A conquista da Felicidade
Por: martelua • 10/12/2020 • Pesquisas Acadêmicas • 1.865 Palavras (8 Páginas) • 257 Visualizações
CAPÍTULO I
O Que Torna as Pessoas Infelizes?
Os animais são felizes desde que tenham boa saúde e bastante comida. Tem-se a impressão de que os seres humanos deveriam sê-lo em iguais circunstâncias, mas tal não sucede, pelo menos na maioria dos casos, no nosso mundo moderno. Se o leitor é infeliz, está natu- ralmente preparado para admitir que a sua infelicidade não é uma exceção. Se é feliz, pergunte a si mesmo quantos dos seus amigos o são. E, quando os analisar, habitue-se à arte de ler nas fisionomias e procure ser recetivo à disposição daqueles que encontra no decurso da vida quotidiana. Blake dizia: Uma marca em cada rosto eu vejo, Marca de fraqueza, marca de sofrimento. Ainda que por razões diferentes, em toda a parte verá pessoas infelizes. Suponhamos que o leitor se encontra em Nova Iorque, a mais típica das grandes cidades modernas. Detenha-se, por mo- mentos, numa rua movimentada, durante as horas do trabalho; as- sista, num fim de semana, ao movimento de uma das principais artérias; ou vá à noite a uma sala de dança. Liberte-se do seu pró- prio eu e deixe-se penetrar sucessivamente pela personalidade das pessoas que o rodeiam. Descobrirá que cada uma dessas multidões diferentes tem as suas inquietações próprias. Na azáfama da hora do trabalho, verá ansiedade, concentração excessiva, dispepsia, falta de interesse por tudo o que seja alheio à sua luta, incapacidade para se divertir, ignorância a respeito dos seus semelhantes. Em qual- quer estrada num fim de semana, verá homens e mulheres que gozam uma vida confortável, alguns mesmo bastante ricos, empenhados na perseguição do prazer. Essa perseguição é feita por todos em anda- mento uniforme, o andamento do carro mais vagaroso da fila; é im- possível ver a estrada por causa dos outros carros, ou olhar em volta e contemplar a paisagem, com receio dos acidentes; todos os ocu- pantes de todos os automóveis vão absorvidos pelo desejo de ultra- passar o carro que vai à frente, mas não o podem fazer por causa da multidão; se o seu pensamento se evade dessa preocupação, o que pode suceder àqueles que não vão ao volante, um aborrecimento ir- reprimível apodera-se logo deles e marca nas suas feições o habitual descontentamento. Às vezes poderá surgir na estrada um carro cheio de gente de cor que mostre verdadeira alegria, mas tal comportamen- to provoca a indignação dos restantes e o carro excêntrico acabará por cair nas mãos da polícia, depois de sofrer algum acidente: não é permitido divertirem-se em dia de folga. Observe agora as pessoas num local de diversões noturnas. Todos chegam decididos a serem felizes, com a mesma inflexível resolução de quem decidiu não fazer escândalo no dentista. Julga-se geralmen- te que a bebida e a intimidade conduzem à alegria; assim, as pessoas embebedam-se rapidamente e procuram não reparar quanto os seus companheiros lhes desagradam. Depois de ingerirem suficiente quantidade de bebidas, os homens começam a chorar e a lamentar-se por serem indignos, moralmente, do amor das suas mães. Tudo o que o álcool faz por eles é libertar-lhes o sentimento de culpa, que a ra- zão abafa nos momentos normais. As causas destes diferentes géneros de infelicidade residem em parte no sistema social e em parte também na psicologia do indivíduo — que, por sua vez, é em larga medida um produto do sistema social. Já em tempos escrevi acerca das mudanças no sistema social indis- pensáveis ao aumento da felicidade. Não é pois minha intenção falar neste volume da abolição da guerra, da exploração económica e da educação na crueldade e no medo. Descobrir um sistema que permita evitar a guerra é uma necessidade vital para a nossa civilização; mas nenhum sistema será viável enquanto os homens forem tão infelizes que encarem a sua exterminação mútua com menos horror do que o sofrimento contínuo à luz do dia. É necessário impedir que a pobreza se perpetue, pois os benefícios da produção mecânica podem melho- rar a existência dos mais necessitados; mas que utilidade haverá em tornar toda a gente rica, se os próprios ricos são infelizes? A educação na crueldade e no medo é má, mas nenhuma outra pode ser dada pelos que são escravos dessas mesmas paixões. Estas condições levam-nos ao problema do indivíduo: o que podem um homem ou uma mulher fazer, em determinadas circunstâncias, para realizar a sua própria fe- licidade no seio da nossa sociedade nostálgica? Na discussão deste problema, limitarei a minha atenção àqueles que não são vítimas de uma miséria material excessiva. Atribuir-lhes-ei um rendimento ra- zoável para assegurar o alimento e a habilitação e suficiente saúde para permitir as atividades físicas normais. Não considerarei as gran- des catástrofes, tais como a desonra pública ou a morte dos filhos. Há muitas coisas a dizer, e importantes, sobre tais assuntos, mas perten- cem a um domínio diferente de que não me ocuparei neste livro. O meu propósito é sugerir uma cura para a vulgar infelicidade do dia a dia, de que sofre a maior parte dos habitantes dos países civilizados, e que, não tendo verdadeira causa exterior que a determine, se torna ainda mais difícil de suportar por parecer inevitável. Creio que essa infelicidade se deve em grande parte a ideias erradas sobre o mundo, éticas erradas, hábitos de vida errados que provocam a destruição desse gosto natural e desse apetite pelas coisas realizáveis de que depende afinal toda a felicidade, tanto dos homens como dos animais. E como tais causas estão ligadas à própria vontade do