo cientista no ato do experimento. (Lawson, 1997, p.29) Com base nesta interpretação equivocada de que os experimentos das ciências naturais servem para identificar conjunções constantes de eventos, a ciência econômica passou a realizar o análogo possível para as ciências sociais, a criação de modelos hipotéticos. Enquanto nas ciências naturais efetivamente isolam-se as variáveeis de interesse, os economistas o fazem de forma hipotética. Assim, enquanto o físico ou biólogo é obrigado, no experimento, a respeitar as características do objeto pelo simples fato de manuseá-lo diretamente, o economista cria qualquer condição que desejar, desde que os postulados matemáticos sejam respeitados, exatamente por que se trata de um manuseio abstrato sujeito apenas à capacidade criativa e à vinculação teórica deste cientista social. Os economistas procuram produzir teorias a partir de um método análogo ao supostamente empregado pelos físicos. Para isso, copiam os experimentos em sua aparência, mas acabam por deturpar o que há de essencial na prática dos físicos. Vimos que as experiências nas ciências naturais se caracterizam por isolar os mecanismos de interesse, criando um sistema fechado, que raramente ocorre de forma espontânea. Neste caso, o ambiente criado necessariamente respeita as características do objeto, por se tratar de um experimento efetivo, onde o objeto de estudo “impõe” suas condições, simplesmente porque não pode ser eliminado do experimento. Na Economia o experimento torna-se teórico-conceitual. O locus do experimento deixa de ser o laboratório, por mera impossibilidade prática, e passa a ser o computador do economista. Com isso, o objeto do experimento concreto sai do centro das atenções; agora as características do objeto podem ser suprimidas por mera necessidade matemática. Ao copiar a idéia de realizar experimentos, o economista leva em conta apenas a aparência, facultando uma alteração completa de conteúdo. A essência do que é realizado nos experimentos das ciências naturais só pode ser mantida nas ciências sociais se abandonarmos a tentativa de produzir conhecimento por meio de procedimentos análogos aos experimentos. Os experimentos constituem uma forma adequada de produzir conhecimento sobre o mundo natural quando os objetos das ciências naturais são passíveis de isolamento. Aqueles mecanismos que são deixados atuar no interior dos sistemas fechados não só atuam da mesma forma que operam no mundo real (sistema aberto), como seus efeitos podem ser percebidos de forma ‘pura’, no sentido de que é possível criar condições em que os outros mecanismos não afetem a sua atuação. Não se pode A Matematização das Ciências Sociais 11 dizer o mesmo das ciências sociais. É simplesmente impossível isolar estruturas, mecanismos ou leis sociais, pois eles só se manifestam através das pessoas. Uma estrutura social, diferentemente das estruturas naturais, não existe independentemente dos efeitos que provoca e tais efeitos são sempre materializados por ações de indivíduos distintos (e por definição singulares). Por essa razão, “A sociedade é tanto condição (causa material) sempre presente como o resultado continuamente reproduzido da ação humana”. 8 Aqui deve se fazer notar a distinção ontológica entre o dedutivismo e o Realismo Crítico. Os sistemas fechados constituem o método possível de teorização em termos de conjunções constantes de eventos nas ciências sociais e correspondem a tentativa de produzir conhecimento sobre determinados eventos tomando os anteriores como explicação para os sucessores. Está evidente que, sob esta perspectiva, os eventos constituem tudo que há de relevante para a investigação científica. Desde uma perspectiva ontológica podemos indicar que esta é uma concepção que pressupõe uma realidade que possui apenas dois domínios: o efetivo e o empírico. O domínio efetivo é aquele em que ocorrem os eventos, e o empírico corresponde ao conjunto dos eventos que podem ser percebidos pelos homens. Como somente os eventos percebidos são importantes, em particular aqueles que se pode mensurar, então a função da ciência entendida nestes termos se reduz a investigar o domínio empírico da realidade. É por este motivo que Lawson qualifica esta concepção de ciência como realismo empírico. (Lawson, 1997, p.19) Não negamos que a matemática e a estatística sejam importantes para a ciência social, mas