A Ética e Demócrito
Por: lauram.sc • 17/11/2020 • Resenha • 2.330 Palavras (10 Páginas) • 176 Visualizações
Qual a relação da justiça que permeia os termos diké e thémis e no que isso modifica o pensamento pré-socrático?
Tendo em vista a poesia de Homero, é necessário divisar o quanto a imagem da justiça não está associada às condições sócio-históricas do próprio povo grego. Ressalta-se que o termo justiça não é amplamente utilizado na poesia homérica, porém é na épica homérica que é possível observar as primeiras aparições do termo justiça em registros de que se tem notícia na cultura grega. Assim, o termo justiça aparece corporificado ora em thémis, ora em diké, o que, por si só, é já indício de que existem dois vocábulos entre os gregos para designar aquilo que se costuma chamar por justiça.
Do ponto de vista etimológico, em Homero, thémis é empregada para designar o costume, especialmente quando aparece empregada na frase que consta da Ilíada como da Odisséia: “e thémis estí”, significando aquilo que está estabelecido pelo costume. Ou seja, thémis designa algo cuja significação reporta à conservação, à permanência, à tradição, fazendo apelo à dimensão de um passado cuja preservação se dá na continuidade dos costumes, dos hábitos sociais, das tradições ancestrais.
Thémis vem, deste modo, revestida de uma intensa pressão tradicional, de herança dos antepassados, vindo a significar assim, entre o que era e o que será, não somente num sentido temporal, mas de maneira especial num sentido moral, ou seja, no sentido de que o que era deve continuar sendo, como medida de dever-ser do comportamento das novas gerações. Já no que diz respeito ao termo diké, compreende-se em dois sentidos: um, de regra, costume, significando algo mais distante e sagrado; outro, de justiça em seu caráter mais humano, mais carnal e vivo, que aparece em Ilíada e oposto a força – bía.
Ainda, na tradição mítica, Diké é uma deusa ligada à verdade e à luz, filha de Thémis, agindo em oposição a outras forças, que agem com propósitos contrários (a injustiça, a desconfiança e a infidelidade e a sedução mentirosa). Nesta medida, Diké revela aos homens o que é em essência (e o que estaria escondido na dimensão do Hades), notadamente quando age sobre as relações humanas, fazendo com que surja o que é porque é, e não o embuste, o falso, o mentiroso, a imagem parca e transparência da verdade.
No entanto, com o passar do tempo o conceito divinizado da justiça como thémis perdeu seu conteúdo de princípio coordenador da vida humana por concessão divina. Uma nova ordem pública exigiu uma nova configuração à justiça, correspondente às novas exigências sociais, o que é fruto próprio de uma civilização que se organiza na técnica, no comércio, na política, no governo das coisas comuns da pólis. O termo diké, apesar de surgido provavelmente à mesma época do termo thémis, assume, com as modificações da civilização grega, uma carga de significação específica, revelando seu sentido como igualdade, como cumprimento da justiça, como bom julgamento, tomando uma conotação social de grande importância quando do aparecimento dos primeiros movimentos sociais em oposição às injustiças que percorriam íngremes diferenças entre os grupos sociais, as classes dominantes e as classes campesinas. Perceba-se que o processo de transformação da ideia de justiça entre os gregos corresponde a um movimento de passagem, contínua e lenta, entre os vocábulos thémis, diké e dikaosýne.
Diké, já em voga e de grande uso banal que outro qualquer para constituir justiça, e não thémis ocupa o lugar terminológico indispensável para designar a ordem do cosmos, a esfera das leis que exercem a função de dar conjunção ao todo universal. Por isso, apesar de ser algo comum a todos os pré-socráticos a reverência cosmológica e o problema da phýsis (existe uma ordem justa natural cosmológica), herança do período mitológico - apesar do pensamento racional. No termo diké haverão de encontrar a palavra adequada para se referir à justiça, pois diké vem do verbo deíknymi, que significa pronunciar um julgamento, atribuir ou pedir à justiça, ou, também, ser acusado pela justiça, agir em justiça, sofrer a sanção da justiça ou a imposição da pena de caráter imperativo.