indivíduo, proponho-me sugerir mudanças através das quais a sua felicidade, com o concurso da fortuna, poderá ser realizada. Talvez a melhor introdução à filosofia que desejo defender sejam algumas palavras autobiográficas. Eu não nasci feliz. Em criança, a minha frase favorita era a seguinte: «Cansado do mundo e carregado com a minha culpa.» Aos cinco anos, refleti que, se vivesse até aos setenta, tinha suportado apenas a décima quarta parte da minha vida inteira e senti então que o interminável aborrecimento que havia diante de mim me seria quase intolerável. Na adolescência, odiava a vida e estava continuamente à beira do suicídio, de que no entanto me salvei devido ao desejo de me aperfeiçoar em matemática. Agora, pelo contrário, amo a vida; poderia quase dizer que a cada ano que passa a amo mais. Isso deve-se em parte ao facto de ter descoberto as coisas que mais desejava e de ter alcançado muitas delas a pouco e pouco, em parte também por ter afastado de mim, felizmente, cer- tos objetos de desejo, essencialmente inacessíveis, tais como a aqui- sição de um conhecimento absoluto num ou noutro campo, mas principalmente por me preocupar menos com a minha própria pes- soa. Como tantos outros que tiveram uma educação puritana, eu ti- nha o hábito de meditar nos meus pecados, nas minhas loucuras e nas minhas imperfeições. Julgava-me — sem dúvida com razão — um sujeito miserável. A pouco e pouco, porém, aprendi a ser indiferente a mim próprio e às minhas deficiências; comecei a concentrar cada vez mais a minha atenção nos objetos exteriores: a situação do mun- do, os vários ramos do saber, as pessoas pelas quais sentia afeição. É certo que os interesses exteriores comportam também muitas possi- bilidades de sofrimento: o mundo pode ser mergulhado em guerra; o saber, em certa direção, pode ser difícil de adquirir; os amigos po- dem morrer. Mas os sofrimentos desta ordem não destroem a quali- dade essencial da vida como os que resultam da aversão por si mes- mo. Além disso, todo o interesse exterior incita a qualquer atividade, o que é um ótimo preventivo contra a tristeza enquanto esse interes- se permanece vivo. O interesse por si próprio, pelo contrário, não conduz a qualquer atividade de caráter progressivo. Pode levar al- guém a escrever um diário, a fazer psicanálise ou talvez a tornar-se monge. Mas o monge não será feliz enquanto a rotina do mosteiro não o fizer esquecer a sua própria alma. A felicidade que ele atribui à religião, alcançá-la-ia igualmente como varredor de ruas, desde que fosse obrigado a sê-lo sempre. Uma disciplina exterior é o único caminho da felicidade para esses desafortunados cujo egocentrismo é demasiado profundo para se curarem de outra maneira. Há egocentrismos de várias espécies. Podemos considerar o peca- dor, o narcisista e o megalómano os três tipos mais comuns. Quando falo em «pecador», não penso no homem que comete pecados; pecados são cometidos por toda a gente ou por ninguém, conforme a definição que dermos à palavra. Penso, sim, no homem que é absorvido pela ideia do pecado. Esse homem está perpetua- mente exposto à sua própria desaprovação, que, se é religioso, inter- preta como a desaprovação de Deus. Tem de si uma imagem de co- mo pensa que devia ser, e essa imagem está em contínuo conflito com o conhecimento que tem de si mesmo. Embora o seu pensamen- to consciente se tenha libertado há muito das máximas aprendidas no colo materno, o seu sentimento de culpa, profundamente mergulhado no inconsciente, emerge de lá com o sono ou a embriaguez, e pode ser suficientemente forte para lhe roubar o gosto por todas as coisas. No fundo, aceita ainda todas as proibições que lhe ensinaram na in- fância: blasfemar é pecado, beber é pecado, ser astucioso nos negó- cios é também pecado, e, acima de tudo, o sexo é pecado. Natural- mente, esse homem não se priva de alguns desses prazeres, mas envenena-os a todos com o sentimento de que eles o degradam. O único prazer que desejaria ardentemente era o de ser aprovado e acariciado pela sua mãe, como se recorda de ter sido na infância. Mas como tal prazer não está ao seu alcance, sente que nenhum outro tem importância; e uma vez que precisa de pecar, decide fazê-lo profundamente. Quando procura o amor, espera dele a ternura mater- nal, mas não pode aceitá-la, porque a imagem da mãe o impede de respeitar qualquer mulher com quem tenha relações sexuais. Então, na sua desilusão, torna-se cruel, arrepende-se depois da sua cruelda- de, e recomeça de novo o ciclo infernal de pecados imaginários e de remorsos reais. Esta é a psicologia de muitos réprobos aparentemen- te endurecidos. O que os guia no mau caminho é a devoção a um objeto inacessível (a mãe ou quem a substitua), juntamente com o ridículo código moral que lhes foi inculcado na infância. Libertar-se da tirania das primitivas crenças e afeições é o primeiro passo para a felicidade dessas vítimas da «virtude» materna. O narcisismo é, de alguma maneira, o contrário do sentimento de culpa: consiste no hábito de se admirar e no desejo de ser admirado. Dentro de razoáveis limites, é absolutamente normal e não deve ser deplorado; somente em excesso se torna nocivo. Em muitas mulhe- res, especialmente nas que pertencem às classes mais altas, a capaci- dade de amar é completamente aniquilada e substituída por um po- deroso desejo de serem amadas por todos os homens. Quando uma tal mulher está certa do amor de um homem, perde todo o interesse por ele. A mesma coisa sucede, embora menos frequentemente, com os homens; o exemplo clássico é o herói de As Ligações Perigosas.
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