discordamos do tipo de importância que lhe é atribuída convencionalmente. Ambas prestam grande contribuição para a mensuração (ou estimação) de diversos aspectos sociais, mas isso é muito diferente de aceitar que toda a ciência social deve ser conduzida pela lógica dedutiva empregada em tais modelos. As ciências sociais não possuem o papel de mensurar e identificar correlações de eventos, mas sim de identificar o que faz os eventos se apresentarem assim dispostos, e os modelos formais contribuem pouco neste particular. A grande virtude da matemática e da estatística é a sua utilização instrumental. Mas instrumentos sempre estão a serviço da consecução de algum objetivo que lhe é determinado externamente. Se a matemática é instrumento da teoria, então os objetivos para cuja realização ela contribui são determinados pela teoria. Surge aqui um problema bastante intrincado. Desde a difusão das idéias relativistas pós-positivistas, a própria ciência tem assumido conscientemente o critério de instrumentalidade como único critério da ciência. O problema é que se a ciência rejeita sua função de avaliar criticamente as exigências da sociedade, então ela se torna apenas um instrumento intermediário, uma espécie de fabricante de instrumentos para realização das práticas convencionais. 3. Razões para a matematização Argumentamos que a matematização não significa um transparente e inequívoco aprimoramento das teorias vigentes. Sua implementação estimula e é estimulada por uma mudança de foco da ciência, cada vez menos interessada no processo histórico, e crescentemente voltada para a descrição de mecanismos restritos a contextos específicos, descrição essa que se legitima pela capacidade de fornecer aos agentes 8 (Bhaskar, 1998). A Matematização das Ciências Sociais 12 instrumentos para as suas práticas9 . Nesta última seção será apresentada uma explicação para este processo de crescimento da matemática apesar de suas limitações. O argumento parte da perspectiva do Modelo Transformacional da Atividade Social, desenvolvido por Bhaskar (1998). Neste modelo filosófico, existe uma clara “... distinção entre, de um lado, a gênese das ações humanas, que repousam nas razões, intenções e planos das pessoas, e, de outro, as estruturas que governam a reprodução e transformação das atividades sociais; e, por conseguinte, entre os domínios das ciências psicológicas e sociais. O problema de como as pessoas reproduzem qualquer sociedade em particular pertence à ciência de ligação ‘sócio-psicológica’”. (Bhaskar, 1998, p. 9) Não desenvolveremos aqui toda a argumentação que sustenta a concepção de Bhaskar, pois fugiria ao escopo do trabalho. A intenção é simplesmente fazer uso da referida distinção entre as motivações individuais de qualquer comportamento e as condições sociais que tornam este comportamento possível, desejável, etc. As motivações de cada economista para defender a matematização podem ser as mais diversas, mas existem também mecanismos sociais que explicam a tendência da ciência a progredir no sentido da formalização. Podemos tomar um exemplo do próprio Bhaskar para esclarecer a idéia defendida aqui: “... a autonomia do social e do psicológico está em conformidade com nossas intuições. Pois não supomos que a razão da coleta de lixo seja necessariamente a razão do lixeiro para coletá-lo (embora dependa desta última).” (Bhaskar, 1998, p. 10). Nesta perspectiva, a compreensão do processo de matematização da Economia exige a consideração de dois aspectos: i) os mecanismos sociais que possibilitam e estimulam que a ciência caminhe nesta direção; e ii) as motivações individuais que cada economista possui para empregar a matemática na elaboração de teorias econômicas. Devemos agora fazer algumas considerações acerca da importância relativa de cada um destes aspectos. Sendo o objetivo compreender o processo de matematização, ou seja, sua gênese e desenvolvimento, (potencialmente também apogeu e declínio) cada um destes dois elementos (motivações individuais e estruturas sociais) possuem importância relativa diferente de acordo com cada etapa do processo. Quando indagamos acerca da origem histórica, a personalidade dos primeiros indivíduos a contribuir para o processo e a história de suas vidas pode ser extremamente importante. Entretanto, quando nos questionamos acerca da difusão das idéias pela sociedade, a função social