Razões Práticas Sobre a Teoria da Acção
Por: Mariana Abreu • 3/11/2016 • Trabalho acadêmico • 8.172 Palavras (33 Páginas) • 299 Visualizações
Pierre Bourdieu [pic 1] | |
Razões Práticas Sobre a teoria da acção | |
ulgo que se fosse japonês não apreciaria a maior parte das coisas que os não Japoneses escrevem sobre o Japão. I E na época em que começava a mteressar-me pela sociedade francesa, há mais de vinte anos, reconheci a irritação que me inspiravam os trabalhos americanos de etnologia da França nas críticas que dois sociólogos japoneses, Hiroshi Minami e Tetsuro Watsuji, dirigiam ao célebre livro de Ruth Benedict, O Crisântemo e a Espada. Assim, não vos falarei de "sensibilidade japonesa", nem de "mistério" ou de "milagre" japonês. Falarei de um país que conheço bem, não porque nele tenha nascido e por falar a sua língua, mas porque o estudei muito, a França. Quererá isto dizer que, ao fazê-lo, me encerrarei na particularidade de uma sociedade singular e em nada falarei do Japão? Não o creio. Penso pelo contrário que, apresentando o modelo do espaço social e do espaço simbólico que construí a propósito do caso particular de França, não deixarei de vos falar do Japão (como, se falasse noutro lugar, falaria dos Estados Unidos ou da Alemanha). E para vos deixar ouvir mais completamente este discurso que vos diz respeito e que, se eu falar do Homo academicus francês, poderá até parecer-vos carregado de alusões pessoais, gostaria de vos encorajar e de vos ajudar a deixar para trás a leitura particularizante que, além de poder constituir um excelente sistema de defesa contra a análise, é o equivalente exacto, do lado da recepção, da curiosidade pelos particularismos exóticos que têm inspirado tantos trabalhos sobre o Japão.
O meu trabalho, e especialmente La Distinction, expõe-se de modo particular a uma tal leitura. O modelo teórico não aparece nele ornado com todos os signos pelos quais habitualmente se reconhece a "grande teoria", a começar pela ausência de qualquer referência a qualquer realidade empírica que seja. As noções de espaço social, de espaço simbólico ou de classe social nunca são examinadas em si mesmas e por elas mesmas; são aplicadas e
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1 Conferência proferida na Universidade de Todai, em Outubro de 1989.
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postas à prova numa investigação inseparavelmente teórica e empírica que, a propósito de um objecto bem situado no espaço e no tempo, a sociedade francesa dos anos de 70, mobiliza uma pluralidade de métodos de observação e de medida, quantitativos e qualitativos, estatísticos e etnográficos, macrossociológicos e microssociológicos (outras tantas oposições desprovidas de sentido); o relatório da investigação não se apresenta nessa linguagem a que numerosos sociólogos, sobretudo americanos, nos habituaram e que só deve a sua aparência de universalidade à indeterminação de um léxico impreciso e mal separado dos usos correntes — digamos, para tomarmos um só exemplo, a noção de profession. Graças a uma montagem discursiva permitindo sobrepor o quadro estatístico, a fotografia, o trecho de entrevista, o documento fac-similado e a língua abstracta da análise, o relatório faz coexistir o mais abstracto e o mais concreto, uma fotografia do Presidente da República da época a jogar ténis ou a entrevista com uma padeira e a análise mais formal do poder gerador e unificador do habitus.
[pic 4][pic 5][pic 6][pic 7]Toda a minha actividade científica se inspira, com efeito, na convicção de que não podemos apreender a lógica mais profunda do mundo social a não ser mergulhando na particularidade de uma realidade empírica, historicamente situada e datada, mas para a construir como "caso particular do possível", segundo as palavras de Gaston Bachelard, quer dizer, como um caso de figura num universo finito de configurações possíveis. Concretamente, isto significa que uma análise do espaço social como a que proponho, apoiando-me no caso da França dos anos 70, é história comparada que se aplica ao presente ou antropologia comparativa que se refere a uma área cultural particular, tendo por fim apreender o invariante, a estrutura, na variante observada.
Estou convencido de que, embora tenha todas as aparências do etnoconsiste em ap car a um outro mundo social um modelo construído se&lndo esta lógica é, sem dúvida, mais respeitadora das realidades históricas (e das pessoas) e sobretudo mais fecunda cientificamente do que o interesse pelas particularidades aparentes do amador de exotismo que se apega em termos prioritários às diferenças pitorescas (estou a pensar, por exemplo, no que se diz e se escreve, no caso do Japão, sobre a "cultura do prazer"). O investigador, ao mesmo tempo mais modesto e mais ambicioso do que o amador e curiosidades, visa apreender estruturas e mecanismos que escapam em igual medida, embora por razões diferentes, quer ao olhar indígena, quer ao olhar .trangeiro,_ tais como os princípios de construção do espaço social ou os mecanismos de reprodução desse espaço, e qye ele visa representar num modelo que se pretende de validade universal. Pode assim detectar as diferenças reais que separam tanto as estruturas como as disposições (os habitus) e cujo princípio deve ser procurado não nas singularidades das naturezas — ou as "ãlmas" de histórias colectivas diferentes.[pic 8][pic 9][pic 10][pic 11][pic 12][pic 13]
O real é relacional
[pic 14]E neste espírito que vou apresentar o modelo que construí em La Distinction, tentando antes do mais prevenir contra uma leitura "substancialista" de análises que se querem estruturais ou, melhor, relacionais (refiro-me aqui, sem poder lembrá-la mais demoradamente, à oposição feita por Ernst Cassirer entre "conceitos substanciais" e "conceitos funcionais ou relacionais"). Para me explicar melhor, direi que a leitura "substancialista" e ingenuamente realista considera cada uma das práticas (por exemplo, a prática do golfe) ou dos consumos (por exemplo, a cozinha chinesa) em si mesma e por si mesma, independentemente do universo das práticas substituíveis, e que concebe a correspondência entre as posições sociais (ou as classes pensadas como conjuntos substanciais) e os gostos ou as práticas como uma relação mecânica e directa: nesta lógica, poderíamos ver uma refutação do modelo proposto no facto de, para pegarmos num exemplo decerto bastante fácil, os intelectuais japoneses ou americanos se darem ares de apreciadores da cozinha francesa enquanto os intelectuais franceses gostam de frequentar os restaurantes chineses ou japoneses, ou ainda no facto de os estabelecimentos comerciais elegantes do faubourg Saint-Honoré ostentarem nomes ingleses, tais como hair dresser. Outro exemplo, mais impressionante ainda, ao que julgo: todos sabemos que, no caso do Japão, são as mulheres menos instruídas das comunas rurais que detêm a taxa mais elevada de participação nas consultas eleitorais, ao passo que em França, como mostrei através de uma análise das não-respostas aos questionários de opinião, a taxa de não-respostas — e de indiferença perante a política — é particularmente elevada entre as mulheres, entre os menos instruídos e entre os mais desprovidos em termos sociais e económicos. Temos aqui uma falsa diferença que esconde uma diferença verdadeira: o "apolitismo" ligado ao desapossamento dos instrumentos de produção das opiniões políticas, que se exprime num caso como simples absentismo e no outro como uma espécie de participação apolítica. E devemos perguntar-nos quais são as condições históricas (para o que teríamos que invocar toda a história política do Japão) que fazem com que sejam os partidos conservadores os que, no Japão, conseguiram, através de formas muito particulares de clientelismo, beneficiar da tendência para a delegação incondicional, favorecida pela convicção de se não deter a competência estatutária e técnica indispensável à participação.
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