Dessa forma é que se pode perceber o nítido processo de humanização da própria ideia de justiça, na passagem da era homérica à era arcaica, que, de autoritária delegação de Zeus aos corruptíveis seres que habitam o mundo sublunar, por força da thémis dada a alguns, foi se tornando propriedade típica e atribuição da deliberação dos legisladores. O homem, de inerte e irresponsável instrumento do anseio divino, tornou-se, além de realizador da justiça através de sua atividade, motor de toda a vida social por meio de sua energia e de sua inteligência, não dissociadas do respeito à esfera celestial.
De que forma Homero contribui pro pensamento grego?
A tradição homérica está cheia de respeitáveis contribuições para a concepção da cultura grega, e o que é simbólico da metodologia de difusão dessas informações e conhecimentos é que tudo se faz pela via oral. A transmissão oral por cantores e rapsodos dos feitos, das venturas e desventuras dos protagonistas da poesia homérica (Ilíada e Odisseia), o destino trágico do ideal de vida de Aquiles, consente que a poesia penetre no universo da cultura e do pensamento gregos antigos, definindo-lhe a substância humana. Transmitida através do teatro, pela cultura popular, ensinada nas escolas, absorvida pelas discussões dos sofistas, introduzida nas discussões filosóficas (Platão e Aristóteles citam-nos inúmeras vezes), inclusive no período helenístico (Porfírio), a tradição homérica é aquilo sem o que o espírito da Grécia não teria se revelado. A figura de Homero é referência não simplesmente por trazer em sua poesia um dos primeiros textos com registros formais da cultura grega, mas sobretudo e especialmente por ter imprimido o alto sentido de humanidade e culto das virtudes (aretai) que haveriam de constituir o grande acervo, e o forte e ineludível legado, de toda a civilização grega antiga.
Démocrito é conhecido pelo pensamento inovador para a época. De que forma esse filósofo grego se aproxima, pelas ideias, do pensamento kantiano e cristão?
O sentimento de justiça, o móvel da ação, a intenção de agir, a motivação do comportamento são questões que haverão de se desenvolver em momentos posteriores da história da filosofia, principalmente a partir do nascimento da filosofia da subjetividade, mas já encontram forte presença na reflexão de Demócrito sobre o comportamento justo. Quando diz que “O belo não é não cometer injustiça, mas nem mesmo querer fazê-lo” (Demócrito, Fragmentos autênticos, Demócrates, Sentenças, 27), chega mesmo a prenunciar alguns dos principais ensinos bíblicos cristãos, segundo os quais se pode pecar até mesmo por intenção, aqui visto como realização do belo. É certo que isto não produz uma semelhança entre a noção de charitas cristã e o pensamento de Demócrito, especialmente porque o cristianismo pressupõe não somente amar o amigo, mas também amar o inimigo, algo que está ausente do pensamento deste filósofo (“Inimigo não é quem comete injustiça, mas o que quer cometê-la”), 83 para quem a intenção do injusto (“quer cometê-la”) é um ingrediente fundamental para divisar o justo e o injusto. O que se torna ainda mais espantoso, e a coincidência com as crenças cristãs não são pequenas, é que Demócrito tenha declarado a regra de ouro (não fazer aos outros o que não gostaria que a si fosse feito), a noção fundamental do espírito de justiça cristã, quatro séculos (!) antes de sua efetiva proclamação, quando afirma: “Em nada respeitar mais os homens que a si mesmo, nem fazer algo mau, quer ninguém vá ver, quer todos os homens. Ao contrário, respeitar principalmente a si mesmo e estabelecer para sua alma esta lei: nada fazer de inadequado
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