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Lebrun, O único Em Suas Propriedades*

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Por:   •  4/3/2014  •  3.798 Palavras (16 Páginas)  •  234 Visualizações

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Gérard Lebrun chegou ao Brasil pela primeira vez em 1960. Vinha substituir Gilles Gastón Granger, que terminara sua segunda estadia entre nós, na posição de professor de lógica. Seu maior interesse era escrever sua tese sobre Kant. Aos poucos, porém, foi adensando o diálogo com seus colegas e alunos. De um lado, colaborou para perfazer nossa formação filosófica; de outro, nos ajudou a desconfiar das modas parisienses. E desde logo tomou distância daquele nosso esforço de repensar o marxismo. Só mais tarde percebi a situação difícil em que o coloquei ao pedir que escrevesse a orelha de Origens da dialética do trabalho1. Basta lê-la para que se perceba a delicadeza com que diverge de minha interpretação, ele que havia lido o Hegel de Alexandre Kojève e fora aluno de Jean Beaufret.

Nas condições difíceis dos anos 1970 tentávamos recuperar o fértil diálogo sobre a dialética que se instalara entre nós na década anterior. As circunstâncias eram outras, mas ainda estávamos interessados numa crítica do desenvolvimento capitalista, principalmente na América Latina, que se expandia associado a regimes autoritários. Já tratávamos de perguntar como se processaria a passagem do autoritarismo para a democracia, e já tínhamos consciência de que era preciso deixar de lado os paradigmas do socialismo real, que começara a cair por terra.

Em particular, que herança Marx nos deixava? Poucos de nós rezávamos pela cartilha marxista. Os sociólogos não escapavam da influência de Durkheim, Weber e Marx, cada um apresentando um ponto de vista para entender as várias dinâmicas da sociedade. Nós filósofos, formados na escola da epistemologia francesa, perguntávamos pelo sentido de uma contradição real. Continuávamos procurando entender o que poderia ser uma dialética materialista, e eu mesmo tentava examinar os meandros do esquema da produção, do metabolismo do homem com a natureza tal como Marx os pensara em vários momentos de sua carreira. Nas Origens da dialética do trabalho procurei mostrar que o esquema do trabalho manual, mesmo quando atravessado pela alienação, era insuficiente para dar conta dos problemas levantados pela troca mercantil. Só em Trabalho e reflexão2 amplio meu projeto e tento desenhar a lógica do modo de produção capitalista como um todo. Procurava tornar mais nítida a reflexão do capital: partindo da equação de troca M = M, era possível chegar às três formas nas quais o capital se apresenta no máximo de sua alienação: o capital produzindo lucro (e juros), a terra, renda, e o trabalho, salário. Mas ao percorrer esse percurso de Marx chegava à conclusão de que a tendência à baixa da taxa de lucro se esfarelava por causa de tantas outras forças contrárias que o próprio desenvolvimento do sistema ia criando. Se essa tendência não era interna ao sistema, como o futuro poderia encontrar sua matriz no presente?

No entanto, demarcada a estrutura de um modo de produção que parece crescer por si mesmo, cabia desde logo distinguir essa história categorial, o desdobrar das categorias umas nas outras, daquela outra história, a do seu vir a ser, de tudo aquilo que se fizera necessário para que se instalasse a história categorial, respeitando as condições de cada realidade local: o modo de produção capitalista não se instala na Europa do mesmo modo que se instala nos Estados Unidos.

Lebrun seguia esse projeto com olhos críticos, assim como acompanhava cuidadosamente os trabalhos de meus colegas. De certo modo, seu livro La patience du Concept: Essai sur Le Discours hégélien3 era uma tentativa de nos mostrar como o conceito hegeliano, ao transformar-se em discurso, barrava nossas esperanças de encontrar um fundo materialista em nossas interpretações. E sua análise da negação determinada mostrava como era impossível inverter qualquer dialética. Não foi à toa que recebeu uma crítica ácida de Paulo Arantes.

Nos momentos de transição política é comum a academia participar do debate nacional. Procurávamos ocupar todos os espaços possíveis. O próprio Lebrun começou a escrever artigos de ocasião para a Folha de S.Paulo e para o Estadão, sempre puxando a corda para dar oportunidade a uma reflexão filosófica. Do outro lado, se Paris demorou a avaliar a importância de sua obra, não foi por isso que deixava de estar atento às suas modas. Seu colega Michel Foucault veio pela primeira vez a São Paulo em 1966, quando nos deu as primícias de Les mots et les choses. Foucault exerceu maior ou menor influência em todos nós, e Lebrun foi levado por ele a mergulhar nos estudos nietzschianos. Não devemos esquecer, porém, que Lebrun lia David Hume constantemente. E uma vez me confessou que estudara Kant para ver se refutava Hume, embora trabalhasse cada vez mais na linha desse filósofo.

De certo modo, O avesso da dialética4 é o ponto final no nosso debate. Ao ler Hegel aos olhos de Nietzsche, Lebrun tentava nos mostrar que havíamos tomado uma direção errada no nosso esforço de compreender a modernidade, e que muitas vezes havíamos nos perdido pelo caminho. Lembrava ser preciso reler a dialética hegeliana procurando "determinar certas opções que ela, sem o dizer, implica"5. Como, porém, apontar opções num pensamento que prima por corroer todos os seus próprios pressupostos, e no qual a Razão destrói, sempre, as marcações traçadas pelo Entendimento? Para não mergulharmos inteiramente na ilusão de que teríamos o "discurso da Verdade", refúgio inesperado da teologia6, Lebrun começa por duvidar da existência de um logos inteiriço. Não haveria outra maneira de fazer filosofia? "Filosofar poderia muito bem consistir em interrogar a experiência que temos das palavras, e em restituir a suas origens diversas as significações cuja verdade os filósofos pretendem reencontrar com o 'discurso sério'. Não mais investigar o sentido (que, desde sempre, esperava ser enunciado), mas investigar os acasos de sua formação"7. A defesa do ponto de vista genealógico, aqui, é evidente.

Em vez de estudar os interesses de classe, sentimentos inconfessáveis ou o impensado que orientam uma obra, Nietzsche se atraca contra o caráter normativo, impositivo, dos conceitos, em particular do conceito hegeliano. Não seria melhor investigar o próprio mecanismo enviesado da formação da norma? Esse tema é explicitamente tratado no capítulo "A grande suspeita" de O avesso da dialética: "Não procurar o que o pensador disfarçava, mas através de que 'interpretação' determinada ele nomeava as coisas"8. Cada interpretação é uma forma de nomear, e, no fundo, diz Nietzsche, não existem coisas, mas apenas interpretações. Daí seu perspectivismo, a necessidade de sempre nomear o devir

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