de tais idéias ganha preponderância, importando pouco as razões particulares de cada indivíduo para aderir ou não a elas. Do mesmo modo, a hegemonia social de alguma concepção ou comportamento depende muito mais das estruturas sociais que das disposições individuais de cada adepto da concepção ou cada praticante. Em nenhum dos casos, entretanto, rejeitamos a necessidade de que estejam presentes motivações individuais. Pelo contrário, estas motivações são absolutamente cruciais. Sem estas motivações, seria impossível que qualquer empreendimento social se reproduzisse enquanto tal. Mas, uma vez que a necessária motivação individual esteja presente, importa pouco se ela decorre de motivos financeiros, psicopatológicos, religiosos, etc. Nosso objetivo é explicar a tendência, inegavelmente social, de que a Economia caminhe rumo ao uso crescente da matemática. Não é preciso nenhum esforço para 9 É claro que nem todo defensor da formalização adota como critério o instrumentalismo. Popper talvez seja o exemplo mais conhecido. Mas, na Economia, parece ser hegemônica a concepção instrumentalista defendida por Friedman (1981) e retomada, para citar um autor brasileiro, por Lisboa (1998). A Matematização das Ciências Sociais 13 constatar que existem diversas pessoas dispostas a contribuir para esta tendência. Também não é difícil constatar, por outro lado, que existem também diversas pessoas dispostas a resistir. É evidente que a tendência tem se consolidado apesar das tentativas de resistência. A explicação para tal consolidação, por tudo que dissemos acima, deve se concentrar mais nas estruturas sociais que contribuem para esta fase do processo (consolidação), do que nas motivações individuais. Bigo (2008), depois de apresentar uma série de relatos de economistas – incluindo alguns ortodoxos – reconhecendo que o desenvolvimento teórico não tem alcançado os resultados esperados, defende, em sentido contrário ao que argumentamos aqui, que a matematização é mais bem explicada a partir dos comportamentos individuais do que a partir de investigações histórico-sociais: “Such persistence with methods that seem not to be fruitful by their own (explanatory and predictive) criteria would appear to be akin to something pathological. In consequence, the sort of explanation that is likely warranted is one couched not only in socio-historical terms, but further, and more poignantly, in psychological terms”. (Bigo, 2008, p. 2.) Sem maiores considerações sobre a relativa importância de argumentos sóciohistóricos e argumentos psicológicos, ela começa a desenvolver seu interessante argumento de que o apego à matematização decorre de duas tendências desenvolvidas na infância e reforçadas socialmente ao longo da vida. A primeira é a tendência a acreditar que se tem controle sobre o futuro, e a segunda é a tendência à segregação (separação entre self e others). A matemática alimenta a crença na capacidade de previsão e é utilizada para realizar a mencionada demarcação entre economics e “blá- blá-blá”. Não reproduziremos aqui este argumento porque, apesar de interessante, ele prioriza exatamente os aspectos que acreditamos ser menos importantes para explicar a consolidação e hegemonia social de uma concepção. Bigo parte da constatação de que a Economia tem fracassado em seu desenvolvimento teórico. Poderíamos, adicionalmente, afirmar que a Economia também não tem tido sucesso na resolução dos problemas econômicos que afetam a maioria da população. Mas fracasso ou sucesso são termos que servem para avaliar a capacidade demonstrada de alcançar objetivos, logo, a avaliação do sucesso (ou fracasso) da Economia exige a correta constatação de qual é o objetivo desta ciência. O objetivo é desenvolver modelos teóricos consistentes ou compreender as relações sociais para eliminar a pobreza? É possível que a maioria dos economistas, até mesmo todos, deseje alcançar a coesão teórica e contribuir para a eliminação dos problemas sociais. Estes são, entretanto, objetivos individuais (análogos às “razões do lixeiro”) que podem ser radicalmente distintos da função social da Economia (análoga às “razões da coleta de lixo”). Se coesão teórica fosse, de fato, o objetivo da Economia, a insistência em métodos que se têm revelado fracassados poderia exigir uma explicação psicopatológica como a desenvolvida por Bigo. Mas se, ao contrário, existem outras razões – sociais – para que tal perspectiva seja estimulada, então é perfeitamente concebível que os indivíduos, mesmo aqueles que, eventualmente, possuam estado perfeito de saúde mental, tenham as mais diversas motivações pessoais para insistirem em métodos que se tem mostrado fracassados. As motivações podem ser as mais ‘inocentes’, como contribuir para a superação dos problemas, ou mesmo as mais comuns, como conviver com os problemas usufruindo das vantagens que decorrem de sua adesão ao método convencional. A Matematização das Ciências Sociais 14 Se existir, portanto, uma função social da Economia para além de sua coesão teórica e promoção do bem estar social, não é necessária nenhuma psicopatologia para explicar a existência de indivíduos dispostos a permanecer com o método convencional. E não é preciso muito esforço para constatar que a Economia cumpre um papel fundamental no desenvolvimento das relações sociais. A despeito de seus problemas teóricos/metodológicos, a Economia têm contribuído significativamente para orientar as políticas econômicas e sociais em direção à liberdade financeira, a flexibilização de direitos trabalhistas, o livre comércio, etc.; e para legitimar os valores compatíveis com tais políticas. Hoje, em tempos de crise, a Economia também aparece como principal orientadora das intervenções governamentais, reforçando algumas das idéias liberais e adotando algumas medidas claramente contrárias ao ideal liberal como forma de atenuar a crise, abrindo espaço para o fortalecimento de concepções heterodoxas. Correntes ortodoxas e heterodoxas, neste sentido, constituem apenas diferentes formas de gestão das finanças públicas e regulação da economia, e a relevância de cada uma destas correntes depende de sua capacidade de orientar as práticas que são exigidas a cada momento. E esta não é uma característica específica da Economia, a importância das demais ciências também é resultado de sua função nas práticas contemporâneas. “As ciências sociais representam, em larga medida, um corpo de entendimento (com certeza sistemático empiricamente fundamentado) cuja relevância deriva de seu papel nas práticas impulsionadas pelos valores predominantes e ascendentes de nossa época, e cujo âmbito explicativo (e, onde aplicável, antecipador e preditivo) é limitado aos fenômenos “significativos” para tais práticas e para uma articulação do mundo social (e natural) adequado para promover sua manutenção e extensão”. (Lacey, 1998, p.180) Além da contribuição na elaboração de políticas e a função de legitimação de valores, a Economia é útil para os agentes em suas práticas diárias. Deve estar claro, como salienta Mankiw (ver nota 6), que o economista sempre tem em sua cabeça, não um modelo, mas uma composição de modelos e capacidade analítica (por vezes chamadas de intuição) que resulta, entre outras coisas, do conhecimento de tais modelos. A Economia é, portanto, útil. Isso não significaria necessariamente que este seja seu único caráter. Também teorias que se pretendem realistas são úteis, embora não estejam reduzidas ao seu aspecto instrumental. Mas o movimento da Economia rumo à formalização traz consigo uma mudança significativa de foco, deixando para segundo plano as investigações sobre a dinâmica histórica em favor de uma ciência repleta de modelos que descrevem apenas os mecanismos que operam em cada circunstância. Esses modelos são úteis enquanto for preservada a relativa estabilidade das circunstâncias, mas são incapazes de descrever o processo real de gênese, desenvolvimento e eventual declínio do contexto histórico que descreve. Fica patente, assim, que uma ciência que se caracteriza pela coleção de modelos deixa de lado parte da realidade que deveria descrever caso se pretendesse realista. Quando consideramos as funções efetivamente exercidas pela Economia, concluímos que é seu aspecto instrumental o mais importante. É claro que, para ser um bom instrumento, o modelo deve ser capaz de capturar relações manipuláveis, que se provem operantes, portanto úteis, na prática dos agentes, mas a compreensão do processo que dá origem a esta relação é dispensável. Concluí-se, então, que a função social da Economia exige-lhe apenas o desenvolvimento do caráter instrumental, podendo existir ou não a preocupação com a acuidade descritiva da teoria.
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